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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Um timaço sem torcedores - Augusto Nunes

Revista Oeste

Confira a ficha resumida dos supercraques que jogam de toga

 

Foto oficial da composição do STF, em 3 de agosto de 2023 | Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
 
Se o Congresso engolir a indicação de Flávio Dino, a audaciosa demonstração de covardia vai apenas reiterar que, no Brasil, o que está péssimo sempre pode piorar. 
Mas a composição do Supremo Tribunal Federal não precisou ser reforçada por um comunista maranhense desprovido de notório saber jurídico e ilibada reputação para assumir a liderança do ranking das mais vergonhosas desde o nascimento do Pretório Excelso. 
Para isso bastou o desempenho da gaúcha Rosa Weber, ocupante até recentemente da vaga ainda sem dona. 
Mesmo um Flávio Dino terá de dar duro para merecer o lugar que foi da ministra que enxergou nas depredações ocorridas em 8 de janeiro a versão moderna do ataque militar japonês à base norte-americana de Pearl Harbor.

A criadora do Dia da Infâmia à brasileira fez bonito num timaço. É o que berram as capivaras em miniatura dos dez parceiros de Rosa Weber, relacionados pelo critério de antiguidade no Egrégio Plenário. Confira:

Gilmar Mendes: Escolhido pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, estreou em junho de 2002 e tem emprego garantido até 2030. Joga nas 11. Decano desde o ano passado, é também o chefe supremo da bancada majoritária, ministro da guerra contra a Constituição e o equilíbrio dos Poderes, porta-voz da Corte em momentos de crise brava, conselheiro dos hesitantes, diretor do departamento de conversões, técnico e capitão do Timão da Toga, organizador de seminários no exterior e gerente da usina de habeas corpus para culpados.
 
Cármen Lúcia:
Indicada por Lula, chegou em junho de 2006 e só sairá em 2029. A performance da ministra é dividida em três fases. Na primeira, ouvia conselhos do pai em conversas telefônicas diárias e decidia com sensatez. 
Com a orfandade, passou a consultar Celso de Mello e a acompanhar o voto do então decano. 
Com a aposentadoria do Pavão de Tatuí, tornou-se a discípula mais esforçada de Gilmar Mendes. Na primeira fase, era favorável à prisão depois da condenação em segunda instância. Agora é contra. Aconselhada pelo pai, virou manchete com a frase “cala a boca já morreu”. Instruída por Gilmar, aprovou a censura com prazo de validade.

Dias Toffoli: Nomeado por Lula, assumiu em outubro de 2009 a vaga que será reaberta em 2042. Reprovado duas vezes no concurso de ingresso na magistratura paulista, achou melhor fazer carreira no PT. Foi assessor de José Dirceu, advogado do PT, advogado de Lula e chefe da Advocacia-Geral da União. Em seus dois primeiros anos no STF, colegas mais velhos usavam o codinome “Estagiário” para referir-se ao novato. 
Manuscritos recentes avisam que vai aposentar-se sem ter conseguido virar juiz
 
Luiz Fux: Escolhido por Dilma Rousseff, entrou em 3 de março de 2011 e ficará no emprego até 2028. Único magistrado por concurso do STF, tocar guitarra tornou-se seu hobby quando era juiz de Direito no interior fluminense. Pela silenciosa performance dos últimos quatro anos, o aplicado guitarrista transformou em hobby o julgamento de processos no Supremo.

Luís Roberto Barroso:
Indicado por Dilma, chegou em junho de 2013 à Corte que deixará em 2033. Atual presidente do STF, protagonizou em março de 2018 um instrutivo bate-boca com Gilmar Mendes.  
Acusado de “dar uma de esperto”, Barroso foi à réplica: “Você é uma pessoa horrível. A mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”.   As batalhas contra Jair Bolsonaro encerraram a desavença. 
Na festa de posse de Barroso, ambos foram fofos. “A história de Vossa Excelência é lastro seguro de dignidade”, afagou Gilmar. “Guardarei no coração essas palavras dirigidas a mim”, derreteu-se Barroso.                Essa troca de carícias verbais prova que o antigo tribunal virou partido. Muitos juízes de verdade optaram pela ruptura definitiva depois de gravemente ofendidos. 
Políticos togados só não se reconciliam com manés perdedores e gente que amola.

Edson Fachin: Premiado por Dilma, está no STF desde junho de 2015 e vai aposentar-se em 2033. 
Chegou ao tribunal por ter sido cabo eleitoral no Paraná da madrinha candidata à reeleição. 
Admirador juramentado do MST e simpatizante confesso do marxismo-leninismo, fingiu durante dois anos que apoiava a Operação Lava Jato. Rasgou a fantasia ao anular todas as bandalheiras cometidas por Lula com uma vigarice de assustar qualquer rábula: o ex-presidente presidiário só poderia ser julgado em Brasília, nunca em Curitiba. 
O inventor da Lei do CEP também esbanjou criatividade em sua passagem pelo Tribunal Superior Eleitoral. 
Foi ele quem descobriu, por exemplo, que a maior produtora de fake news destinada a brasileiros é a Macedônia do Norte.

Alexandre de Moraes: Nomeado por Michel Temer, chegou ao Supremo em março de 2017 e pretende continuar acampado por lá até 2043.       Entre o dia da posse e janeiro de 2019, pensou no que fazer. 
Há mais de quatro anos anda fazendo o exato contrário do que ensinou nas aulas de Direito Constitucional e reiterou numa pilha de livros sobre Direito Constitucional.  
Numa sequência de assombrar o mais audacioso chicaneiro, recriou o preso político, o exilado político e o perseguido político. 
Sem pausas para tomar fôlego, inventou o inquérito secreto em que o próprio ministro figura como réu, delegado, promotor, juiz e julgador de recursos, o flagrante perpétuo, a prisão preventiva sem prazo para acabar, a prisão provisória sem prazo de validade, a captura por rebanho, o julgamento por atacado, a condenação sem sentença, a meia-liberdade, o réu sem direito a advogado, o Programa Nacional de Distribuição de Tornozeleiras Eletrônicas e a multa com cinco zeros, fora o resto. 
No momento, usa o que lhe resta de imaginação para explicar a morte sem julgamento de Cleriston Pereira da Cunha, impedido pela permanência na cadeia de tratar doenças crônicas letais.

Nunes Marques: Indicado por Jair Bolsonaro, chegou ao STF em novembro de 2020 e vai sair em 2047. Já teve um almoço reservado com Lula. A dupla informou que a conversa foi bastante cordial. Almoços, jantares e conversas do gênero serão reprisados nos próximos 24 anos com a bancada majoritária no STF. Nunes Marques vai deixando claro que não tem vocação para discordar de quem manda.

André Mendonça: Nomeado por Jair Bolsonaro, instalou-se na Corte em dezembro de 2021 e ali ficará até 2047. 
Chegou lá com a imagem de “terrivelmente evangélico”. 
Evangélico Mendonça é, mas nada tem de terrível. 
Parecia disposto a enfrentar a feroz bancada liderada por Gilmar Mendes. Ao julgar outro pedido de habeas corpus encaminhado por Cleriston Pereira da Cunha, formalizou a rendição. 
Além de negar-se a salvar o condenado à morte, Mendonça fez questão de remeter a Moraes uma cópia da decisão repulsiva.

Cristiano Zanin: Nomeado por Lula em agosto deste ano, tem emprego garantido até a aposentadoria em 2050. 
O currículo do calouro Zanin se limita a duas anotações relevantes. Primeira: ele foi o principal advogado de Lula. Segunda: Gilmar Mendes achou tão comovente o esforço do jovem doutor que, numa sessão do Supremo, fez questão de homenageá-lo com outra invenção — o choro convulsivo sem lágrimas.

