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domingo, 29 de novembro de 2020

Ódio do BEM - Percival Puggina

No século passado, houve um longo tempo em que o comunismo e o respectivo cortejo de males só pela força bruta conseguia espaço para instalar suas estruturas de poder. Sacrificava vidas muitas vidas, milhões de vidas! – e depois, neutralizava, também pela força, os remanescentes. Foi o período de triunfante expansão territorial dos totalitarismos, dos quais sobrou o comunismo, embora também ele tenha sido forçado a reconhecer seus fracassos ao som surdo das marretadas com que a população da Alemanha Oriental abriu passagem no Muro de Berlim.

A perda de validade das profecias comunistas de Marx não foi admitida pelos movimentos revolucionários em muitas nações periféricas. Na América Ibérica esses grupos se reuniram no Foro de São Paulo. O muro caíra em novembro de 1989 e em julho de 1990, apenas oito meses depois, esse colegiado se reunia na capital paulista, mobilizado por Lula e Fidel Castro. Ali secaram as lágrimas pelas perdas europeias e, numa operação quase hospitalar, ligaram as finadas profecias marxistas aos aparelhos partidários da esquerda do continente. Dada a natureza dos grupos que se coligaram, boa parte dos quais remanescentes da luta armada revolucionária, era preservado, in vitro, o ânimo belicoso que vê a política como luta que só se resolve com a total submissão do antagonista.

É essa a ideia presente no conceito de luta de classe. Ela só tem solução com a supremacia de uma classe sobre a outra. E tudo ganha agilidade na direção da hegemonia se novas classes forem se organizando mediante atração de “minorias” para a luta política. Eu vi isso acontecer e apontei nas mesas de muitos debates, no final dos anos 80.

Bem antes, porém, escrevia Mario Ferreira dos Santos. Ele é considerado, inclusive por Olavo de Carvalho, como o maior filósofo brasileiro. Filósofo de fato, de pensamento autônomo, autodidata, autor de dezenas de obras de fôlego e relevo, esteve desconhecido do público brasileiro, logo se verá por quê. Um ano antes de sua morte, em 1968, foi publicado pela primeira vez seu livro “A invasão vertical dos bárbaros” que trata da ocupação de uma nação pela destruição de sua cultura por uma cultura inferior. Passados 53 anos, esse fenômeno é um dos principais motivos para reflexão e preocupação dos brasileiros, com justificados reflexos na política nacional.

Ao mesmo tempo, os bárbaros locais não dizem dez palavras sem falar em luta. Exceto se querem esconder quem são por conveniência do marketing eleitoral. Herdaram o ânimo belicoso dos tempos da invasão horizontal. Em relação ao que expõem como suas causas, punhos cerrados, eles não as propõem, nem sustentam, nem escrevem, nem alardeiam, nem mobilizam. Eles lutam. A práxis é a luta. A vida é a luta. A frase não sai sem luta. Vem dela o ódio ao adversário. Aprenderam do adorado Che a ver “o ódio como fator de luta”. Não se constrangem, sequer, de torcer escancaradamente para que um inimigo do Brasil vença a eleição nos Estados Unidos se isso fizer mal, também, àqueles a quem odeiam. Só que claro, com a conivência do fã clube midiático, esse é um ódio do bem...

Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

 

domingo, 31 de maio de 2020

O efeito colateral e o “critério científico” - Alon Feuerworker

Análise Política


As medidas de isolamento e afastamento sociais são apontadas desde o começo da ação do SARS-CoV-2 como essenciais para, como se diz, achatar as curvas de infecção e mortes pelo novo coronavírus. O objetivo desejado, e totalmente legítimo, é evitar o colapso do sistema hospitalar.

Mas o achatamento tem efeito sobre os dois eixos, o horizontal (x) e o vertical (y). Se empurram para baixo o y máximo, jogam para adiante os valores de x onde o y ainda é significativo. O já célebre gráfico abaixo (clique nele para ampliar), um hit desde o começo da pandemia, explica bem:

Outro gráfico, agora obtido a partir de dados colhidos na vida real (clique na imagem para ampliar), mostra que as iniciativas para achatar a curva por aqui talvez tenham mesmo alcançado algum sucesso. Comparado com os países mais em evidência na pandemia, o Brasil parece ter reduzido a inclinação da curva na sua etapa ascendente:
 
A fonte é o hotsite do Financial Times especializado na Covid-19, e as curvas representam a média móvel dos sete dias mais recentes de novas mortes registradas diariamente. O que é, atenção!, diferente de mortes diárias. Mas todo sucesso tem um preço, um efeito colateral. O nosso é as medidas de isolamento já estarem de língua de fora, perdendo o fôlego, enquanto a curva ainda sobe.
Outro efeito colateral: a bagunça política, sem par no planeta, impediu que a curva achatasse o tanto que podia.

