Eles vão pagar a conta
ISTOÉ esteve no prédio, em Saint-Denis, onde o suspeito de comandar os ataques na França foi morto. Saiba como a rotina dos moradores de bairros da periferia de Paris já mudou e vai ficar ainda pior, devido ao aumento da xenofobia
Os habitantes de Saint-Denis, subúrbio ao norte de Paris, acordaram em choque na fria madrugada de quarta-feira 18. Os ventos – uivantes de tão fortes – não foram capazes de abafar os sons de rajadas de tiros e explosões. Refeitos do susto inicial, em questão de segundos os moradores puderam identificar a natureza dos estrépitos. Do lado de fora, ocorria uma pesada operação antiterrorista. Enquanto algumas pessoas espiavam a ação da polícia parisiense por entre as frestas das janelas, outras, investidas de medo e temendo pelo pior, preferiam se aninhar no colo dos familiares no interior de suas residências. A tensão tardou para se dissipar. Durou sete horas. Ao fim de toda a operação, a polícia havia utilizado cinco mil balas. O cerco foi bem sucedido: o belga Abdelhamid Abaaoud, suspeito de ser mentor dos ataques terroristas em Paris, acabou morto. ISTOÉ esteve no local onde Abaaoud exalou seu último suspiro: um prédio insalubre, com ratos, ocupado de maneira ilegal por vários habitantes, muitos sem documentos oficiais, o que facilitou sua utilização como esconderijo.
Menos de uma hora depois do último disparo,
uma moradora desceu para conceder entrevista. Vários canais de TV
franceses, ávidos por qualquer declaração, a aguardavam. Ela usava um
traje que é proibido na França desde 2010: um niqab, véu islâmico que
cobre todo o rosto e só deixa os olhos à mostra. Talvez ela quisesse
simplesmente evitar ser identificada. Mas a vestimenta toda preta
sugeria que a mulher cultivava o hábito de sair à rua com esse tipo de
roupa. Se for o caso, seu estilo não chama a atenção em Saint-Denis. O
bairro do subúrbio parisiense possui uma população majoritariamente
imigrante, de origem árabe.
Saint-Denis fica situado a apenas cinco
quilômetros da capital francesa. É possível chegar lá de metrô. Apesar
da pouca distância, logo na saída da estação vê-se rapidamente a
diferença em relação a bairros centrais de Paris: prédios comuns, sem
charme arquitetônico, e algumas lanchonetes, cafés e lojas populares. A
exceção é a famosa basílica de estilo gótico, do século XII, onde estão
enterrados os reis da França, que atrai turistas do mundo inteiro. Em
Saint-Denis também há o célebre Stade de France, onde o Brasil perdeu a
final da Copa em 1994. Na França, no entanto, o bairro ao norte da
capital é encarado sobretudo como uma área pobre onde reinam violência
e problemas sociais.
A grande maioria da população desse
subúrbio de 110 mil habitantes é de imigrantes ou franceses de origem
estrangeira, principalmente de países como Argélia, Marrocos e Tunísia e
da África negra. A taxa de desemprego, de 20% a 22%, segundo
autoridades locais, é o dobro da média nacional. Moradores ouvidos por
ISTOÉ descrevem um bairro dominado pelo pavor com o que pode vir na
sequência dos atentados. “A cidade já tinha má-reputação. A descoberta
de terroristas aqui vai piorar ainda mais sua imagem e os moradores
correm o risco de sofrer mais preconceito”, afirmou Marie-Christine
Daillet, francesa de 63 anos, que passou a sair de casa sem bolsa após
um assalto em que teve várias fraturas no braço, engessado por quatro
meses. Hoje, tem planos de se mudar do local conhecido também pela venda
de drogas a céu aberto. A atmosfera de pânico e medo é relatada por
outra moradora, que não quis se identificar. “Se quisermos continuar
vivos, não vimos nem ouvimos nada e também não sabemos de nada”,
afirmou. Nascida na Costa do Marfim, ela reside em Saint-Denis há seis
anos.
Segundo o francês de origem argelina Munir
Dadi, muçulmano que mora em Saint-Denis há 18 anos, imigrantes
clandestinos buscam abrigo no bairro porque há menos controle policial.
“A vida na cidade se deteriorou muito nos últimos anos”, lamentou. Como
muitas outras pessoas em Saint-Denis, ele também teme ser vitima de
racismo após os atentados. “Espero que o presidente François Hollande
ouça os gritos dos habitantes que pedem mais policiais na cidade”,
afirma o vice-prefeito de Saint-Denis, Bally Bagayoko, francês de origem
maliana. “Com dois mil policiais já daria para se equiparar a outras
cidades”, acrescenta o político.
O que ocorre em Saint-Denis não é diferente
de várias outras cidades do mesmo distrito administrativo, chamado
Seine-Saint-Denis, no norte de Paris, mais conhecido na França como
“nove três”. A referência ao código postal passou a ser vista, na
prática, como algo pejorativo. “Você colocar o endereço 93 em um
currículo diminui consideravelmente as chances de encontrar um emprego”,
diz o argelino Mouder Sid Ali, motorista de caminhão que mora em
Saint-Denis e chegou à França há três anos.
Foi na Seine-Saint-Denis, com mais de 1,5
milhão de habitantes, que começou a onda de violência nas periferias do
país, em 2005. Samy Amimour, um dos kamikazes da casa de shows Bataclan,
onde morreram 89 pessoas, morava em Drancy, uma cidade do distrito da
Seine-Saint-Denis. “Os imigrantes foram amontoados em periferias, sem
serviços, e isso acabou criando guetos e gerando exclusão social. Houve
erros na política de integração”, afirma o cientista polítco Stéphane
Montclaire, da Universidade Sorbonne. Segundo ele, a intolerância em
relação aos muçulmanos deve aumentar na França após os recentes
atentados. “Uma cabeça de porco colocada em frente a uma mesquita é um
ato isolado e que não representa a opinião da população francesa. O
problema é que vemos uma adesão progressiva da sociedade a certas ideias
da extrema direita, do partido Front National, em relação a essa
comunidade”, ressalta. De acordo com Abdelkader Ounissi, imã da mesquita
de Bagnolet, na Seine-Saint-Denis, um de seus fieis teve de abrir a
bolsa de ginástica na rua a um desconhecido que exigiu ver o conteúdo da
sacola. “O clima é pesado. As pessoas estão com medo em relação ao
futuro”, diz
No primeiro semestre deste ano, a França, onde vive a maior comunidade
muçulmana da Europa, estimada em 6 milhões de pessoas, registrou 274
atos racistas e ameaças contra muçulmanos, segundo o Observatório
Nacional contra a Islamofobia (ONCI), ligado ao Conselho Francês do
Culto Muçulmano. Isso representa um aumento de 281% em relação ao mesmo
período do ano passado. De acordo com a organização, a forte progressão
está ligada aos atentados de janeiro contra a revista satírica Charlie
Hebdo e o supermercado judaico, que mataram 17 pessoas. Em 2014, o
número já havia crescido cerca de 10% na comparação com 2013.
Fotos: LIONEL BONAVENTURE/ AFP PHOTO; Philippe Wojazer/ REUTERS
Fontes: Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE) e Eurostat
Fontes: Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE) e Eurostat
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