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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Banditismo estrutural - Revista Oeste

Flávio Gordon

Antes que uma mazela social, a “explosão de criminalidade” é vista como um dos meios pelos quais a ordem opressora atual pode ser rompida, abrindo caminho para um futuro radiante

Lula, em caminhada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro | Foto: João Gabriel Alves/AGIF/Estadão Conteúdo

Lula, em caminhada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro | Foto: João Gabriel Alves/AGIF/Estadão Conteúdo 

“Despertaremos por toda parte os germes da confusão e do mal-estar.
Que os traficantes de drogas se atirem sobre as nossas nações aterrorizadas!” (Louis Aragon, poeta e comunista francês, citado por Olavo de Carvalho)

“O PT tinha um diálogo com nóis cabuloso, mano”
(liderança do PCC interceptada pela Polícia Federal, em abril de 2019)

Um gráfico impressionante circulou nas redes nesta semana, com base em dados do Atlas da Violência produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Ele mostra a série histórica de homicídios no país desde o momento em que o PT assumiu o governo até os dias de hoje. A partir do primeiro mandato do ex-presidiário Luiz Inácio Lula da Silva, o que se vê é uma tendência geral de aumento dos índices, movimento que culmina no alarmante número de 62.517 homicídios no último ano do governo de Dilma Rousseff. 

A partir do impeachment da ex-presidente, quando então Michel Temer assume o cargo, inicia-se um movimento de queda vertiginosa nos números, movimento que continua e se intensifica no governo de Jair Bolsonaro, que adotou uma série de medidas mais duras no combate à criminalidade violenta.

Entre as várias causas possíveis para o fenômeno, gostaria de destacar aquela que, embora já houvesse sido diagnosticada por Olavo de Carvalho em um capítulo seminal de O Imbecil Coletivo, continua mal compreendida pelo público em geral. Chamo-a de banditismo estrutural. Sim, se a ideia esquerdista-identitária de “racismo estrutural” baseia-se numa falsificação completa da história e da sociologia brasileiras, o mesmo não se diga do conceito de banditismo estrutural, que decidi cunhar para caracterizar a relação frequentemente observável entre a ascensão da esquerda revolucionária ao poder e o aumento da criminalidade violenta.

Essa relação, cujo marco simbólico, no caso brasileiro, é o pacto firmado entre criminosos comuns e guerrilheiros comunistas no presídio de Ilha Grande, na década de 1970, pode ser observada em uma série de episódios factuais recentes, com destaque para a preferência eleitoral do líder do PCC, a votação expressiva do candidato socialista nos presídios e a visita desse mesmo candidato ao Complexo do Alemão, ocasião na qual usou boné com a inscrição “CPX”, que os narcotraficantes costumam usar como emblema. Mas há também razões doutrinais históricas para o banditismo estrutural promovido pela esquerda. Senão vejamos.

CPX Lula
Lula esteve no Complexo do Alemão - 
 Foto: Carlos Elias Junior/FotoArena/Estadão Conteúdo
No livro O Combate das Trevas. A Esquerda Brasileira: das Ilusões Perdidas à Luta Armada, de 1987, o historiador Jacob Gorender afirma que, entre os anos de 1964-1968, na primeira fase do regime militar, a esquerda brasileira dedicou-se a uma revisão profunda do cânon marxista-leninista quanto à “classe” que deveria assumir o protagonismo na revolução e conduzir o processo histórico.
Na esteira das revoluções cubana e argelina, da Guerra do Vietnã e da Revolução Cultural na China, esquerdistas de todo mundo passaram a encarar o campesinato como principal candidato a destituir o proletariado urbano do posto de classe revolucionária por excelência. 
Mas, em paralelo ao campesinato, um outro segmento social começava a emergir como uma interessante alternativa: os marginais, os delinquentes, os bandidos ou, em suma, o lumpemproletariado. “Marx não confiava no lúmpen, nos trabalhadores degradados pelo vício e pelo crime” — escreve Gorender. “Porém, nos países atrasados e oprimidos, as circunstâncias são diferentes. O marginal, seja cafetão ou prostituta, pode ser arrancado da colaboração com a polícia e convertido em revolucionário.”

E, de fato, a ideia do criminoso como revolucionário, como fator disruptivo da ordem burguesa opressora, transparece frequentemente em atos e palavras da nossa intelligentsia de esquerda. Essa romantização do bandido está no lema “seja marginal, seja herói”, de Hélio Oiticica, ou em filmes como O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. Em coisas como a sugestão de um conhecido jornalista de “dar voz aos bandidos” ou a apologia do assalto feita por uma conhecida “intelectual” petista. E na relação íntima de amizade entre um herdeiro milionário ultraesquerdista e um narcotraficante carioca.

Não raro, ocorre também de o banditismo estrutural manifestar-se mais diretamente na boca de algum esquerdista emocionado. Foi, por exemplo, o caso do blogueiro petista Eduardo Guimarães, que em 2018 postou em seu Blog da Cidadania: “A revolução está chegando, mas não será daquele tipo em que o povo se arma e marcha tal qual exército para cima dos opressores. A revolução se dará através da explosão da criminalidade. Será uma revolução de guerrilha. A justiça será feita nos semáforos, em cada esquina [sic]”. Na mesma linha, o blogueiro Anderson França, então colunista da Folha de S.Paulo, chegou a propor em suas redes sociais uma espécie de “frente ampla” reunindo a militância de esquerda e o Comando Vermelho. 

Disse na época o extremista de esquerda (o mesmo que, há poucos dias, aliás, confessou seus desejos homicidas para com Bolsonaro, familiares e apoiadores): “Pense comigo que: a PM arrega pro crime [sic], mas bate em militante. Imagine o dia em que a militância fechar com o crime, APENAS PENSE [sic], a força do aço dos menino [sic], a disposição dos manifestante [sic]. CVRL e esquerda junto [sic]. Aliás, né? A História já conta. Eu fechava lindo nessa frente. LINDO [sic]”.