Como o Brasil não é um país nórdico, nem uma Nova Zelândia, não dá para estender indefinidamente o isolamento à espera de a curva começar a descer.
Ou talvez desse, desde que o governo e a opinião pública estivessem verdadeiramente dispostos a sustentar a economia (imprimir dinheiro, fazer dívida) até a curva embicar para baixo.

Tem gente boa que defende fazer assim, mas a hegemonia intelectual está do outro lado. Por isso, vivemos um período de certa loucura, em que se defende simultaneamente 
1) o lockdown “até a vitória final” e 
2) manter a aversão à expansão ilimitada do gasto público.

O que só seria possível se amplas camadas da população estivessem dispostas a ficar sem ter o que comer à espera de o vírus ser finalmente neutralizado. Improvável. Então a vida impõe-se. As atividades vão voltando pouco a pouco de modo irrefreado e na prática caótico, enquanto os governantes se escondem atrás de marquetagens disfarçadas de “critério científico” para justificar a volta nestas circunstâncias, só para não admitir que estão sendo atropelados pelos acontecimentos.

Havia opções, claro. Uma era bloquear geograficamente a expansão do vírus desde muito antes de este espalhar. Fechar o país, e no país fechar as cidades e regiões em que aparecessem casos. Vem dando certo em Hubei, e no resto da China. Mas agora é engenharia de obra feita. Ninguém com poder decisório propôs isso a tempo. E vamos pagar por esse lapso não apenas em mortes. Pagaremos também em um prolongamento do sofrer econômico. Que é função direta da falta de confiança do público. Confiança que anda em baixa e assim ficará por um bom tempo.
Também porque a descoordenação e os conflitos na política levam o cidadão e a cidadã com um mínimo de bom senso a puxar o freio de mão nas despesas, pessoais e empresariais.

Alon Feuerworker, jornalista e analista político - Análise Política

quarta-feira, 25 de março de 2020

Mandetta: ou engole, ou sai - Merval Pereira

Bolsonaro vai ficar isolado

 O presidente Jair Bolsonaro corre o risco de ficar isolado  
completamente. Mesmo após o seu desastrado pronunciamento, todos estão afirmando que continuarão a seguir as orientações da OMS em relação ao confinamento. Hoje pela manhã, o presidente deixou claro que não conversou com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta antes do pronunciamento e que já decidiu sobre o confinamento vertical. 

[Fato:
Bolsonaro fez um pronunciamento cujos resultados coincidem exatamente com objetivos do Presidente da Repúblico.
É pacífico, que o Presidente Bolsonaro gosta de se manifestar de forma clara e objetivo, tendo plena ciência de que seus inimigos vão criticá-lo -criticar o Bolsonaro é o esporte predileto da Nação, especialmente de muitos políticos e outras figuras que desejam alguns minutos de fama.
Hoje, fiquei algum tempo curtindo noticiário na TV e fiquei sabendo que existe um conselho cuja sigla é CONASS - não identifiquei o que significa, nunca ouvi falar dele nem o tinha visto, antes  de hoje - a nota malhava o presidente;
teve um outro cidadão que vociferou por quase um minuto contra o presidente - teve seu minuto de fama, pena que a reportagem não destacou em que o distinto era especialista.]

Desta maneira, fica muito difícil a permanência do ministro, porque terá que se desmoralizar, mudando a maneira de orientar a população. Ou ele engole, ou sai. E ainda temos o deputado Osmar Terra se oferecendo diariamente para assumir a pasta. Trocar, neste momento, toda a orientação do ministério da Saúde, para fazer o contrário do que vinha sendo feito até agora, será uma tragédia.

Merval Pereira, jornalista - O Globo


domingo, 8 de setembro de 2019

Nas entrelinhas: O Rei e a Dama - Nas Entrelinhas

“Uma coisa é a expectativa de Bolsonaro quanto à atuação subalterna do novo procurador, outra poderá ser o seu comportamento efetivo no exercício do cargo

O presidente Jair Bolsonaro comparou o novo procurador-geral da República, cargo para o qual indicou o subprocurador-geral Augusto Aras, à dama no jogo de xadrez, cuja principal característica é a capacidade de se movimentar em todas as direções possíveis no tabuleiro, ou seja, na horizontal, vertical e diagonal, quantas casas estiverem disponíveis. Daí, pode-se concluir, espera que Aras seja o seu principal aliado na cena política do país. Bolsonaro, obviamente, não deixou por menos e se comparou ao Rei.

