Marcel van Hattem - Vozes
Um cruzeiro com Wesley Safadão com direito a show particular em uma ilha das Bahamas é mais importante do que discutir bem uma reforma tributária que aguarda décadas para ser pautada e aprovada. Surreal? Infelizmente, não: é real.
Para poder embarcar na última segunda-feira (10) e tirar uma semana de férias antes do recesso, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), determinou que a semana anterior seria de "esforço concentrado”. O que isso significa?
Sessões no plenário diárias, de segunda a sexta-feira, para deliberar sobre a Proposta de Emenda à Constituição número 45.
O relatório de mais de 140 páginas, antes guardado a sete chaves, fora apresentado dias antes, alterado na noite anterior à votação e novamente alterado – acredite se quiser – durante o próprio processo de votação! E sempre com alterações substanciais…
Na semana passada, todas as reuniões de comissões, todas as audiências públicas e quaisquer outras atividades parlamentares programadas para serem realizadas na Câmara foram canceladas por ordem do presidente Lira.
Até mesmo as inofensivas sessões solenes, algumas com centenas de convidados confirmados, dentre os quais muitos já em Brasília com passagens e hospedagens pagas dos próprios bolsos, foram canceladas. Sua Alteza determinou, não tem discussão. O regimento permite? Não importa! Rei Arthur estava irredutível!
Na semana seguinte precisava embarcar com Wesley Safadão às Bahamas, nada poderia tirar seu foco de aprovar uma reforma tributária antes disso.
A dita reforma tributária aprovada, sobre a qual tratarei no mérito mais minuciosamente em um próximo artigo, é um descalabro sob o ponto de vista da sua tramitação.
Foi apresentada como PEC 45 em 2019 sob a presidência de Rodrigo Maia e
com seu apoio.
Era originalmente uma boa PEC, aliás, que sempre contou
com meu apoio e do partido Novo por simplificar a cobrança de tributos
via Imposto sobre o Valor Agregado (o IVA, adotado pela esmagadora
maioria dos países no mundo).
Tramitou, porém, sem que se aprovasse na
época relatório em comissão especial. Não teve apresentação de emendas, debate de texto, votação de destaques, nada!
E assim se fez um processo legislativo torto, desengonçado, ilegal e antirregimental para aprovar uma reforma tributária que sempre foi necessária, mas cujo conteúdo final foi, no mínimo, completamente duvidoso. Nem mesmo seu relator, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), conhecia o conteúdo integralmente.
Após a aprovação do texto principal, por exemplo, ao apresentar sua "emenda aglutinativa” que não aglutinava nada com nada, Ribeiro demonstrava da tribuna da Câmara surpresa ao perceber que um tal “hidrogênio verde”, cuja inclusão no rol de produtos sujeitos a regimes especiais foi solicitada pelo deputado Mauro Benevides (PDT-CE), não constava do texto que tinha sido “subido" pela assessoria no sistema.
E agora? Nem Lira sabia bem o que dizer…
Aguinaldo Ribeiro, já à época relator da PEC, havia caído em desgraça na virada de 2020 a 2021 porque apoiou o autor da PEC, Baleia Rossi (MDB-SP), como candidato de Maia à presidência da Câmara justamente contra Sua Alteza Arthur Lira, que concorria então pela primeira vez. Como consequência, Lira determinou em um de seus primeiros atos como presidente, há dois anos, o fim dos trabalhos da comissão especial enquanto Ribeiro lia o seu relatório na comissão, e focou na reforma do imposto de renda proposta pelo governo Bolsonaro. Foi então aprovada na Câmara, mas está parada no Senado.
O mundo dá voltas: neste 2023 Aguinaldo e Baleia redimiram-se ao apoiarem Lira em sua reeleição e, assim, voltava a PEC 45 à pauta. Mas a tramitação foi como Sua Alteza quis, não como o regimento da Câmara determina.
Criou-se um grupo de trabalho sem respeitar a proporcionalidade partidária, com apenas 12 deputados, dos quais três do Amazonas que tem apenas 4 milhões de habitantes e nenhum de toda a região Sul do Brasil, que possui 30 milhões; e com somente um deputado dentre os mais de 200 que se elegeram em 2022 e que não exerciam mandato na legislatura passada.
