O Estado de S. Paulo
Os ministros do STF são os guardiães da vontade do povo expressa na Assembleia Constituinte [ = é preciso estabelecer linha divisória entre o que a Constituição diz e o que o intérprete deseja que ela diga.]
A Constituição estabelece que todo o poder emana do povo e em seu nome é
exercido, por intermédio de representantes eleitos ou diretamente. A
soberania popular é norma constitucional. E o voto direto, secreto,
universal e periódico é cláusula pétrea. Na democracia representativa,
contudo, as maiorias são eventuais. Daí a importância da preservação das
liberdades e dos direitos fundamentais – não apenas no período
eleitoral, mas durante todo o mandato dos eleitos. O eleitorado –
sobretudo as novas gerações de eleitores – precisa ter garantida a
plenitude das liberdades e do acesso às informações dos governantes para
avaliar seu desempenho e votar livremente nas eleições seguintes.
No regime presidencialista – adotado no Brasil desde o início da
República, nos moldes do presidencialismo originário dos Estados Unidos
da América – a maioria elege o presidente da República e os membros do
Congresso Nacional para exercerem o poder durante os respectivos
mandatos. Na República e na democracia, portanto, por definição, o poder
político é temporário e limitado. Deve ser exercido, durante o mandato
eletivo, com o devido respeito à Constituição e às leis do País e
observado o princípio da separação dos Poderes – que é também cláusula
pétrea, assim como a Federação e os direitos e garantias individuais.
Na célebre obra De l’Esprit des Lois, em 1748, Montesquieu criou a
doutrina da separação dos Poderes exatamente para evitar a concentração
de poder e preservar as liberdades e os direitos fundamentais. E nos The
Federalist Papers, escritos durante o período de realização da
Convenção de Filadélfia, que deu origem ao presidencialismo e à
Constituição americana de 1787, James Madison foi além e preconizou a
adoção do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) para
realizar o controle recíproco dos Poderes no exercício de suas funções
constitucionais, evitando abusos e excessos do que denominou majority
tyranny (Federalist n.º 51). Finalmente, Alexander Hamilton observou
ainda que a garantia da supremacia da Constituição é responsabilidade do
Poder Judiciário em razão da natureza de suas funções: “... the
judiciary, from the nature of its functions, will always be the least
dangerous to the political rights of the Constitution” (Federalist n.º
78).
O Poder Executivo dirige a administração pública (“holds the sword”), o
Poder Legislativo controla as finanças do Estado (commands the purse) e
prescreve as normas legais (“prescribe the rules”...) e o Poder
Judiciário julga de acordo com a Constituição e as leis (“The
interpretation of the laws is the proper and peculiar province of the
courts”).
Os ministros do Supremo Tribunal Federal – tal como os justices da
Suprema Corte americana – não são eleitos pelo voto popular. São,
todavia, os guardiães da vontade do povo expressa na Assembleia
Constituinte e formalizada na Constituição. E sua nomeação transcende o
mandato do presidente que os nomeou após prévia aprovação do Senado. A
vitaliciedade garante sua independência para realizar os julgamentos. [que pode ser perfeitamente substituída por um mandato fixo de dez anos - evitando que muitos ministros se sintam tentados a confundir a condição de ministro do Supremo Tribunal Federal com 'supremo' ministro do Absoluto Tribunal Federal;
outra vantagem da não vitaliciedade é que evita que alguns ministros se considerem insubstituíveis.]
A
vedação de atividade político-partidária lhes confere isenção e
imparcialidade ao interpretar a Constituição e as leis do País, sem
estar adstritos às contingências de mandato eletivo, o que assegura a
estabilidade jurídica e a promoção do bem comum, e não de interesses de
facções políticas.
No livro A Preface to Democratic Theory, Robert Dahl observa que James
Madison, ao referir-se ao princípio republicano, preconiza a necessidade
de instituição “that will blend stability and liberty” de maneira a
assegurar os interesses comuns e permanentes da comunidade (Federalist
n.º 63). Alexander Bickel, professor de Yale, na obra The Least
Dangerous Branch – The Supreme Court at the Bar of Politics, argumenta
que, desde Marbury versus Madison em 1803, quando a Suprema Corte criou o
judicial review, esta tem a última palavra sobre a interpretação da
Constituição. E observa que a Suprema Corte tem mantido contínuo
colóquio com as instituições políticas para alcançar acomodação e
compromisso sem abandono de princípio, destacando o caráter
contramajoritário do seu papel. Laurence Tribe, professor de Harvard, no
livro On Reading the Constitution argumenta que interpretar a
Constituição não é reescrevê-la. E a despeito de teorias de
interpretação e hermenêutica com alto grau de abstração dos princípios e
normas constitucionais, é preciso estabelecer linha divisória entre o
que a Constituição diz e o que o intérprete deseja que ela diga, sob
pena de violação da vontade do povo manifestada na assembleia
constituinte. Alexander Hamilton já observara que não se deve supor que o
Judiciário seja superior ao Legislativo, mas sim que o poder do povo
expresso na Constituição é superior a ambos.
O governo democrático deve respeitar a liberdade de expressão e de
imprensa, admitir críticas e garantir o acesso de todos às informações
governamentais. Não há democracia sem liberdade, pluralidade de ideias e
de partidos políticos e tolerância recíproca na convivência e na
diversidade. E a Constituição estabelece que compete ao Supremo Tribunal
Federal, precipuamente, a guarda da Constituição. E ao Ministério
Público, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático.
Geraldo Brindeiro, ex-procurador-geral da República - O Estado de S. Paulo
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