[ser surpreendido pelo indicado/nomeado é um risco inevitável a todos que tem o poder de indicar ou nomear ocupantes para funções vitalícias ou com mandato;
um dos exemplos que bem ilustram este comentário pode ser apontado no STF: 
- temos o ministro Lewandowski que se destaca pela previsibilidade dos seus votos - votando quase sempre de acordo com o esperado pelas partes;
- o ministro Toffoli algumas vezes vota conforme o esperado,em outras surpreende - caso inesquecível é o 'habeas corpus de ofício'.

merece destaque o grande conhecimento do articulista sobre o jogo de xadrez (jogo vedado aos lulopetistas pela capacidade intelectual que sua prática exige) ou é um mestre, um aficionado ou um teórico.]
A dama (ou rainha) é a peça mais poderosa no tabuleiro, de um total de 32, 16 brancas e 16 pretas, sendo que ambas as cores possuem ainda pares de torres, cavalos, bispos, 8 peões. Originariamente, não existia no xadrez; havia o vizir. A ascensão da dama como peça de maior valor relativo do xadrez coincidiu com o reinado de Isabel de Castela, protagonista da unificação da Espanha, ao lado do marido, Fernando de Aragão (a Netflix tem uma série romanesca intitulada Isabel, a Católica, que conta essa história). Outras rainhas poderosas, com a consolidação do absolutismo, ajudaram a consagrar a configuração do jogo que existe até hoje.

Dois outros fatores popularizaram o xadrez: a invenção do tipo móvel por Gutemberg, que permitiu a impressão e as traduções do livro de regras de Luiz Ramires de Lucena (Repetición de amores e arte del axedres); e a expulsão de cerca de duas mil famílias de judeus não convertidos da Espanha, por ordem de Isabel e Fernando de Aragão (Decreto de Allambra), no fim do século XV, que disseminaram o jogo pelas demais cidades europeias.

Iniciantes no xadrez costumam movimentar a sua dama com certa sofreguidão, na esperança de saquear as peças adversárias ou conseguir o xeque-mate com uma das jogadas mais clássicas e conhecidas do xadrez, o xeque pastor. Enxadristas mais experientes costumam se aproveitar dessa “espetada”, pois é fácil repelir o ataque solidário da dama. O defensor acaba ganhando tempo e espaço ao repelir esse ataque, que põe a dama em risco. É muito comum a troca de damas, para evitar que a peça seja utilizada ao final do jogo, quando realmente passa a ter uma vantagem estratégica decisiva por causa da sua grande mobilidade.

Outra coisa
O baiano Antônio Augusto Brandão de Aras, de 60 anos, é um especialista nas áreas de direito público e direito econômico. Ao compará-lo a uma dama, Bolsonaro revela uma intenção incompatível com as regras constitucionais vigentes: ter o controle da Procuradoria-Geral da República, que é um órgão independente do Executivo e demais Poderes. Essa intenção é corroborada pelo fato de que atropelou a listra tríplice eleita pelos procuradores, o que provocou grande desapontamento na instituição.

Aras faz parte de uma geração de procuradores que entrou na carreira do Ministério Público Federal (MPF) em 1987, antes da promulgação da Constituição Federal, e pôde optar por atuar no Ministério Público e manter suas atividades como advogado, o que é muito questionado. Integrantes do órgão que ingressaram na carreira após a Constituição não possuem esse direito. Ao se efetivar no cargo, porém, deverá devolver à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a carteira de advogado.

Doutor em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005); mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Bahia (2000), Aras é professor da Universidade de Brasília (UnB) e atuou nas câmaras das áreas constitucional, penal, crimes econômicos e consumidor, o que levou Bolsonaro a definir seu perfil da seguinte maneira:Sem querer desmerecer ninguém, a gente buscou uma pessoa que fosse nota 7 em tudo, não nota 10 em algo e 2, em outra”.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, diz o criativo provérbio popular. A indicação de Aras desnuda a tensão entre a ética das convicções e a ética da responsabilidade na democracia. Os políticos movem-se pela primeira, ou seja, por seus objetivos; a alta burocracia, pela segunda, ou seja, pela legitimidade dos meios. Por mais que Bolsonaro compare Aras a uma dama no seu jogo de xadrez, o novo procurador-geral da República tem prerrogativas constitucionais que são inerentes ao cargo e independem das vontades do presidente da República.

Sem dúvida, a assunção de Aras à Procuradoria-Geral da República é disruptiva em relação à força-tarefa da Operação Lava-Jato, que exercia uma espécie de tutela moral sobre a própria corporação e precisa ser contida nos eventuais  excessos. Entretanto, isso não significa que seja necessariamente disruptiva em relação ao equilíbrio entre os Poderes da República, embora Aras tenha atribuição de processar, se for o caso, os ministros do Supremo, os deputados e senadores e o próprio Presidente da República. Uma coisa é a expectativa de Bolsonaro quanto à atuação subalterna do novo procurador, outra poderá ser o seu comportamento efetivo no exercício do cargo, que, pela sua própria natureza, deve ser altivo e independente. É melhor esperar pra ver.

 Nas Entrelinhas  - Luiz Carlos Azedo - CB