Entrosamento é o que não falta ao Timão da Toga
O problema é a plateia. 
Se é que existem, seus torcedores nunca aplaudem os craques que, quando dão as caras em qualquer rua de qualquer país, são invariavelmente hostilizados por quem os reconhece. 
As coisas pioraram com a morte de Cleriston
A imensa torcida adversária perdeu o medo de manifestar-se nas ruas. 
E tem tudo para indignar-se mais ainda caso entre em campo um Flávio Dino. 
É um campeão de impopularidade. E está irremediavelmente fora de forma.

Leia também “Um morto assombra o Supremo”
 
 
Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste 
 
 

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Supremo deboche - Augusto Nunes

Revista Oeste

O drama vivido por milhares de brasileiros é tratado como piada pelo comando do Poder Judiciário

 

 Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber | Foto: Montagem Revista Oeste/Reprodução/Marcos Oliveira/Agência Senado/Carlos Alves Moura/STF

Tão previsível quanto a mudança das estações, a troca de guarda no Supremo Tribunal Federal é menos empolgante que festa de batizado na sacristia da igrejinha
A tradição determina que os dois primeiros da fila de 11 ministros, formada pelo critério da antiguidade, sejam alojados a cada dois anos nos cargos de presidente e vice-presidente. 
Sempre pelo placar de 10 a 1: as boas maneiras ordenam que os previamente escolhidos votem nos que irão substituí-los na mudança seguinte. 
Ao divulgar o resultado, portanto, o presidente em fim de mandato está dispensado de identificar os homenageados com o voto solitário. Não precisa, certo?
 
Precisa, sim, decidiu Rosa Weber neste 9 de agosto, na primeira etapa da cerimônia do adeus que se encerrará com a aposentadoria em setembro. O roteiro começou a desandar quando Rosa Weber cismou de enxergar na cerimônia protocolar uma eleição de verdade, só que sem urna eletrônica e com cédulas de papel.  
Foi assim que o que seria uma sessão ligeiramente mais solene acabou transformada numa bizarra mistura de hora do recreio num antigo curso de madureza com happy hour da turma da quarta série 30 anos depois da formatura.

  Todos estavam felizes na quarta-feira mais que perfeita. Barroso transpirava alegria por assumir o comando da tropa que derrotou o bolsonarismo na frente suprema

(...)

Ainda sorria quando ouviu o comentário do também risonho Gilmar Mendes: — Vai colocar esse pessoal num inquérito…

Mero palpite? Sugestão explícita? Outra declaração de guerra? Nada disso, parecia informar a expressão “esse pessoal”, usada pelo decano para referir-se aos dez ministros que haviam imposto a Moraes o primeiro revés em mais de quatro anos de confrontos. O comentário seria remetido ao baú dos chistes e pilhérias em juridiquês se a réplica do artilheiro do Timão da Toga não tivesse escancarado o espetáculo do deboche:

— É que a eleição não foi no TSE…

Moraes ouvira claramente o elogio da desfaçatez, avisou a rapidez da resposta.

(.....)
Só o golpe de 8 de janeiro resultou em mais seis inquéritos secretos, sucessivos recordes na modalidade captura em massa, centenas de prisões sem julgamento, milhares de oitivas sem pé nem cabeça, uma infinidade de castigos arbitrários e a eternização da insegurança jurídica. “Tem muita gente pra prendê, muita multa pra aplicá”, não param de ouvir os botões da toga. 
 
Sobrancelhas e pestanas se cumprimentaram quando a garganta de Barroso qualificou de “luminosa” a passagem da introvertida gaúcha pela Presidência do STF. Ele vai suceder Rosa, mas nem tentará substituí-la. É tarefa impossível, conformou-se, alheio aos dicionários que teimam em garantir que sucessor é a mesma coisa que substituto.

Hoje o Supremo escancarou o DEBOCHE e o DESPREZO com que os ministros tratam a cidadania brasileira. Gilmar Mendes fez uma pergunta jocosa a Alexandre de Moraes ao questioná-lo se iria incluir os colegas “no inquérito” por ter perdido a eleição para vice-presidente do STF. Moraes… pic.twitter.com/EQUT2iJQn3— Marcel van Hattem (@marcelvanhattem) August 9, 2023

Moraes estava feliz desde o começo da manhã, quando soube da prisão preventiva de Silvinei Vasques, ex-comandante da Polícia Rodoviária Federal, acusado de ter dificultado a movimentação de eleitores lulistas no dia da votação em segundo turno. 
A distribuição de mais um lote de tornozeleiras eletrônicas e castigos adicionais foi promovida pela operação Constituição Cidadã. 
Era esse o adjetivo colado pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte, ao conjunto de normas aprovado em 1987 e agora em frangalhos. A marcha da insensatez segue seu curso. Já não há limites para o deboche perverso.  
Nem haverá salvação para os desprovidos de compaixão.
 


Leia também “A danação de Dino”

 Coluna Augusto Nunes, Revista Oeste

 

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Dias de loucura - Augusto Nunes

Revista Oeste

É preciso impedir que supremos superpoderes transformem 2023 no mais infame dos anos

 

O presidente do TSE, Alexandre de Moraes | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 Cabelos desgrenhados em veloz processo de extinção, o paletó de quem dorme vestido, a gravata estreita demais para camuflar a curvatura do ventre, a expressão entediada — nada na aparência do homem que empunhava um microfone induziu a pequena plateia a desconfiar que logo testemunharia um momento histórico. “Dados atualizados da invasão do Capitólio, ministro Alexandre de Moraes”, preparou a assistência o orador Dias Toffoli. Assim começou, em 14 de dezembro de 2022, a mais audaciosa ofensiva da dupla de artilheiros em ação no Supremo Tribunal Federal. “Novecentas e sessenta e quatro pessoas já foram detidas. Nos cinquenta Estados. E acusadas de crimes cometidos desde 6 de janeiro de 2021”, foi em frente o orador. “E quatrocentas e sessenta e cinco fizeram acordos se declarando culpadas com o Ministério Público”.  

O impetuoso parceiro subiu ao palanque improvisado pronto para o arremate. “Antes de dizê o que eu ia falar, eu fiquei feliz com a fala do ministro Toffoli”, emocionou-se Moraes em paulistês interiorano. “Porque comparando os números têm muita gente pra prendê”, fez uma pausa e subiu o tom de voz para o fecho glorioso: “E muita multa pra aplicá!”. A plateia formada por gente que ajudou a eleger um governo favorável à “política de desencarceramento” saudou com risos e aplausos a advertência do Supremo Carcereiro. 
Menos de um mês depois, o surto de vandalismo agravado pela invasão dos prédios que abrigam as sedes dos Três Poderes animou Moraes a deixar claro que havia mesmo muita gente implorando por cadeia.
 Em 9 de janeiro, além dos 41 detidos em outras paragens, 1.406 brasileiros foram capturados na capital federal. 
E Moraes se tornou o novo recordista mundial da modalidade não olímpica prisões em massa.  
 
Nenhum exagero, recitaram em coro porta-vozes do governo Lula fantasiados de jornalista. A democracia brasileira seria sepultada em cova rasa se Moraes não tivesse sufocado o que o consórcio da imprensa batizou de Intentona Bolsonarista. A óbvia alusão à Intentona Comunista — uma sequência de insurreições militares que tentou derrubar em novembro de 1935 o governo de Getúlio Vargas — é só um monumento à ignorância histórica.  
A desastrosa quartelada conduzida por tentativa de golpe liderada por Luiz Carlos Prestes provocou pouco mais de 100 mortes. 
Nos distúrbios de 8 de janeiro não morreu ninguém.  
Em 1936, foram julgados 35 integrantes do alto comando da Intentona Comunista
Passados mais de três meses, os presídios da Papuda e da Colmeia continuam atulhados de homens e mulheres aos quais foram negados o devido processo legal e o direito de ampla defesa.  
Os colunistas de picadeiro que resistiram à intentona que não houve acabam de ser baleados pelos vídeos que mostram o assombroso desempenho do general lulista Gonçalves Dias, em 8 de janeiro, durante a invasão do Palácio do Planalto.  
O líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, em julgamento pelo Tribunal de Segurança, 1937 | Foto: Wikimedia Commons
Com a placidez de um bebê de colo, o agora ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional contempla a movimentação das tropas inimigas. Gentil como um guia turístico, oferece água aos futuros prisioneiros de guerra e indica-lhes a saída mais segura. 
O presidente da República, os devotos da seita e os ministros do STF fizeram de conta que não viram nada de mais. 
Lula jurou que não sabia de nada, que se houve algo errado a culpa é do velho amigo dele. 
Parlamentares do PT garantem que o chefe foi traído. Moraes deixou claro que não perde tempo com criminosos que votaram no candidato certo. Primeiro, ordenou à Polícia Federal que esperasse 48 horas para ouvir o que tem a dizer o general amigo de Lula. Em seguida, comunicou que vai manter na cadeia Anderson Torres. Ex-ministro de Bolsonaro, Torres era secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e estava nos Estados Unidos em 8 de janeiro. Foi preso por omissão. Mas vai continuar preso por outros motivos que o ministro preferiu omitir. 
Os demais superjuízes não deram um pio sobre a troca de gentilezas entre Gonçalves Dias e os depredadores. 

A multidão de prisioneiros sem julgamento, formada exclusivamente por eleitores que não votaram em Lula, é a vitória da perversidade sobre a compaixão 

Como o caso do general pode esperar, os 11 Doutores enfim começaram a decidir o destino do primeiro grupo de acusados sabe Deus do quê, formado por 100 seres humanos. Exatamente 100; nem mais, nem menos. 
Como o Supremo mandou às favas a obrigatória individualização de conduta, a multidão encarcerada foi dividida em grupos (“lotes”, preferem os semideuses togados). 
A inovação pode juntar num mesmo balaio depredadores compulsivos e manifestantes que lastimavam a volta de Lula longe da Praça dos Três Poderes. 
Como o julgamento é virtual, as vítimas do arbítrio ficam nas celas, os doutores deliberam em casa e advogados sem acesso aos autos fazem a defesa oral à distância. 
Também os que saíram da cadeia não recuperaram a liberdade. 
São prisioneiros do medo, alimentado o tempo todo pelo uso da tornozeleira e por outras restrições ultrajantes. 
 
Foto: Cristyan Costa
O ministro que acredita ter sufocado a Intentona Bolsonarista talvez ignore que em 1936, ao aprovar a deportação de Olga Benario Prestes para a Alemanha nazista, o Supremo Tribunal Federal conheceu sua hora mais escura. Alheia à Constituição, aos códigos legais, à ascendência judia e à gravidez da ré, a Corte condenou à morte a mulher de Luiz Carlos Prestes
Em tese, aplicou-se a pena de expulsão a uma estrangeira presa meses antes por ter participado da Intentona Comunista. Olga foi assassinada num campo de concentração. A criança que sobrevivera à escala no inferno foi resgatada por uma campanha internacional liderada pela avó. A decisão do STF inscreveu em sua história o dia da infâmia.
 
Olga Benário Prestes | Foto: Wikimedia Commons

Em 2019, quando Dias Toffoli atropelou o sistema acusatório brasileiro, confiscou atribuições do Ministério Público, abriu o inquérito das fake news e entregou sua condução a Alexandre de Moraes, poucos juristas enxergaram um vigoroso pontapé na Constituição. 
Quatro anos, nove inquéritos abusivos e incontáveis ilegalidades depois, a democracia brasileira é deformada pela existência de exilados perseguidos pelo Judiciário, presos políticos, indultos presidenciais atirados ao lixo, jornalistas proibidos de opinar, empresários sitiados por multas multimilionárias, contas bancárias e redes sociais bloqueadas, normas constitucionais em frangalhos, cidadãos sem passaporte além do medo epidêmico infundido por ditaduras disfarçadas
A multidão de prisioneiros sem julgamento, formada exclusivamente por eleitores que não votaram em Lula, é a vitória da perversidade sobre a Justiça. O Brasil que pensa vem colecionando dias de loucura. É preciso impedir que supremos superpoderes transformem 2023 no mais infame dos anos.

Leia também “O que aconteceu no 8 de janeiro”

Augusto Nunes, colunista - Revista  Oeste


segunda-feira, 29 de março de 2021

Gilmar não enganaria Tom Jobim - Revista Oeste

Augusto Nunes 

O especialista em olhares não compraria um carro usado do Juiz dos Juízes

Paulo Francis dizia que o grande ator não é gente. “É outra coisa, muito acima de gente comum”, garantia. E apresentava a prova definitiva. “Por exemplo: nem o mais infeliz viúvo do mundo vai chorar como Marlon Brando no túmulo da mulher, na cena de O Último Tango em Paris. E ele só foi viúvo no cinema”. Se ainda estivesse por aqui, creio que encamparia a complementação da tese que esbocei faz tempo: o grande canastrão também não é gente. É outra coisa, muito abaixo de gente comum. 

Interpretando o papel do Juiz dos Juízes na versão data venia da Ópera dos Malandros, encenada na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes provou que nem o mais desqualificado juiz de futebol conseguiria superar em canastrice vigarista o ministro que faz o que pode — e, com frequência crescente, o que não deve — para elevar o cinismo a uma forma de arte.

O Maritaca de Diamantino festejou nesta semana o parto de outro Dia da Infâmia, em gestação desde que o ministro Edson Fachin resolveu anular as condenações impostas a Lula nos processos que nasceram e cresceram em Curitiba. O lugar certo era Brasília, mudou de ideia o relator dos casos da Lava Jato, depois de cinco anos afirmando o contrário. Fachin ressalvou que a decisão não transforma Lula em inocente. Continua culpado, mas nada deve à Justiça e os processos terão de recomeçar do zero. A ficha não está limpa, mas o dono do gordo prontuário está liberado para disputar até a Presidência da República. 

Animadíssimo com a absolvição do bandido, Gilmar tentou já no dia seguinte punir o mocinho. 
Era só fazer de conta que Sergio Moro ainda usava fraldas quando descobriu que viraria ministro de Estado se prendesse um ex-presidente da República. 
Por isso, o juiz não foi imparcial ao julgar o mundaréu de bandalheiras envolvendo um tríplex no Guarujá. Por isso, bastava oficializar a suspeição de Moro, sepultar a maracutaia e apressar o velório da Lava Jato.
A cada cinco anos, Gilmar esquece o que disse nos cinco anteriores. Em 19 de agosto de 2015, por exemplo, parecia enxergar as coisas como as coisas eram. “O que se instalou no país nos últimos anos e está sendo revelado na Lava Jato é um modelo de governança corrupta, algo que merece um nome claro: cleptocracia”, constatou. (Cleptocracia, aliás, não é um nome claro para muitos brasileiros. Sua Excelência poderia ter substituído o palavrão pelo seu significado: um lugar governado por ladrões.) “A Lava Jato estragou tudo”, prosseguiu. “O plano era perfeito, mas esqueceram de combinar com os russos.” Agora, “a operação que salvou a Petrobras” tornou-se “o maior escândalo judicial da nossa história”
E Gilmar age como inimigo juramentado do juiz que liderou a mais destemida e produtiva operação anticorrupção da História. 
(Tente entender: Gilmar, desafeto de Moro, considerou-se insuspeito para participar do julgamento do juiz da Lava Jato. 
E Moro foi colocado sob suspeição porque seria inimigo de Lula e, portanto, incapaz de portar-se imparcialmente. Difícil entender? 
Não se incomode. Se alguém entendeu, não contou a mais ninguém — talvez para não receber à meia-noite um mandado de prisão em flagrante assinado com um X por Alexandre de Moraes.)
Um pedido de vista do ministro Nunes Marques adiou por uma semana o final infeliz do faroeste à brasileira que teve Gilmar como produtor, diretor, roteirista e astro do elenco de canastrões. 
Irritado com o voto favorável a Moro, assustou Nunes Marques sublinhando com um medonho sobe e desce do beiço o palavrório amalucado: o bom ladrão se salvou, mas não há salvação para um juiz covarde. (O Brasil que presta acha que o ladrão é Lula, e nada tem de bom. Acha também que covardes são juízes que agem como padroeiros de bandidos.) 
Como sempre acontece com atores de picadeiro, as lágrimas continuaram longe dos olhos quando o orador tentou chorar em homenagem ao advogado Cristiano Zanin, pelo esforço que fez para resgatar da cadeia um corrupto duas vezes condenado em segunda instância. Não é pouca coisa. Mas não é tudo. Gilmar também fingiu ignorar que a vitória da obscenidade estava assegurada. Faz muito tempo que convenceu Carmen Lúcia a piorar a biografia para reduzir-se a Carmendes. Haja cinismo.
Comecei com Paulo Francis, termino com Tom Jobim. Numa noite no Rio, minutos antes do início da entrevista para um programa de TV, ouvi a pergunta inesperada. “Você sabia que sou especialista em olhares?”. Não, não sabia. Tom foi em frente: “É muito útil. Os olhos escancaram a alma e o caráter, descubro como a pessoa é em um segundo. Tem o olhar honesto, o esquivo, o sincero, o dissimulado, o arrogante, o confiante, o medroso, o perverso, e por aí vai. Um grande ator consegue mudar o modo de andar, o penteado, o figurino. Pode engordar ou emagrecer, pode usar maquiagem para ficar mais jovem ou mais velho, pode mudar quase tudo. Menos o olhar. Ninguém me engana. Nem o Marlon Brando”. Marlon Brando, de novo. Nesta semana, lembrei-me dessas conversas e lamentei de novo a partida da grande dupla. 
O que Francis estaria escrevendo sobre Gilmar Mendes? 
E como Tom Jobim definiria o olhar do gerentão do Supremo?
Eis aí uma mirada que conheço bem. Já vi esse olhar inconfundível nas brigas no portão do grupo escolar e do colégio, nos tensos barulhos de 1968, nos tumultos que encerraram antes da hora o jogo de futebol na várzea, a bordo do avião forçado ao pouso de emergência, num país assombrado pelo fantasma da guerra civil, em dois arranha-céus lambidos pelo fogo — enfim, já vi esse olhar em rostos alheios confrontados com perigos reais e imediatos. 
É o mesmo exibido por Gilmar Mendes nos vídeos que o mostram em alguma rua de Portugal, tentando afastar-se de dois ou três brasileiros indignados com o que fez, faz e pretende fazer depois de cobrir-se com a toga negra, fantasia que o transforma em Gilmar, o Supremo. 
É o olhar de quem esbanja valentia em duelos retóricos e bate-bocas em sessões do tribunal, mas sabe desde a infância que será sitiado pelo pânico quando a situação exigir a coragem física que sempre lhe faltou. Sublinhado pela palidez e pelo sorriso bestificado do pugilista no momento do nocaute, o olhar do ministro é o desenhado pelo medo.

Leia também “Gilmar Mendes e os 40 bandidos soltos”

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste