O precedente aberto pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) em 2017, no governo Michel Temer,
considerando que o
indulto é uma prerrogativa política do Presidente da República que não
pode ser limitada, permite que agora o presidente Jair Bolsonaro queira
indultar os policiais presos pelos massacres de Carandiru e Carajás.
Como define o constitucionalista Gustavo Binemboim,
"sempre no Brasil a
exceção se transforma em permanente, uma anomalia leva a outra".
[vamos por partes esclarecer sobre os 'massacrados' de Carandiru e Carajás.
Carandiru é um bairro da cidade de São Paulo onde se localizava a Casa de Detenção.
As rebeliões eram frequentes e sempre com mortes de inocentes, exigindo ações policiais em que morriam os presos responsáveis pela rebelião, policiais no estrito cumprimento do dever legal e inocentes.
Em 2 out 92, ocorreu mais uma rebelião e diante da necessidade de ser contida - sob pena de mais mortos e estímulo a outras rebeliões, inclusive em outros presídios - a PM paulista foi autorizada a usar da força necessária para neutralizar a rebelião.
Houve confronto que resultou em 111 presos rebelados mortos.
A ação policial contou com o apoio integral da população tanto que o comandante da operação, coronel PM Ubiratan Guimarães, foi eleito deputado estadual, utilizando como número o 14111, obtendo 56.155 votos - isto em 2001, mais votos do que os obtidos pelo deputado Rodrigo Maia em 2014.
Vale lembrar que o julgamento do coronel foi anulado pelo TJ-SP e todos os PMs julgados e condenados tiveram os julgamentos anulados - por falhas no primeiro julgamento e alguns foram absolvidos a pedido do Ministério Público.]
Quando o Supremo, através de uma liminar da então presidente Carmem
Lúcia, e posteriormente por uma ação do ministro Luis Roberto Barroso,
proibiu que o indulto fosse concedido em certas situações
, para os
ministros favoráveis à autonomia completa do presidente da República
extrapolou suas funções, exercendo uma ação privativa do presidente.Indulto
tem que ser
“genérico e abstrato”, expressão técnica jurídica para
definir que não pode ser pessoal nem determinado, direcionado a um
grupo.
Como Bolsonaro pode ter êxito ao indultar presos por casos
específicos como os que já citou? Fazendo do jeito que Temer fez. Basta
pegar os tipos penais que os policiais cometeram, e não precisa mais
nem mesmo definir o tempo de cumprimento de pena.
Os presidentes de uns
tempos para cá têm sido muito generosos. O tempo mínimo da pena para os
aptos ao indulto, que já foi mais de 12 anos, foi diminuindo até que,
com Temer, deixou de existir. Isto é, todos os condenados estão
habilitados a ser indultados.
No indulto do seu primeiro ano de
governo Temer estabeleceu que só poderiam ser beneficiados pelo perdão
pessoas condenadas a no máximo 12 anos, e que, até 25 de dezembro de
2016, tivessem cumprido um quarto da pena, desde que não fossem
reincidentes.
O indulto seguinte não estabelecia um período
máximo de condenação, e reduzia para um quinto o tempo de cumprimento da
pena para os não reincidentes.
No caso da Lei de Anistia, ela
foi geral e irrestrita, mas diferencia-se do indulto. A anistia tem que
ser aprovada pelo Congresso, e o indulto depende exclusivamente do
presidente da República.O problema é que o indulto nos termos em que
pode ser concedido por Bolsonaro, atingirá qualquer policial, mesmo
miliciano. O ministro aposentado do STF, Ayres Brito, considera
que o Estado não pode indultar a si mesmo, através dos seus agentes
condenados, como os policiais. Ele adverte que, sob o princípio da
razoabilidade, não é possível uma lei falar mais alto que a
Constituição,
“mesmo que também a lei possa consubstanciar uma política
pública de combate mais severo a determinadas condutas”. [o ministro Ayres Brito, após se aposentar, se tornou - com o devido respeito - esquecido e loquaz (quem fala demais...).
Esqueceu que foi ele quem considerou legal a inclusão, pela escarrada ex- presidente Dilma, no decreto que regulamenta a Lei de Acesso a Informação, de inciso autorizando a divulgação individualizada do salário dos servidores públicos e loquaz quando emite uma opinião que pretende limitar o que a Constituição não limita."Constituição Federal:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
...
XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei;
(os grifos são do Blog Prontidão Total.)"
Portanto,
diz Ayres Brito, o indulto
“não pode ser usado como política pública de
contraponto a ponderações especiais que a Constituição e a lei já
fizeram para mais fortemente inibir e sucessivamente castigar certas
condutas”. Sob pena de a Constituição e as leis darem com uma das mãos, e
o Presidente da República tomar com a outra, ironiza Ayres Brito. Os
ministros do Supremo que consideram possível essa atuação de contenção
se baseiam no
“controle da constitucionalidade”, que define a capacidade
do poder do Judiciário de controlar atos do Executivo que contrariem
princípios constitucionais, como moralidade, probidade administrativa,
razoabilidade, proporcionalidade.
O relator do caso, ministro
Luis Roberto Barroso, [vencido na decisão colegiada do STF, mencionada no inicio da matéria, por ter legislado, 'modificando' em despacho o alcance do dispositivo constitucional transcrito.] escreveu um artigo sobre o caso Marbury contra
Madison que, julgado em 1803 nos Estados Unidos, introduziu no mundo
jurídico o entendimento de que o Poder Judiciário pode invalidar atos
dos poderes Legislativo e Executivo que sejam contrários à Constituição.
O
ministro Celso de Mello contou no julgamento do caso de Michel Temer
que o então presidente Sarney decidiu a seu tempo tirar do indulto os
crimes
“contra a economia popular”, pois lutava para controlar a
hiperinflação e queria dar o exemplo.
Pela Constituição, o presidente
pode inclusive conceder a graça, o perdão, a um único indivíduo. Esse
privilégio do presidente da República foi mantido pela Constituição de
1988. Caso Bolsonaro não encontre uma saída jurídica para dar um indulto
que pegaria até mesmo policiais envolvidos em milícias, pode fazer uso
desse instrumento que nunca foi adotado no Brasil.
Merval Pereira, jornalista - O Globo