Inconstitucionalidade da investigação
presidencial por atos anteriores ao mandado
Inconstitucionalidade da investigação presidencial por atos anteriores ao mandado
Durante
os trabalhos para a elaboração da Constituição de 1988, participei
de audiências públicas e fui consultado, repetidas vezes, por
constituintes, pelo presidente e pelo relator daquela assembleia – presidida
pelo ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal (STF), na abertura –,
a saber: o deputado Ulysses Guimarães e o senador Bernardo Cabral.
Saíra o País de um regime de exceção e a EC 26/86, proposta pelo
presidente Sarney, objetivava permitir que a Nação voltasse a viver a plena
democracia, com harmonia e independência de Poderes, enunciadas no
artigo 2.º do texto resultante de quase dois anos de amplo debate entre os
representantes do povo e a sociedade. Tão relevante se tornou a temática
democrática que decidiram os constituintes ofertar a cada Poder ampla
autonomia, sem direito à invasão de competências, e atribuindo às Forças
Armadas o dever de repor a lei e a ordem – jamais rompê-las – se os Poderes em
conflito solicitassem sua ação.
Pelo artigo 103, § 2.º, o Supremo Tribunal nem mesmo
nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Congresso pode
legislar. Pelo artigo 49, inciso XI, o Congresso Nacional tem a
obrigação de zelar por sua competência normativa se outro Poder a invadir, e a advocacia e o Ministério Público são funções essenciais
à administração da justiça, mas não são
Poderes.
Por outro lado, a representação popular não existe no
Poder técnico, que é o Judiciário – os ministros do STF são
escolhidos por um homem só –, mas sim nos Poderes
Executivo e Legislativo. Por isso os constituintes conformaram o direito
da sociedade de eleger os seus membros, que são os seus verdadeiros
mandatários. Apesar de ser parlamentarista desde os bancos acadêmicos,
isto é, desde a distante década de 1950, e apesar de a Constituinte ter
procurado adotar tal sistema, alterado na undécima hora para o presidencial de
governo, o certo é que o regime plasmado na Lei Suprema foi o de dar ao
presidente da República a função maior, o topo da pirâmide governamental, com preservação de responsabilidade funcional durante o
período para o qual foi conduzido. Essa é a razão pela qual o afastamento de um
presidente (artigos 85 e 86 da Carta Magna) se reveste de todo um rito composto de freios e contrafreios
e de garantia de defesa não extensível a todos os outros cargos da
administração federal.
É que, devendo a vontade popular ser respeitada, só como exceção das
exceções pode ser o presidente responsabilizado e afastado. Foi essa a origem
do § 4.º do artigo 86 da Constituição federal, cuja dicção é a seguinte: “ O
Presidente da República, na vigência de seu mandato, não
pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
Por nenhum ato anterior ao seu mandato um presidente da República que
chegar ao cargo pelos meios permitidos pela Constituição pode ser
responsabilizado, visto que o que pretendeu o constituinte preservar foi a vontade
popular, pressupondo que atos anteriores deveriam ter sido examinados
previamente à eleição ou ser examinados após o fim do mandato.
A não responsabilização do presidente transcende a figura do próprio
presidente, pois objetiva não permitir que a condução do governo –
sempre presumivelmente a favor da sociedade – seja prejudicada por atos
isolados, mesmo que graves, que pudessem vir a ser, pelos reflexos na
cidadania, prejudiciais à própria cidadania. Assim é que exatamente no artigo
mais grave, que diz respeito ao afastamento do presidente da República, houve
por bem o constituinte afastar a hipótese de atos fora do exercício do mandato
como tema de responsabilização. Nesse particular, bem agiu o
ex-procurador-geral Rodrigo Janot ao não permitir que houvesse investigação do
presidente no concernente à contribuição da Odebrecht a campanha eleitoral do
presidente da Fiesp em São Paulo.
A reabertura, pela atual procuradora-geral da República, de tal
investigação, sob a justificativa de que “investigar” não é
“responsabilizar”, com aval de eminente ministro da Suprema Corte,
a meu ver, representa nítida violação do Texto
Supremo. Uma investigação com claro intuito de responsabilização já
macula a vedação constitucional. Embora não tenha visto fato delituoso no
episódio de contribuição à mencionada campanha – na época não era proibida a
contribuição de empresas –, não entro no mérito de se ela corresponderia ou
não a qualquer espécie de contrapartida (o atual
presidente à época não comandava o País), visto que a questão é
apenas jurídica e constitucional. Quem investiga
quer responsabilizar e a responsabilização é vedada pela Lei Suprema, no
§ 4.º do artigo 86 da Constituição Federal. A Carta Magna não fala em ser
denunciado, mas em ser responsabilizado, razão pela qual o preclaro ministro
Edson Fachin não deveria ter aceitado o pedido da chefe do “parquet”.
Graças a denúncias mal elaboradas pelo antigo procurador-geral da República,
rejeitadas pela Câmara dos Deputados duas vezes, o
Brasil foi rebaixado três vezes pelas agências internacionais de rating, no
momento em que estava o Congresso preparado para discutir algumas das mais
essenciais reformas de que o nosso país necessita (a da Previdência e a
tributária), pois ficou parado durante todo aquele período na expectativa
da atuação congressual.
Com todo o respeito que sempre tenho pelo Poder Judiciário e pelo Ministério
Público, tenho a impressão de que o combate à
corrupção – que apoio, naturalmente – não
pode sobrepor-se aos textos da Lei Suprema. O excessivo
protagonismo de algumas autoridades, que ultrapassam os limites permitidos
pela Carta da República, está se constituindo no grande obstáculo ao
desenvolvimento do Brasil, apesar de algumas sinalizações de melhoria. E, o que
é pior, causando profunda insegurança jurídica, visto que de há muito os
três Poderes deixaram de ser harmônicos e independentes, desde que um Poder
técnico assumiu funções políticas, que a Constituição não lhe outorgou.
Saíra o País de um regime de exceção e a EC 26/86, proposta pelo presidente Sarney, objetivava permitir que a Nação voltasse a viver a plena democracia, com harmonia e independência de Poderes, enunciadas no artigo 2.º do texto resultante de quase dois anos de amplo debate entre os representantes do povo e a sociedade. Tão relevante se tornou a temática democrática que decidiram os constituintes ofertar a cada Poder ampla autonomia, sem direito à invasão de competências, e atribuindo às Forças Armadas o dever de repor a lei e a ordem – jamais rompê-las – se os Poderes em conflito solicitassem sua ação.
Pelo artigo 103, § 2.º, o Supremo Tribunal nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Congresso pode legislar. Pelo artigo 49, inciso XI, o Congresso Nacional tem a obrigação de zelar por sua competência normativa se outro Poder a invadir, e a advocacia e o Ministério Público são funções essenciais à administração da justiça, mas não são Poderes.
Por outro lado, a representação popular não existe no Poder técnico, que é o Judiciário – os ministros do STF são escolhidos por um homem só –, mas sim nos Poderes Executivo e Legislativo. Por isso os constituintes conformaram o direito da sociedade de eleger os seus membros, que são os seus verdadeiros mandatários. Apesar de ser parlamentarista desde os bancos acadêmicos, isto é, desde a distante década de 1950, e apesar de a Constituinte ter procurado adotar tal sistema, alterado na undécima hora para o presidencial de governo, o certo é que o regime plasmado na Lei Suprema foi o de dar ao presidente da República a função maior, o topo da pirâmide governamental, com preservação de responsabilidade funcional durante o período para o qual foi conduzido. Essa é a razão pela qual o afastamento de um presidente (artigos 85 e 86 da Carta Magna) se reveste de todo um rito composto de freios e contrafreios e de garantia de defesa não extensível a todos os outros cargos da administração federal.
É que, devendo a vontade popular ser respeitada, só como exceção das exceções pode ser o presidente responsabilizado e afastado. Foi essa a origem do § 4.º do artigo 86 da Constituição federal, cuja dicção é a seguinte: “ O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”. Por nenhum ato anterior ao seu mandato um presidente da República que chegar ao cargo pelos meios permitidos pela Constituição pode ser responsabilizado, visto que o que pretendeu o constituinte preservar foi a vontade popular, pressupondo que atos anteriores deveriam ter sido examinados previamente à eleição ou ser examinados após o fim do mandato. A não responsabilização do presidente transcende a figura do próprio presidente, pois objetiva não permitir que a condução do governo – sempre presumivelmente a favor da sociedade – seja prejudicada por atos isolados, mesmo que graves, que pudessem vir a ser, pelos reflexos na cidadania, prejudiciais à própria cidadania. Assim é que exatamente no artigo mais grave, que diz respeito ao afastamento do presidente da República, houve por bem o constituinte afastar a hipótese de atos fora do exercício do mandato como tema de responsabilização. Nesse particular, bem agiu o ex-procurador-geral Rodrigo Janot ao não permitir que houvesse investigação do presidente no concernente à contribuição da Odebrecht a campanha eleitoral do presidente da Fiesp em São Paulo.
A reabertura, pela atual procuradora-geral da República, de tal investigação, sob a justificativa de que “investigar” não é “responsabilizar”, com aval de eminente ministro da Suprema Corte, a meu ver, representa nítida violação do Texto Supremo. Uma investigação com claro intuito de responsabilização já macula a vedação constitucional. Embora não tenha visto fato delituoso no episódio de contribuição à mencionada campanha – na época não era proibida a contribuição de empresas –, não entro no mérito de se ela corresponderia ou não a qualquer espécie de contrapartida (o atual presidente à época não comandava o País), visto que a questão é apenas jurídica e constitucional. Quem investiga quer responsabilizar e a responsabilização é vedada pela Lei Suprema, no § 4.º do artigo 86 da Constituição Federal. A Carta Magna não fala em ser denunciado, mas em ser responsabilizado, razão pela qual o preclaro ministro Edson Fachin não deveria ter aceitado o pedido da chefe do “parquet”.
Graças a denúncias mal elaboradas pelo antigo procurador-geral da República, rejeitadas pela Câmara dos Deputados duas vezes, o Brasil foi rebaixado três vezes pelas agências internacionais de rating, no momento em que estava o Congresso preparado para discutir algumas das mais essenciais reformas de que o nosso país necessita (a da Previdência e a tributária), pois ficou parado durante todo aquele período na expectativa da atuação congressual.
Com todo o respeito que sempre tenho pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, tenho a impressão de que o combate à corrupção – que apoio, naturalmente – não pode sobrepor-se aos textos da Lei Suprema. O excessivo protagonismo de algumas autoridades, que ultrapassam os limites permitidos pela Carta da República, está se constituindo no grande obstáculo ao desenvolvimento do Brasil, apesar de algumas sinalizações de melhoria. E, o que é pior, causando profunda insegurança jurídica, visto que de há muito os três Poderes deixaram de ser harmônicos e independentes, desde que um Poder técnico assumiu funções políticas, que a Constituição não lhe outorgou.
Ives Gandra da Silva Martins, ex-presidente do TST - O Estado de S.
Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário