Sobrará um buraco de dor se a Nação não empreender mudanças e melhorar a qualidade de vida de milhões de desassistidos
O Brasil chegou a 72.100 mortos por covid-19 no fim de semana passado,
de acordo com os dados oficiais. Este morticínio sem precedentes na
história recente do País será reduzido a um buraco de dor e indignação
na alma nacional se dele a Nação não for capaz de extrair algum sentido e
unir todas as suas forças para empreender as mudanças necessárias à
melhoria da qualidade de vida de milhões de cidadãos desassistidos e,
assim, tornar esta terra um lugar menos hostil para viver com pouco ou
quase nenhum dinheiro.
Todos foram atingidos pela pandemia, é fato, mas ela se mostrou
particularmente cruel para as camadas mais pobres da sociedade, tanto do
ponto de vista sanitário como econômico. Aos milhões de desvalidos cuja
renda advém do trabalho informal não foi dado se proteger da exposição
ao novo coronavírus por meio do trabalho remoto. Ou mesmo quando
empregados formalmente, muitos exercem funções que não permitem o
chamado home office. Muito longe disso.
As péssimas condições de habitação dos cerca de 20 milhões de
brasileiros que vivem nas favelas País afora nem sequer tornam
fisicamente possível a prática do distanciamento social, tão preconizada
pelas autoridades sanitárias como forma eficaz de conter o avanço da
covid-19. A propósito, em maio o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) divulgou relatório mostrando que no ano passado havia
no País 5,12 milhões de habitações nos chamados “aglomerados
subnormais”, termo técnico para as velhas favelas. O número é 60% maior
do que o apurado no Censo de 2010 (3,22 milhões de lares), dando a
dimensão de nossa decadência social na última década e, agora, do
altíssimo risco sanitário a que estão expostos os que vivem em condições
sub-humanas.
Em que pese o inquestionável valor do Sistema Único de Saúde (SUS), sem o
qual a história da pandemia de covid-19 no Brasil certamente seria
outra, muitíssimo mais sombria, também são os mais pobres que estão
sujeitos às limitações de atendimento pelo sistema público de saúde
quando adoecem.
A pandemia expôs mazelas intratadas há muitas décadas. Passa da hora de a
Nação unir esforços para superá-las. Do contrário, um quadro que hoje
já se revela desumano haverá de piorar muito no momento pós-pandemia,
quando todos os seus efeitos nocivos serão sentidos em sua inteireza. Um
estudo conduzido pela Organização das Nações Unidas (ONU) indica que a
pandemia jogará cerca de 15 milhões de brasileiros na pobreza, ou seja, o
segmento que vive com uma renda inferior a US$ 5,50 por dia. Na América
Latina, alertou o secretário-geral da ONU, António Guterres, serão 45
milhões vivendo nestas condições após a fase mais aguda da pandemia.
A sociedade e as três esferas de governo precisam olhar com muito mais
atenção para os milhões de brasileiros que estão alijados da cidadania e
da dignidade por falta de meios de sustento. Se parece ser consensual
que em muitas localidades já não é possível acabar com a existência das
favelas, é mais do que hora de adotar políticas públicas que assegurem a
seus moradores as condições que lhes permitam viver com segurança,
inclusive segurança patrimonial, por meio da regularização dos títulos
de propriedade nesses locais. É imperioso também pensar em soluções
urbanísticas para mitigar os riscos à vida nas favelas, não só os riscos
relacionados à violência urbana, urgentes, sem dúvida, mas também os
relativos às residências com pouca ou nenhuma resistência a intempéries e
expostas a toda sorte de ameaças sanitárias.
A Nação precisa encontrar um sentido transformador na pandemia. Em
conversa com Luciano Huck, publicada pelo Estado, Thomas Friedman, do
New York Times, alertou que “pandemias financeiras e biológicas expõem
governos que não estão à altura do desafio”. É responsabilidade de cada
cidadão refletir sobre isso.
O Estado de S. Paulo - Editorial
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