Derrotas
na tentativa de controlar armas nos EUA se acumulam, e cultura bélica avança
Nenhum país tem mais maluco do que os outros, mas só os EUA dão os meios
tecnológicos para eles brincarem de Deus. O diagnóstico, da jornalista Gail
Collins, comprovou-se dramaticamente verdadeiro de novo: John Houser já passara
uma temporada num hospital psiquiátrico, mas não teve a menor dificuldade ao
comprar legalmente a arma usada para matar dois pacíficos jovens cidadãos, num
cinema, quinta-feira, em Louisiana. [nada
impede que um cidadão pacato, cumpridor dos deveres, tenha um acesso de loucura
ao volante de um carro e mate duas ou três pessoas – o mesmo vale para armas.
Comparando o número de assassinatos
por armas de fogo ocorridos nos EUA - em que o número de armas em circulação é
quase igual ao da população e que são muitas as facilidades para adquirir e
portar uma arma – com o número de assassinatos no Brasil, por armas de fogo,
número bem superior - colônia em que adquirir e portar uma arma de
fogo é algo extremamente burocrático e difícil - se percebe que o livre porte e propriedade de
armas reduzem à violência.
Estados Unidos população armada e
onze mil mortes/ano;
Brasil, população desarmada - legislação contra porte, posse e propriedade
de armas extremamente rígida – 50.000 mortes/ano.]
O histórico do assassino, um
homem de 59 anos, violento e atormentado, mandado pelo juiz para testes psicológicos num
sanatório, deveria assinalá-lo como perigoso no cadastro nacional consultado
pelas lojas antes de vender uma arma. Só
que não. Para preservar o direito dos doentes mentais, a lei não mantém os
registros de quem não se internou por vontade própria e nada o impediu de
cumprir seu destino. Frustrado com mais este massacre num país infestado de
armas, o presidente reconhece seu fracasso frente ao lobby do rifle. “O tiroteio em Louisiana é parte de uma
tragédia nacional com uma solução simples. Isto precisa levar a alguma
transformação”, irritou-se Obama.
As derrotas acumulam-se, as
mortes repetem-se. A
Califórnia tem leis duras contra a venda de armas, mas, por ordem judicial,
pode ser obrigada a acabar com as restrições impostas no estado. A bancada da
bala considera ilegal os delegados de San Diego exigirem “uma boa razão” para os cidadãos terem o direito de andar armados
em público. O argumento é o óbvio:
armas ameaçam a segurança pública e só pessoas em situação de perigo de morte
ou com a obrigação de transportar grandes somas de dinheiro poderiam portar
armas.
Questão de bom senso, certo? Nada
disso: a Associação Nacional do Rifle considera que é uma violação à
Segunda Emenda, aquela que há 200 anos
permite o porte de armas. O poderoso lobby venceu por dois a um na
primeira sessão do tribunal e, acham os especialistas, o caso pode agora chegar
a Suprema Corte. “Esta é a grande questão pendente, não respondida
pela Segunda Emenda, se você tem o direito de portar armas em público e em que
circunstâncias”, diz Adam Winkler, professor de Direito da Universidade da
Califórnia.
A cada
tragédia volta a discussão sobre a restrição à venda de armas, uma prioridade
política do governo Obama, derrotada
ainda no primeiro mandato. A exigência de checar os antecedentes do
comprador foi o único acordo possível entre os defensores das restrições e os
advogados do direito individual de ter armas, uma loucura tipicamente americana.
Segundo o “New York Times”, o
supremacista branco Dylann Roof, assassino de nove negros na igreja de
Charleston, também não poderia comprar armas por ter usado drogas ilegais. Os
dados do cadastro eram imprecisos, a compra foi efetivada, e o massacre
consumado.
Não pode
funcionar, claro, um sistema que deixa a avaliação da saúde mental dos cidadãos
nas mãos de burocratas espalhados pelo país. Há estados onde só 4 pessoas eram
consideradas perigosas; em outros, milhões, demonstração óbvia de controle
ineficiente. Em 40% dos casos, as armas
são compradas on-line e em lojas privadas sem consulta a cadastros.
A cultura bélica avança, mesmo
sob administração democrata. Quinze estados aprovaram leis que permitem a
todos os civis com porte de arma a usá-las à vista de todo mundo, exatamente
como no Velho Oeste. Podem
carregá-las simplesmente na mão, em coldres na cintura ou embaixo do braço,
engatilhadas ou não. E pior, apesar dos sucessivos massacres, é permitido
entrar com armas no campus universitário, botá-las na mochila ou no porta-luvas
do carro. “Estamos diante de um novo fenômeno americano: o minimassacre”, escreveu o jornalista Adam Gopnik, na “New
Yorker", referindo-se à
sequência sinistra de tiroteios que deixam dois mortos numa vez, quatro na
outra.
Nós
também conhecemos este filme aqui. A única boa notícia em toda essa história é
a sociedade não ter perdido a capacidade de indignar-se com estas mortes em
série nos Estados Unidos. Recentemente ficou evidente que o racismo ainda molda
o presente de jovens negros na maior democracia do mundo e o movimento contra a
violência policial conquistou vitórias contra a impunidade. Já nós,
brasileiros, andamos resignados demais com a violência e o assassinato
cotidiano dos jovens, na maioria pobres vivendo em comunidades. Já foi pior,
mostram as estatísticas, mas ainda são 140 mortes por dia. É intolerável esta
cultura da bala, aqui e lá.
Fonte: Helena Celestino – O Globo
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