Uma visão unilateral da Lei da Anistia
Não será positivo se a Comissão da Verdade divulgar um relatório que não considere o sentido da negociação entre generais e a oposição no fim dos anos 70
A Comissão da Verdade, constituída em 2012 para reconstituir o que se desenrolou na “guerra suja” durante a ditadura militar, se prepara para apresentar o relatório final [cuja denominação mais adequada seria: a mentira final.] sobre fatos que eram mantidos em sigilo, e com a definição de responsabilidades por uma série de crimes, como torturas, homicídio, ocultação de cadáver etc.Mas, infelizmente, não se espera um relatório equilibrado, embora possa atender a um dos seus objetivos, o de dar respostas a famílias e a toda a sociedade sobre o paradeiro de vítimas do regime. Um dos casos mais conhecidos é o do deputado Rubens Paiva, tema de reportagens de O GLOBO.
O viés que deverá ter o relatório deriva da própria contaminação ideológica do processo de criação da Comissão. Deve-se recordar a forma como a proposta foi incluída na terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, no final do segundo governo Lula.
Ficava visível a intenção de se aproveitar a oportunidade para mais um ataque contra a Lei da Anistia — concedida de forma recíproca em 1979 —, a fim de permitir o indiciamento judicial de militares e outros agentes públicos, não previsto na lei, por óbvio. A manobra criou tensão no governo, entre o Ministério da Defesa e o Planalto, mas a ação do ministro Nelson Jobim e do próprio Lula evitou uma crise de razoáveis dimensões.
Mas os grupos mobilizados para rever o alcance da Lei da Anistia, confirmada pelo próprio Supremo, continuam a agir. É fato que se perdeu o sentido de apaziguamento que teve a bem-sucedida negociação entre generais e a oposição, àquela época, sancionada livremente pelo Congresso. Tanto que o STF já precisou garantir a amplitude da anistia, concedida ainda no governo de João Baptista Figueiredo, o último da ditadura militar.
Se a ideia da reciprocidade, adotada nas negociações por Tancredo, Ulysses, Thales Ramalho, Petrônio Portella, Figueiredo, entre outros, subsistisse até a instituição desta Comissão da Verdade, crimes cometidos pela chamada esquerda armada também teriam sido investigados. Como o do assassinato do tenente Mendes a coronhadas de fuzil, por um grupo da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) comandado pelo capitão Carlos Lamarca, desertor do Exército. Ele foi promovido depois de morto a coronel, com proventos de general de brigada. Já a família do tenente nada recebeu. O mesmo aconteceu no caso da morte do soldado Mario Kozel Filho, num atentado contra o Comando Militar de São Paulo, de autoria da mesma VPR. Ou de outro militar, Orlando Lovecchio, ferido por bomba no consulado paulista dos Estados Unidos.
A História costuma ser escrita pelos “vencedores”. No caso da “guerra suja” brasileira, não será positivo que o relato a ser apresentado pressuponha que houve “vencidos”, quando aquela transição surgiu de um pacto entre contrários. Se isso acontecer, e a depender da reação do Planalto, ficará configurada a tentativa de se reescrever o passado.
Fonte: O Globo - Editorial
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