Autos de resistência atingiram, em janeiro, o maior
patamar da série histórica
O Rio de
Janeiro nunca registrou tantas mortes de suspeitos em confrontos com a polícia
quanto em janeiro deste ano, mês que antecedeu a intervenção federal na
segurança pública do estado. Estatísticas do Instituto de Segurança Pública
(ISP) mostram que nenhum dos 241 meses transcorridos desde o início da série
histórica, em 1998, superou a marca de 154 autos de resistência, agora
classificados como homicídios decorrentes de intervenção policial. A média foi
de cinco mortes por dia, ou uma a cada período de aproximadamente cinco horas.
Até
então, no topo da lista estavam três meses de 2008, ano em que teve início (em
dezembro) o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Abril e maio
registraram, cada um, 147 autos de resistência, e março, 140. As posições
seguintes são ocupadas por meses de 2007 e 2003. O primeiro mês da década atual
a figurar no ranking é novembro do ano passado, quando houve 125 casos.
Para
especialistas ouvidos pelo GLOBO, o aumento nas mortes em confrontos é causado
por uma soma de fatores. O primeiro deles seria o esgotamento da política de
segurança voltada para o enfrentamento. Além disso, são citadas a derrocada das
UPPs e a crise financeira, que estaria afetando o trabalho das forças
policiais. — A
verdade é que esses índices foram aumentando mês a mês sem que houvesse nenhuma
decisão clara do comando da PM no sentido de impedir ou reduzir as operações
nas favelas, que causam um sofrimento enorme aos moradores e raramente apresentam
resultados satisfatórios — analisa a socióloga Julita Lemgruber, do Centro de
Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC/Ucam).
A
antropóloga Alba Zaluar, coordenadora do Núcleo de Pesquisa das Violências
(Nupevi), vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),
relaciona o excesso de mortes em confrontos ao baixo moral das tropas. Na
avaliação da pesquisadora, os policiais que atuam em território fluminense
experimentam uma espécie de transtorno do estresse pós-traumático. Janeiro de 2018 seguiu um ano trágico, em que
morreram 134 PMs no Rio. Como se não bastasse, os pagamentos têm atrasado com
frequência, falta dinheiro. O policial tem que lidar com o pneu da viatura que
está furado, com o carro quebrado, com o contêiner de lata onde se protege de
tiros de fuzil. É uma situação de precariedade enorme, e ele reage
instintivamente. Vê alguém com qualquer coisa sobre os ombros e atira. É a
reação de quem quer sobreviver a uma ameaça, não de quem está respondendo a um
treinamento ou a uma preparação adequados — pontua Alba
Antropólogo
e ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Paulo Storani frisa que
os números do ISP não incluem qualquer detalhamento, o que torna impossível
saber as circunstâncias exatas de cada auto de resistência. Ainda assim, ele
enxerga “um colapso da política de segurança”: — A
estratégia adotada nos últimos 30 anos, apoiada no confronto, chegou ao
esgotamento. Na minha percepção, a longo prazo, o número de pessoas envolvidas
com o crime aumenta mais do que o aparato policial. É preciso atacar em outras
frentes, como uma revisão da legislação penal. Criminosos são recolocados nas
ruas todos os dias — afirma o antropólogo, que vê na intervenção federal
recém-iniciada uma boa oportunidade de diagnóstico. — Quando perceberem que
colocar todo o Exército nas ruas não vai resolver, que ao menos façam uma
avaliação real do problema e de suas possíveis soluções.
A
intervenção federal também é citada pela socióloga Julita Lemgruber,
ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário e ex-ouvidora de polícia
do estado. Seu receio é de que a atuação de tropas federais provoque um número
maior de autos de resistência, com “ações violentas ainda mais agudas”. De
janeiro de 1998, dado mais antigo disponibilizado pelo ISP, ao primeiro mês
deste ano, 13.499 suspeitos morreram em confrontos no Rio. O número é
equivalente à população do Morro do Vidigal, em São Conrado. — Há uma
parcela generosa da sociedade que acredita que bandido bom é bandido morto. Mas
morreram mais de 13 mil pessoas em 20 anos e as coisas só ficaram piores. Logo,
a solução não é matar — afirma Alba Zaluar.
O coronel
da reserva Paulo César Lopes, ex-corregedor da Polícia Militar, tem visão
diferente. Para o oficial, “não existe política de confronto”, mas, sim, uma
estatística causada pela natureza violenta dos criminosos do Rio: — Há,
logicamente, uma proporcionalidade direta nessa questão, pois violência gera,
naturalmente, violência. Portanto, não cabe nenhuma perplexidade na avaliação
desse fenômeno.
Questionada
sobre as estatísticas, a PM afirmou somente que o comando da corporação “busca
aprimorar constantemente o policiamento empregado e trabalha considerando os
números compilados pelo ISP e também os dados mensais registrados pelos
batalhões”. Também procurado para comentar o tema, o Comando Militar do Leste,
que responde pela intervenção federal no estado, não se manifestou.
O Globo
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