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Em resumo: foi criada uma comissão especial fake, composta por um grupo de deputados selecionados a dedo e presididos pelo deputado petista Reginaldo Lopes (PT-MG), cujo relator, o mesmo Aguinaldo Ribeiro, lavrou seu texto de acordo com o que considerava ter colhido de “contribuições” dos seus membros.
Não teve apresentação de emendas, debate de texto, votação de destaques, nada!
Só um relatório, guardado a sete chaves, apresentado no dia 22 de junho, e que, para a surpresa de ninguém, passou a ser criticado por setores econômicos e entes federativos, bem como por parlamentares, pelo seu conteúdo e, principalmente, pela total ausência de debate.
Anunciada a semana do “esforço concentrado” pré-cruzeiro de Safadão para aprovar a dita reforma tributária, houve périplo a Brasília de governadores, prefeitos, especialistas no tema de diversas áreas (em particular do direito tributário) e de lobistas.
Se Brasília fosse uma peça musical, a dissonância seria sua gritante marca.
Mas a determinação era votar, era aprovar, independentemente do lancinante escarcéu. O prazo? Claro, sexta-feira para que Sua Alteza pudesse embarcar.
Nem mencionarei aqui a liberação de emendas parlamentares e nomeações de cargos durante a semana para não generalizar a prática fisiológica.
O novo texto foi finalmente protocolado na noite de quarta-feira (5), às 20h48: 140 páginas dentre as quais mais de quarenta com alterações propostas à Constituição. Não é qualquer coisa.
Mesmo assim, muito do que havia sido acordado, inclusive com governadores e outros atores políticos, não constava do texto apresentado.
Nova versão, prometia Arthur Lira da Mesa já se aproximando da meia-noite, seria apresentada no decorrer do dia seguinte.
Enquanto isso, parlamentares poderiam se revezar na tribuna a partir das 11h da manhã de quinta-feira para discutir um texto que, já estava claro, não seria o texto votado.
Finalmente, às 18h55 do mesmo dia, após encerrada a discussão do tema – mas não do texto que iria a votação –, o relatório do texto que seria votado foi protocolado. Trechos importantes, porém, ficaram de fora. Trava indiscutível para conter aumento de carga tributária na União? Fora. Fundo de Desenvolvimento Regional que contemple também regiões pobres do Sul e Sudeste? Fora – a regulação agora passaria a ser feita apenas por Lei Complementar.
Mesmo assim, tinha de votar. E aprovada foi a "reforma", com votação aberta às 21h e encerrada às 21h49, com 382 votos a favor e 118 contra (incluindo o meu voto contrário, a começar em protesto contra rito tão vergonhoso).
Nem mencionarei aqui a liberação de emendas parlamentares e nomeações de cargos durante a semana para não generalizar a prática fisiológica, pois houve muitos votos convictos a favor da reforma que não dependeram desse incentivo.
Mas que houve troca de favores, houve, e muita!
Minutos antes do encerramento da votação do texto principal, porém, nova surpresa: mais especificamente às 21h43 protocolava-se uma emenda aglutinativa ao texto, completamente antirregimental, que criava novos tributos (contribuições estaduais), prorrogava benefícios fiscais às montadoras, além de incluir mais exceções passíveis de regimes especiais.
Ainda atônito com a notícia, quem entende de processo legislativo e defende o Parlamento não conseguia acreditar na desfaçatez.
Mesmo assim, a vitória da manobra foi fácil: mais 379 votos a 114.
A única notícia boa veio apenas no dia seguinte: os incentivos às montadoras foram retirados em destaque feito ao texto por apenas um voto. O restante, só alegria – e tristeza para quem paga impostos.
Nesta semana, reina a paz na Câmara dos Deputados aqui em Brasília. A dissonância da semana que passou foi substituída pelo silêncio de um plenário vazio que não realizará uma única sessão – afinal, o cruzeiro com Sua Alteza partiu da Flórida na segunda-feira e nada pode acontecer na sua ausência. A Câmara está parada.
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A dita reforma tributária foi aprovada, desse jeito atabalhoado mesmo, e agora vai para o Senado.
Mas o cruzeiro de Wesley Safadão, mostram os vídeos que correm na internet, está animado.
E a gente assiste aqui, de camarote, às imagens de muita gela, Ciroc, a turma curtindo a balada e dando virote.
E o povo, aqui de bobeira, sem ninguém na geladeira pra aprender que o amor venceu e não é brincadeira.
Marcel van Hattem, deputado federal em segundo mandato - Coluna Gazeta do Povo - VOZES
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