O Globo
Forças Armadas acertam quando atuam como órgão de estado
O relato do que as Forças Armadas estão fazendo neste momento é
interessante porque ilumina exatamente o seu papel no meio de uma
pandemia num país continental, com gigantescos desafios. Sendo, como têm
que ser, uma instituição do Estado, e não braço de um governo, tudo
fica mais fácil de ver e de valorizar. Lá dentro se diz que é nisso que
as tropas estão realmente pensando, no seu papel tradicional. Enquanto
isso, manifestantes bolsonaristas fazem passeatas pedindo intervenção
militar, e o próprio presidente fez constantes ameaças que alimentaram
velhas dúvidas e temores. Certos fatos incendiaram ainda mais o debate,
como o dia em que o ministro Azevedo sobrevoou com o presidente uma
dessas manifestações que pediam o fechamento do Supremo.
Na época das Olimpíadas havia uma grande preocupação com o risco de
atentados terroristas. Houve um investimento nas Forças Armadas em
treinamento e qualificação para ações de defesa contra ameaças química,
nuclear e radiológica. Isso ficou como um legado e foi usado agora no
combate ao Covid-19. Militares fizeram mais de duas mil descontaminações
de espaços públicos. E até por ser em áreas de muita população essas
ações tiveram mais visibilidade. Estiveram em locais de mais difícil
acesso, ilha de Marajó, por exemplo, para distribuir cestas básicas. Ao
todo, em vários pontos do país, e até aldeias indígenas, em três meses
distribuíram mais de meio milhão de cestas básicas. — Tem um programa que nasceu também na esteira dos Jogos Olímpicos, em
que crianças carentes saíam da escola e iam no contraturno para os
quartéis para a prática de esporte. Trinta mil crianças nesse programa.
De uma hora para outra, as escolas fecharam, e eles não iam mais para o
reforço escolar. Ficaram sem duas refeições. O dinheiro foi revertido em
kit alimentação para a família dos jovens — conta um oficial.
Um programa entre CNI, Senai e hospitais, para consertar respiradores no
Brasil inteiro, foi possível porque os aviões da FAB ou caminhões do
Exército ficaram no leva e traz de equipamentos. Foram 1.500
respiradores consertados. Quando os restaurantes à beira das rodovias
pararam, o país poderia ter tido um colapso logístico, porque os
caminhoneiros não teriam onde se alimentar. Os militares fizeram pontos
de parada e distribuição de quentinha para os motoristas.
Médicos militares foram deslocados para alguns hospitais com falta aguda
de pessoal. Saíram, por exemplo, do Sul, que estava pouco afetado, para
regiões de quase colapso como Macapá, São Gabriel da Cachoeira e
Tabatinga. Porque estiveram em várias frentes de combate o índice de contaminação
de militares foi de 2%, considerado alto. Morreram 20 dos 7.500
contaminados, mas já estão recuperados 80%. — O militar mesmo está com pouco tempo para discussão política. Há
pontos no país onde só nós conseguimos chegar com rapidez, uma ONG bem
intencionada consegue ajudar, mas as Forças Armadas fazem em grande
volume. Isso sem falar em todo o trabalho de sempre, de patrulhamento,
de vigilância de fronteira — me disse um oficial.
A politização das Forças Armadas foi evitada durante 30 anos. O
presidente Jair Bolsonaro, de forma deliberada, fez uma mistura entre
seu governo e o poder que elas têm. Se os militares forem viabilizadores
de um governo que estimula o conflito, e que está em crise, será, como
tenho dito aqui, um risco para o país e para a própria instituição.
Míriam Leitão, jornalista - O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário