Alexandre Garcia
"Vamos ponderar se a responsabilidade pelas mazelas deste país
não é do sistema de governo, mas dos que operam as instituições do
Estado brasileiro"
O plebiscito de 1993, previsto cinco anos antes pela Constituição,
mostrou que 86,6% dos eleitores preferiam o sistema republicano e 13,4%,
a monarquia. Ontem, quando o presidente em exercício Hamilton Mourão
postou nas redes um texto comemorativo à Proclamação da República, a
reação não veio na mesma proporção do resultado do plebiscito. Talvez,
metade das manifestações, ou perto disso, culpa a República pelos nossos
males e defende que a monarquia teria evitado muitas de nossas mazelas.
No plebiscito de 1993, todos os eleitores só haviam vivido numa
república e nenhum em regime de monarquia parlamentar; e não havia redes
sociais para debater sistemas de governo.
Antes que se alegue que a proclamação da República foi
um golpe militar tramado por uma elite intelectual e apoiado por
escravistas furiosos com a abolição; antes que se lembre que Deodoro era
amigo e admirador do imperador e o derrubou depois que Benjamin
Constant o fez sair do leito de enfermo com a fofoca que Pedro II
chamara Gaspar Silveira Martins para ser chefe do governo — logo ele,
Gaspar, de quem Deodoro tinha ciúmes por causa de Maria Adelaide, a
"baronesa" do Triunfo; antes que se argumente que a família real amava
mais o Brasil que os políticos da República — vamos ponderar se a
responsabilidade pelas mazelas deste país não é do sistema de governo,
mas dos que operam as instituições do Estado brasileiro.
Quem quer que leia as biografias dos grandes do império
— políticos do parlamento e ministérios e das províncias, empresários,
senhores de terras, generais, juristas —, vai encontrar muita semelhança
com deputados, senadores, ministros, governadores, juízes, empresários,
que vieram depois de 1889. Antes e depois, tivemos leis a serviço de
interesses individuais e de grupos, ações de governantes, legisladores e
juízes em defesa, não do bem comum, mas de setores mais próximos do
poder. O império, a República Velha e a Nova República conservaram os
maus hábitos, sempre em defesa dos interesses dos que se apropriam do
Estado que, por sua vez, defende a sua burocracia administrativa e
jurídica, como se fossem mais do que guardiões — verdadeiros donos do
governo.
Assim, temos uma cultura que persiste, seja qual for a
forma de governo. Essa cultura escreveu, no único parágrafo do primeiro
artigo da Constituição, que todo poder emana do povo, que o exercerá
diretamente ou por seus representantes eleitos.
Essa mesma cultura
escreveu na Constituição que todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza.
Que não haverá censura, que é livre a
manifestação do pensamento, que é livre a locomoção no território
nacional, que a casa é o asilo inviolável, que deputados e senadores são
invioláveis por quaisquer opiniões, que o Ministério Público é
essencial à Justiça.
A cultura que escreveu isso é a mesma que mudou de
monarquia para República, para o bem país — e se manter. São amarras
centenárias enraizadas, que resistem e reagem quando sentem a ameaça de
mudança real. No Brasil de hoje, cumprir a Constituição já será uma boa
mudança.
Alexandre Garcia, colunista - Correio Braziliense