“Nos países atrasados e oprimidos, as circunstâncias são diferentes. O marginal, seja cafetão ou prostituta, pode ser arrancado da colaboração com a polícia e convertido em revolucionário”

Tendo em vista esse tipo de mentalidade — que, embora nem sempre declarada tão singelamente, subjaz à cultura política da esquerda revolucionária —, não surpreende que a criminalidade aumente toda vez que partidos, movimentos ou agentes de extrema-esquerda conquistam posições de poder e influência. 
Basta olhar para o que aconteceu recentemente em vários países da América Latina governados por integrantes do Foro de S. Paulo, organização fundada em 1990 por Lula e Fidel Castro para levar o socialismo ao poder em todos os países da região. O caso da Venezuela é paradigmático. Com o chavismo no poder, o número de homicídios aumentou de maneira exponencial, atingindo, já com Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, impressionantes 92 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Reunião de membros do Foro de São Paulo. O grupo apoia 
a eleição de candidatos de esquerda na América Latina - 
 Foto: Reprodução

Roberto Briceño-León, sociólogo e membro do Observatório Venezuelano da Violência, pesquisou a fundo as causas do fenômeno. Em artigo crucial sobre o assunto, publicado em 2006, León concluiu que a explosão de crimes violentos durante a vigência do regime chavista não era obra do caso, resultando, antes, de cálculo político e ação sistemática. Para que o leitor tenha ideia dos números, considere-se que, em 1998, durante a campanha eleitoral, 4.550 homicídios haviam sido cometidos na Venezuela. Em 2004, após seis anos de governo Chávez, esse número quase triplicara, passando a 13.288.  

A taxa de homicídios por 100 mil habitantes, que em 1998 era de 19,5, saltou para 51 no ano de 2003 um crescimento muito fora da curva. De um lado, a crise política impulsionara a criminalidade. De outro — eis o argumento central de León —–, o governo chavista agira deliberadamente no sentido de impedir o seu controle e repressão.

Nas palavras do autor: “Há políticas que favorecem a violência. Uma delas tem sido o descrédito sistemático ao qual foi submetida a polícia, e que levou tanto a uma campanha de agressões e desqualificações verbais, como a medidas de desarmamento dos funcionários. No ano de 2002, a emissora de televisão do governo transmitiu sistemática e repetidamente a promoção do filme venezuelano intitulado Disparem para Matar, como sempre fazem os canais de tevê quando estão preparando a audiência para uma estreia. Nas cenas escolhidas do filme para os comerciais, apresentava-se um oficial de polícia ordenando morbidamente a repressão em um bairro pobre; depois mostrava-se o crime cometido por um funcionário da polícia num rincão escuro; após um som estrepitoso do disparo, escutava-se o grito raivoso e longo da mãe da vítima que acusava os policiais: ‘Assassinos!’. Antes e depois da propaganda, agregavam-se frases políticas contra a oposição política ao governo”.

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Os presidentes Hugo Chávez e Lula, em 2009 | Foto: Ricardo Stuckert/PR

“Isso não parece ser casualidade” — continuava Briceño-León. “Não é de estranhar, então, que em 1999 se atingissem 5.974 homicídios, que no ano 2002 chegaram a 9.244 e que em 2003 superaram as 13 mil vítimas. Quer dizer, os homicídios triplicaram em seis anos da chamada ‘revolução bonita’”. E arriscava um prognóstico: “Num contexto de violência política como a que descrevemos, a violência delinquencial, a violência das gangues e da polícia tenderão a se intensificar de modo notável, pois os indivíduos violentos encontrarão um espaço de fácil atuação, e isso é o que já está acontecendo nestes últimos anos”.

O caso venezuelano é um exemplo perfeito das consequências de uma cultura política para a qual a criminalidade pode ser encarada positivamente, como potência revolucionária. 
Daí que, onde quer que socialistas e revolucionários cheguem ao poder, os índices de criminalidade subam consideravelmente. Para a mente revolucionária, o banditismo não é acidental, mas estrutural. 
Antes que uma mazela social, a “explosão de criminalidade” para falar como o blogueiro petista acima citado é um dos meios pelos quais a ordem opressora atual pode ser rompida, abrindo caminho para um futuro radiante, um paraíso terreno no qual segundo a letra da profecia o homem será livre para “caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições”.

Leia também “Bolsonaro e o bolsonarismo”

Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste

 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Lições do Mobral - Valor Econômico

Bruno Carazza


MEC precisa de mais gestão e menos ideologia

No auge do governo Médici, o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, exigiu a demissão da gerente pedagógica da fundação Mobral, Andrea Mandim. A acusação era que sua filha estava envolvida com os movimentos de oposição ao regime militar, além de seu marido ter sido cassado num dos Atos Institucionais por ter sido homem de confiança de Carlos Lacerda.

Mario Henrique Simonsen vinha dando contribuições informais ao governo desde que escreveu, em parceria com Roberto Campos e o jurista José Luiz Bulhões Pedreira, o programa econômico do primeiro-ministro Tancredo Neves, em 1961. Durante o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), Simonsen ajudou a conceber a nova regulação do sistema financeiro nacional e criou uma fórmula de reajuste salarial para conter a inflação, além de ser figura central na construção dos primeiros modelos macroeconômicos do recém-criado Ipea (então chamado de Epea, com “E” de “Escritório”).

Após recusar diversos convites para integrar a equipe econômica, Mario Henrique Simonsen decidiu entrar no governo num cargo pouco usual para quem, aos 35 anos, já era considerado o maior economista brasileiro: em 1970, assumiu a presidência do Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral. Antenado ao que de mais avançado se discutia em teoria macroeconômica no mundo, Simonsen havia lançado no ano anterior o livro Brasil 2001, em que apontava a educação como um dos grandes gargalos para o crescimento brasileiro. Aceitar a nomeação, portanto, seria a oportunidade de aplicar, na prática, as recomendações de seus modelos teóricos.

O Censo Demográfico de 1970 mostra que, àquela época, havia no Brasil 18.146.977 homens e mulheres com mais de 15 anos que não sabiam ler nem escrever um simples bilhete - o que representava 33,6% da população em idade de trabalhar. A ideia de um programa de alfabetização em larga escala de adultos havia surgido em 1967, mas não saía do papel por falta de orçamento. A solução encontrada por Simonsen foi buscar fontes extraorçamentárias de recursos: articulou para ficar com 30% das apostas da recém-criada Loteria Esportiva e aprovou um incentivo fiscal que abatia do imposto de renda as doações de pessoas físicas e jurídicas feitas em nome do Mobral.

Embora existam críticas em relação ao seu real alcance (aliás, o programa merece ser reavaliado com base nas técnicas mais recentes de análise de impacto), é inegável que os métodos introduzidos por Simonsen e Arlindo Lopes Corrêa, seu braço-direito e sucessor na presidência do Mobral, foram revolucionários para a época - e ainda têm muito a nos ensinar, principalmente nestes dias em que o Congresso volta a discutir a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, o famoso Fundeb.

O Mobral foi uma das primeiras experiências no Brasil em que a educação deixou de ser um feudo de pedagogos e educadores para ser encarada sob um olhar econômico, medida com dados, diante de seus custos, escala e resultados. Resolvido o problema dos recursos, Simonsen e Lopes Corrêa adotaram a padronização do material didático, implementaram um cursos de capacitação em massa de professores por rádio e TV e valeram-se de um moderno (naquele tempo, claro) sistema de cartões perfurados para coletar informações sobre o tamanho das classes e o nível dos alunos.

A grande inovação do Mobral, porém, estava na opção pela municipalização. Em cada cidade do país foi criada uma comissão encarregada de gerenciar a execução do programa. Ao governo federal cabia fornecer os insumos - inclusive os recursos financeiros para pagamento dos professores, que eram distribuídos em proporção ao número de alunos atendidos -, mas a gestão cabia aos representantes locais, que exerciam esses encargos voluntariamente. Em poucos anos o Mobral se tornou um dos poucos pontos de contato direto entre o governo federal e a população dos rincões do Brasil. Na esteira do programa, foram criadas bibliotecas, centros culturais e balcões de emprego.

Na última sexta-feira, o presidente Bolsonaro anunciou Milton Ribeiro como novo ministro da Educação. Contando a passagem relâmpago de Carlos Alberto Decotelli, que sequer chegou a tomar posse, trata-se do quarto ocupante do mais alto cargo da gestão educacional do país em apenas dezoito meses de governo. Seus antecessores Ricardo Vélez e Abraham Weintraub foram protagonistas de tantas polêmicas ideológicas que é difícil avaliar se houve qualquer avanço na condução da política do setor. Um dos maiores exemplos dessa paralisia está nas discussões sobre o novo Fundeb, que precisa ser aprovado pelo Congresso antes do final do ano, sob pena de privar os estudantes da maior fonte de financiamento da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio. Por falta de liderança do MEC, desperdiçamos meses de debates e agora precisamos aprovar a toque de caixa uma regulação que ainda está longe de ser unanimidade em termos de fontes de financiamento e critérios mais justos de distribuição de recursos - como mostrou Claudia Safatle em sua coluna no Valor de sexta-feira (10/07).

Voltando ao Mobral, apesar de toda a pressão exercida pelos generais pela demissão de Andrea Mandim, Simonsen não se curvou e manteve a coordenadora pedagógica no cargo, deixando claro que não admitiria que pressões ideológicas comprometessem a condução de seu programa. Aos 83 anos, Arlindo Lopes Corrêa não vê a hora de passar a pandemia para voltar a jogar seu vôlei de praia nas areias da Barra da Tijuca. Conversando sobre os tempos do Mobral, contou que recentemente uma amiga o questionou sobre como Simonsen e ele haviam construído um programa “tão de esquerda” justamente no período mais duro da ditadura militar.

Esbanjando seu bom-humor carioca, Arlindo conta que as políticas públicas não deveriam ser julgadas por serem de direita ou de esquerda, mas sim se dão resultados bons ou ruins. Que sirva de lição para o novo ministro da Educação.

Bruno Carazza, professor do Ibmec - Valor Econômico


sexta-feira, 3 de julho de 2020

Poderia ser pior - Nas entrelinhas


“O afrouxamento do distanciamento social, por descoordenação entre os entes federados e forte pressão social, mostra o risco da imunização de rebanho”

Em meados de março passado, um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido — a mesma que desenvolve a vacina que está sendo testada por aqui — previa a ocorrência de 478 mil mortes pelo novo coronavírus no Brasil, o que foi e ainda é considerado um exagero. Chegaram a essa conclusão analisando os casos da Itália e da Coreia do Sul e comparando os perfis demográficos desses países com os do Brasil e da Nigéria.
Correio Braziliense - Nas Entrelinhas - 3/7/2020

[Importante destacar que a falta de coordenação entre os entes federados - que deveria ser exercida por um poder central (no caso excepcional da pandemia pelo Poder Executivo) - só existe devido decisão do Supremo Tribunal Federal - STF, atribuir aos estados e municípios total autonomia na execução da política de controle da pandemia.
Devido a descoordenação citada na matéria está prevalecendo, ainda que contra à vontade dos inimigos do presidente Bolsonaro, por vias oblíquas a imunidade de rebanho defendida pelo presidente, que também defende a hidrocloroquina como preventivo à contaminação pela Covid-19.
Uma vida humana tem valor imensurável, mas a imunidade de rebanho, combinada com a cloroquina, vai apresentar um número menor de mortes do que o previsto pela universidade inglesa - que esperamos seja melhor no desenvolvimento da vacina do que nas previsões.
Com as bençãos de DEUS a previsão dos ingleses é várias vezes superior ao número de mortes que ocorrerão no Brasil, devido à pandemia.
A propósito,um dos coordenadores da política de combate ao covid-19,conforme estabelecido pelo STF, foi o governador do DF. O ilustre governante baixou um decreto estabelecendo o uso de máscaras no DF - sob pena de multa de R$2.000,00 - e ontem, 2, foi flagrado em área pública (próximo a uma UPA) sem máscara. ]

Na mesma época, dois pesquisadores brasileiros montaram um modelo matemático em Python, que previa a ocorrência de 2 milhões de mortes no Brasil, caso o isolamento social não fosse adotado. José Dias do Nascimento Júnior, professor e doutor em astrofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e astrônomo associado ao Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, e Wladimir Lyra, doutor da New Mexico State University, compartilharam os dados com o conceituado Centro de Ciências de Sistemas e Engenharia (CSSE, em inglês) da Universidade Johns Hopkins.

Então, os indicadores de contaminação da Itália registravam que um infectado passava o vírus a três ou quatro pessoas, em média, antes de se curar ou morrer pela doença; com isso, o número de casos dobrava a cada quatro dias. Diante das projeções, Lyra concluiu que haveria duas maneiras de finalizar essa epidemia. A primeira é quando muitas pessoas fossem infectadas e desenvolvessem a imunidade ao se curar. Obviamente, nesse caso, o número de mortos poderia ser assustador. A segunda maneira seria quando a taxa de infecção fosse menor do que a taxa de remissão. A quarentena (ou vacina) funciona por diminuir a taxa de infecção. O tratamento aumenta a taxa de remissão. Sem capacidade de tratamento ou vacina, temos apenas a quarentena como medida eficaz.

Na época, no Brasil, cada pessoa infectada estava, em média, infectando seis. Caso nada fosse feito, em dois meses, 53% da população estaria infectada ao mesmo tempo. Isso significaria mais de 100 milhões de casos e 2 milhões de mortos. Esses e outros estudos foram decisivos para a adoção da estratégia de isolamento, com objetivo de achatar a curva da epidemia e permitir que o sistema de saúde se estruturasse para enfrentar a doença.

Caso a estratégia de “imunização de rebanho” tivesse sido adotada, como o presidente Jair Bolsonaro ainda defende, a situação atual seria muito pior, diria o humorista Barão de Itararé, na sua Teoria das duas hipóteses, segundo a qual tudo pode piorar. Apparício Fernando Brinkerhofer Torelly, genial criador do jornal A Manha, sabia das coisas. Ou seja, é falsa ideia de que a quarentena não funcionou, mesmo aos trancos e barrancos. E o afrouxamento da política de distanciamento social, por descoordenação entre os entes federados e forte pressão social sobre governadores e prefeitos, está mostrando o risco que a imunização de rebanho ainda representa.

Tragédia anunciada
Quando os estudos foram divulgados, o Brasil tinha 413 casos confirmados, sendo 291 em São Paulo, e registrava a primeira morte, um homem de 62 anos, na capital paulista. Hoje, estamos próximos de 1,5 milhão de brasileiros infectados, com quase 50 mil novos contaminados e mais de 1.200 mortes por dia. Somente o estado de São Paulo confirmou mais 12.244 casos nas últimas 24 horas e mais 321 óbitos.

Metade das unidades federativas do país já registrou mais de mil mortes pelo novo coronavírus. O Rio de Janeiro tem 116.823 casos e 10.332 mortes. O Pará bateu mais de cinco mil perdas, com 5.004 registros. O Ceará tem 6.284; Pernambuco, 4.968 mortes. Amazonas, 2.862; Maranhão, 2.119; Bahia, 1.947; Espírito Santo, 1.728; Rio Grande do Norte, 1.103; Alagoas, 1.091; Minas Gerais; 1.059; e Paraíba, 1.044. A epidemia, agora, avança nos estados do Centro-Oeste e no Distrito Federal.

Como na economia o estrago é enormea massa salarial perdeu R$ 52 bilhões, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)—, prefeitos e governadores entraram numa espécie de salve-se quem puder. Em muitas cidades, o isolamento social está sendo substituído pela distribuição de um coquetel à base de hidrocloroquina, para a população de baixa renda, que se contamina na volta ao trabalho.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense




terça-feira, 31 de março de 2020

Custo do Bolsa Família vai dobrar e o auxílio aos informais vai a R$ 60 bilhões - Míriam Leitão

O Globo



O pensamento na equipe econômica é que o governo tem que apoiar os mais frágeis. Esse é a prioridade. A preocupação por lá é evitar qualquer oportunismo que apareça neste momento. As sugestões de aumentos de gastos surgem a todo o momento. Na realidade, o foco é elevar as despesas com os mais pobres. É o melhor sob qualquer ponto de vista, seja social, moral ou econômico. Isso é o que vai resolver o dilema. Na economia paralisada, o apoio a quem perdeu sua capacidade de geração de renda tem que ser forte.

Surgiu a ideia, por exemplo, de que o Rio não seja obrigado a vender a Cedae, a companhia de água e esgoto do estado, quando tudo isso passar. Era algo já acertado no plano de recuperação do Rio. É preciso cuidado com os oportunismos.  O problema maior agora é a burocracia atrasar o envio do dinheiro aos mais fragilizados. O governo já deveria ter estruturado a forma para distribuir os recursos, sem esperar pela aprovação no Senado. Na segunda-feira, o ministro Onyx Lorenzoni, da Cidadania, falou em acionar os Centros de Referência de Assistência Social, presentes em todos os municípios. O economista Paes de Barros já havia me falado isso em entrevista. Mas isso exige articulação com os municípios, e não briga, como tem feito o governo federal em algumas áreas.

A equipe econômica não tem especialista em combate à pobreza. É um tema muito específico, complexo. Mas há no governo quem entenda do tema. O Ipea, por exemplo, está estudando como ampliar o Cadastro Único. Neste momento, a primeira coisa a fazer é pagar imediatamente para as 70 milhões de pessoas já registradas.

Senado prepara 'pacotão social' para amanhã; governo pede tempo para avaliar

Ideia é estender o número de categorias atendidas pelo auxílio do governo e criar Renda Básica de Cidadania Emergencial

O autor original é o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e tem Esperidião Amin (PP-SC) como relator. O Senado aprovou ontem auxílio de R$ 600 mensais para trabalhadores informais e temporários. O texto seguiu para a sanção do presidente Jair Bolsonaro, que prometeu assiná-lo ainda hoje.


Ainda em elaboração, a proposta central é atender a todas as pessoas inscritas no Cadastro Único (CadÚnico), do Ministério da Cidadania, principal fonte de informações sociais do país, que tenham renda inferior a três salários mínimos.  Antes da ideia de aumentar esse pacote, incorporando categorias a serem atendidas, Randolfe diz que a projeção era atender 40 milhões de pessoas, com custo de R$ 28 bilhões para o governo. Segundo o senador, esses números devem crescer.

Bezerra pediu que os senadores apresentassem o relatório - em elaboração por Amin - para que o governo possa avaliá-lo antes da votação. Por isso, a análise do projeto foi adiada para amanhã. O fato de Bolsonaro ainda não ter sancionado o projeto aprovado ontem também contribuiu para o cancelamento da votação hoje. A estimativa de líderes do Congresso é que o projeto aprovado ontem atenda 25 milhões de pessoas.

O Globo


quinta-feira, 5 de março de 2020

Acordo envergonhado - Nas entrelinhas

“Bolsonaro mantém uma posição ambígua em relação aos três projetos enviados pelo governo ao Congresso e um apoio velado à manifestação convocada para 15 de março”

O Congresso Nacional manteve os vetos do presidente Jair Bolsonaro a trechos da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020 que tratam do chamado “Orçamento Impositivo” por 398 votos a 2. Quando ocorre uma maioria dessa magnitude, não tenham dúvida, houve um tremendo acordão, ainda que um dos lados, no caso o presidente Jair Bolsonaro, bata no peito e diga que não. [nada impede que o 15 de março tenha convencido parlamentares sensatos, não há só os venais - pelo menos em tempo integral, tem muitos que às vezes, excepcionalmente, se tornam temporariamente honestos e colocam os interesses do Brasil acima dos deles, especialmente  diante de certas circunstâncias.] O acordo incluiu o envio, pelo Palácio do Planalto, de três projetos para regulamentar o assunto, que serão analisados na próxima semana. Provavelmente, haverá disputa entre grupos governistas e da oposição que discordam do acordo feito nos bastidores da negociação entre a equipe econômica e os líderes do Congresso, principalmente seu presidente, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Há muitos interesses em jogo, além das emendas parlamentares ao Orçamento da União.

Seis vetos foram derrubados pelos congressistas, para impedir o bloqueio de verbas destinadas à pesquisa da Embrapa, Fiocruz, Ipea e IBGE, de autoria do deputado Arnaldo Jardim (SP), líder do Cidadania. Nesse caso, porém, a orientação do governo foi pela derrubada dos vetos. Votaram a favor 282 deputados e 50 senadores (eram necessários 257 e 41 votos, respectivamente). O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), lembrou que o acordo fora costurado no fim do ano passado e assegura recursos para instituições científicas, inclusive para garantir pesquisas sobre o coronavírus.

A partilha
O grande impasse, porém, era mesmo em relação ao veto 52 de Bolsonaro, mantido pelo Congresso integralmente, relativo a emendas impositivas do relator do Orçamento no valor de R$ 30 bilhões. Com os três projetos encaminhados pelo governo, haverá redução de cerca de R$ 10 bilhões nessas emendas. Com as mudanças, as emendas do relator passam de R$ 30,1 bilhões (incluindo desonerações do Programa Verde e Amarelo, no valor de R$ 1,5 bilhão) para R$ 20,5 bilhões — R$ 9,6 bilhões a menos. As emendas individuais são mantidas em R$ 9,5 bilhões. O mesmo acontece com as emendas de bancada, que somam 5,9 bilhões. E as emendas de comissão permanecem em R$ 700 milhões. Nos bastidores, fala-se que as emendas do relator perderão mais R$ 5 bilhões, ou seja, o governo teria de volta R$ 15 bilhões.
[LEMBRETE: Fica bem mais fácil entender a resistência do presidente Bolsonaro, considerando:

''O presidente não tem os poderes para governar, mas tem a responsabilidade de governo. 

O Congresso manda no orçamento e não tem o ônus de arrecadar os recursos, nem a responsabilidade de governar

Ou seja, tem o bônus de gastar''.]


O que mais irritou Bolsonaro não foram as destinações dos recursos, mas os dispositivos que davam poder aos parlamentares para indicar a ordem de prioridade para execução das emendas e o prazo de 90 dias para liberação dos recursos das emendas do relator do Orçamento, com claros objetivos eleitorais, o que o presidente considerou uma usurpação de poder do Executivo. Na verdade,  impedia a liberação de recursos para os aliados em detrimento dos adversários.

A origem do conflito é uma mudança constitucional aprovada em 2015, durante a crise do governo Dilma Rousseff, com amplo apoio no Congresso, inclusive do então deputado federal Jair Bolsonaro. Pelas novas regras, as mudanças feitas pelos parlamentares ao Orçamento da União devem ser executadas obrigatoriamente. Na época, o discurso era acabar com o toma lá, dá cá. Há quatro tipos de emendas parlamentares: individuais, feitas por deputado ou senador com mandato vigente; de bancada, que reúnem os parlamentares do mesmo estado ou do Distrito Federal, ainda que sejam de partidos diferentes; de comissões, propostas pelas comissões permanentes ou técnicas da Câmara e do Senado; e do relator do Orçamento, incluídas pelo relator a partir das demandas feitas por outros políticos.

O Palácio do Planalto conduziu mal as negociações durante a aprovação do Orçamento, o que permitiu que o relator-geral, deputado Domingos Neto (PSD-CE), avançasse em R$ 30 bilhões do Orçamento, numa negociação que envolveu principalmente os líderes do Centrão na Câmara (PSL, PL, PP, PSD, MDB, PSDB, Republicanos, DEM, Solidariedade, PTB, Pros, PSC, Avante e Patriota). Bolsonaro tentou resolver o problema vetando as emendas, mas entrou em contradição com os setores do Congresso responsáveis pela aprovação das reformas, contra os quais mobilizou a opinião pública e lançou seus aliados de extrema-direita nas redes sociais. Como não assume o acordão publicamente, mantém uma posição ambígua em relação aos três projetos enviados pelo governo ao Congresso e um apoio velado à manifestação convocada para 15 de março.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A bomba acima de todos - William Waack

O Estado de S.Paulo

O governo está em dificuldades para tocar um projeto político central

A ação do governo em torno de um grande eixo estratégico – reduzir o balofo Estado brasileiro – tem sido em parte uma lição de oportunidades perdidas. Vendo o Estado brasileiro como principal entrave ao crescimento, a equipe de Paulo Guedes colocou a reforma administrativa no centro do foco. Tratar do funcionalismo público seria a maneira direta de lidar com contas públicas, eficiência e gestão.

Conforme já assinalado aqui, está na elite do funcionalismo público brasileiro (especialmente federal), por sua capacidade de organização e influência, o grande adversário da proposta de Paulo Guedes de uma ampla reforma do Estado, começando pela administrativa. Nesse sentido, do ponto de vista político, a operação toda começou mal.

Em parte pelo próprio ministro, que parece subestimar como se propagam na esfera legislativa e político-partidária (fortemente influenciada pelo funcionalismo em Brasília) palavras que ele profere em público sem calcular consequências. Ao adversário neste momento ele entregou a bandeira de “vítima”, que é nas narrativas políticas sempre uma posição confortável.

No fundo está, porém, uma outra questão política mais abrangente e profunda. É o tamanho do empenho do Executivo em levar adiante de forma coordenada e organizada no Legislativo uma operação para alterar substancialmente o serviço público, que justamente ali tem um de seus mais importantes pilares de sustentação. É difícil fugir à constatação de que o problema central é a dificuldade do próprio presidente em ditar a agenda política (aliás, seu grande e pouco usado instrumento de poder).

Por detrás da “fumaça” sobre o campo de batalha da reforma administrativa, está uma realidade crítica. Que deveria robustecer o governo com argumentos imbatíveis. De fato, existe no Brasil um “prêmio salarial” pago pelo contribuinte ao servidor público, prêmio que não encontra comparação nas principais economias. Os números são de diversas instituições, como Banco Mundial, FGV ou Ipea, que compararam remunerações nos setores público e privado levando em consideração a semelhança entre funções. No Brasil, esse prêmio chega a 96%, enquanto a média mundial (setor público melhor remunerado que o privado) é de 21%. Nos Estados esse “prêmio” é menor e, nos municípios, praticamente se equivalem as remunerações.

O problema, assinalam esses estudos, não está no atendente do posto de saúde ou no agente penitenciário, mas, sim, na elite do funcionalismo. [elite essa que, em praticaemnte sua totalidade, não integra o FUNCIONALISMO - essa elite é formada por MEMBROS do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Ministério Público, que não estão sujeitos as regras restritivas que alcançam o servidor público.
A classificação MEMBROS favorece em muito os nela incluídos, por ser recorrente que qualquer medida limitadora de alguma vantagem para o servidor público = funcionalismo = por óbvio, só atinge o servidor público, deixando fora os MEMBROS e são estes os detentores de poder, influência e prestígio.membros.] 
 E vem de longe, não pode ser atribuído a um só governo. Servidores públicos no topo conseguiram até melhorar seu rendimento em período de grave crise econômica: durante a recente recessão, a diferença a favor dessa categoria frente ao setor privado aumentou (segundo o Ipea). É o resultado evidente alcançado pela sua capacidade de articulação política.

Em estudos do Banco Mundial, a equipe de Guedes foi buscar recomendações que parecem sensatas: as mais de 300 carreiras do funcionalismo público brasileiro necessitam ser sistematizadas e reorganizadas; o tempo médio para que um funcionário chegue ao topo da carreira precisaria ser esticado; a taxa de reposição deles precisaria ser reduzida. A situação só se agravou nos últimos tempos. A pressão desse setor sobre as contas públicas se juntou ao precário estado delas: 12 dos Estados brasileiros não vão conseguir respeitar um dos dispositivos essenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe gastos acima de 60% com folha de pessoal.

Com o que chegamos à famosa bomba fiscal – no fundo, o fator central condicionando os acontecimentos. Não é apenas uma questão técnica. É política no seu significado mais amplo, como ficou mais uma vez demonstrado para Guedes e Bolsonaro.
 
William Waack, jornalista - Coluna em O Estado de S. Paulo 
 
 
 

terça-feira, 10 de setembro de 2019

O fim do Bolsa Família - Nas entrelinhas

“Pautado por medidas disruptivas dos programas sociais e decisões ultraconservadoras, o governo Bolsonaro não tem uma marca, exceto o dedo no gatilho no quesito segurança pública”

O ovo de Colombo do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi a fusão dos programas de transferência de renda herdados do governo de Fernando Henrique Cardoso, alguns originários do governo Sarney, num único programa: o Bolsa Família. A lógica do programa era a mesma, a focalização do gasto social nos mais pobres, em detrimento das políticas sociais universalistas, estratégia imposta pelo grupo social-liberal da equipe do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan à sua ala desenvolvimentista, porém, a escala foi ampliada.

Do ponto de vista do combate às desigualdades e da redistribuição da renda, o salário mínimo, a indexação das aposentadorias e as aposentadorias rurais tiveram e ainda têm um peso muito maior no combate à pobreza, mas, do ponto de vista da marca de um governo que se pretendia mais popular, o Bolsa Família foi um indiscutível sucesso de marketing político. Em todo o Brasil, mais de 14,1 milhões de famílias são atendidas pelo programa, ou seja, cerca de 56 milhões de pessoas. Vem daí a resiliência dos eleitores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e boa parte da sua capacidade de transferência de votos.

A primeira tentativa do governo Bolsonaro no sentido de capturar esse eleitorado foi manter o Bolsa Família, cujo valor médio hoje é de R$ 186,23, e agradar a seus beneficiados com uma parcela a mais do benefício, a 13ª Bolsa. A mudança, porém, não alterou o DNA do programa, daí a desejo de substituí-lo, a pretexto de incluir no sistema de proteção social oficial milhões de crianças brasileiras em situação de vulnerabilidade que não recebem benefício do governo federal.

A proposta está sendo analisada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, com base num estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) intitulado “Uma proposta para a unificação dos benefícios sociais de crianças, jovens e adultos pobres e vulneráveis”, divulgado ontem. A ideia é fundir o Bolsa Família, o Salário-Família, o Abono Salarial e a Dedução por Dependente no Imposto de Renda da Pessoa Física, políticas públicas voltadas à proteção da infância e dos vulneráveis à pobreza no país. Os pesquisadores Sergei Soares, Leticia Bartholo e Rafael Guerreiro Osório, autores do estudo, consideram o sistema de proteção social existente uma colcha de retalhos, construída ao longo dos anos, mas com buracos e sobreposições.

Nova marca
Segundo os dados oficiais, 1,6 milhão de crianças recebem Salário-Família e Bolsa Família, outras 400 mil crianças recebem Salário-Família e dedução no Imposto de Renda. Em contrapartida, de um total de 52 milhões de crianças no Brasil, 17 milhões não têm benefício social. O novo ovo de Colombo, porém, é a manutenção do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Isso significa mais recursos para os mais pobres? Negativo, a ideia é redistribuir o montante atual, ou seja R$ 52,8 bilhões, mirando principalmente crianças e jovens.

O sistema teria três benefícios: um de R$ 45 reais por criança e jovem com menos de 18 anos de idade, universal e independente da renda
outro, de R$ 90 por criança de até quatro anos, pagos integralmente até a linha de elegibilidade e regressivo à medida que a renda aumentasse; 
e, finalmente, o terceiro, de R$ 44, pagos a todos na condição de extrema pobreza, com ou sem filhos.

Pautado por medidas disruptivas dos programas sociais, decisões ultraconservadoras em relação aos costumes, regressivas quanto ao meio ambiente e até mesmo obscurantistas em matéria de ciência, de educação e de cultura, o governo Bolsonaro não tem uma marca, exceto o dedo no gatilho no quesito segurança pública. Até mesmo a bandeira da ética, que embalou sua campanha e foi incorporada ao governo com a nomeação do ex-juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça, por causa do caso Queiroz, está sendo esgarçada. Do ponto de vista da política econômica, a reforma da Previdência e a anunciada política de privatizações não são uma bandeira popular. No curto prazo, é difícil reverter o cenário de 11,8 milhões de desempregados, segundo os últimos dados oficiais.

Nada garante que as reformas da Previdência e tributária resolvam esse problema no curto prazo, até porque a inflexão feita na política econômica, depois do fracasso da política nacional-desenvolvimentista do governo Dilma, foi a troca de uma breve política social-liberal no governo Temer pela estratégia ultraliberal. O ministro da Fazenda, Paulo Guedes, fez doutorado na famosa Escola de Chicago e acompanhou de perto a reforma econômica do governo Pinochet, como professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, então sob intervenção, a convite de seu diretor, Jorge Seleme, secretário do Tesouro de Pinochet. Para ele, o mercado resolve.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB

 

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Os números que não mentem

O Brasil tem lições a dar em questões ambientais, mas está na defensiva


Números e narrativas não necessariamente coincidem e o Brasil é vítima de uma delas, com relevante repercussão internacional, sobretudo diante do anunciado acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul.  Exemplo clássico de números absolutos que não conseguem “narrar” corretamente uma situação é o da criminalidade. No Atlas da Violência do Ipea, verifica-se que São Paulo, com 4.631 mortos, figura entre os primeiros na lista de homicídios de 2017. Com menos da metade desse número – 2.203 casos – o Rio Grande do Norte está “confortavelmente” lá no meio da lista. Mas, em termos relativos, o Rio Grande do Norte apresentou uma taxa de 62 mortos (arredondando) por 100 mil habitantes em 2017. A mesma taxa para São Paulo era de 10, brutalmente inferior à do Rio Grande do Norte.

Vamos agora a um dos pontos nevrálgicos da discussão que o governo brasileiro terá de enfrentar ao tentar convencer europeus – governos e, especialmente, consumidores de produtos agrícolas brasileiros – de que o País atende aos padrões internacionais para o emprego de agrotóxicos. A narrativa consolidada é a de que o Brasil é o campeão mundial de uso de agrotóxicos, e o número absoluto não mente. Agrotóxicos são commodities, cotadas em dólares, e o valor do consumo brasileiro é o maior do mundo (indicando, portanto, a quantidade de toneladas compradas).

Mas, considerados em relação à área cultivada, ao tamanho da produção e à média de produtividade em função do uso desses agrotóxicos (um cálculo que leva em conta o consumo em dólares de pesticidas em relação à produtividade média por hectare de agricultura), os números da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura, colocam o Brasil em situação incomparavelmente mais confortável do que potências europeias como França, Alemanha, Itália e Reino Unido (para curiosidade, os grandes vilões nessa comparação são Japão e Coreia).

Em outras palavras, é o Brasil que deveria acusar e não ser acusado de abusar do uso de agrotóxicos. Mas o País está acuado no debate internacional e não foi capaz ainda de encontrar uma fórmula para provar que os números que não mentem e contam como são os fatos relevantes deveriam favorecê-lo nas negociações duríssimas, com intrincados interesses cruzados (objetivamente, ambientalistas e protecionistas, por exemplo), que estão apenas começando.

Nessa questão específica, a do uso de agrotóxicos, sucessivos governos brasileiros perderam a batalha de comunicação doméstica também. Projeto de lei tramitando no Congresso para atualizar normas legais e permitir acesso a agrotóxicos mais modernos (menos tóxicos e venenosos, e que podem ser aplicados em dosagem menor) virou “PL do veneno”. O debate já se afastou dos argumentos científicos, suplantados pelo berreiro ideologizado.

De fato, o Brasil tem exemplos a dar para o mundo em energia renovável, biocombustíveis, aumento da produtividade na agropecuária e é uma formidável potência produtora de alimentos sem, para isso, ter aumentada a área cultivada. Mas não é esta sua imagem externa, uma situação apenas em parte criada por grupos organizados vinculados ou não a interesses governamentais estrangeiros e comerciais. Diante das avenidas que podem se abrir com o acordo entre Mercosul e União Europeia, o governo brasileiro está diante da urgente necessidade de desenhar uma estratégia que o tire da atual postura defensiva. Proferir frases contundentes em reuniões internacionais de cúpula, como o G-20, energiza e mobiliza o público cativo interno. Mas é pouco.




William Waack - O Estado de S. Paulo


segunda-feira, 27 de maio de 2019

O futuro do trabalho

Para enfrentar os desafios da revolução digital é preciso aprimorar a educação, com foco no ensino de competências de valor cognitivo e analítico


A pesquisa Tecnologias Digitais, Habilidades Ocupacionais e Emprego Formal no Brasil, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que o mercado de trabalho no País está perigosamente estagnado em relação às transformações da chamada quarta revolução industrial. Tal revolução começa com a difusão das tecnologias de comunicação desenvolvidas nos anos 1970 e se intensifica com os avanços recentes na inteligência artificial, nanotecnologia e biotecnologia. Estes vetores fazem com que sua velocidade e seu alcance sejam significativamente maiores do que no passado. Se antes as ocupações afetadas pela automatização se concentravam na linha de produção e nas camadas gerenciais intermediárias, agora atividades não rotineiras e altamente especializadas têm sido impactadas pela utilização de algoritmos capazes de decodificar imensas bases de dados e reproduzir padrões complexos.

Ocupações que envolvem habilidades físicas, classificação e triagem de objetos, controle de estoque e operação de máquinas tendem a perder rapidamente o seu valor. Por outro lado, os pesquisadores constatam que “habilidades cognitivas, como as que envolvem raciocínio e domínio de linguagens, habilidades interpessoais, como o cuidado e o contato humano, habilidades gerenciais e habilidades ligadas às ciências, tanto as da natureza como as sociais ou aplicadas, terão maior importância no futuro”.

O estudo revela um panorama duplamente preocupante no Brasil. Antes de tudo, a qualificação para tais habilidades é baixa. Além disso, quando há essa qualificação, ela é em boa parte subutilizada.  Dados do IBGE mostram que na última década a introdução de tecnologias da indústria 4.0 no País foi incipiente, sobretudo por causa de deficiências na infraestrutura de comunicação e do custo de importação de máquinas e equipamentos.

O Ipea mostra que no campo da educação, entre 2003 e 2017, houve uma expansão de quase 20% nos anos de estudo dos trabalhadores formais. Contudo, a melhoria na qualidade das ocupações cresceu menos. Ou seja, os jovens que ingressam no mercado de trabalho são bem mais escolarizados do que seus predecessores, mas o País não está criando empregos suficientemente qualificados para absorvê-los.

O Ipea mediu a utilização de 16 tipos de habilidades nos empregos disponíveis no Brasil e constatou uma queda na demanda por habilidades visuais e operacionais; habilidades que envolvem equilíbrio e força corporais; habilidades em saúde e medicina; e também em design e engenharia. Isso ocorreu em razão da contração das indústrias de transformação, extração e construção, e, em menor escala, do setor de saúde. Por outro lado, aumentou ligeiramente a demanda por habilidades cognitivas, gerenciais e de vendas, para abastecer campos como informação e comunicação; cultura e recreação; serviços sociais; agropecuária; administração pública e privada; e atividades científicas e técnicas. Segundo o Ipea, “a utilização de habilidades de maior consonância com o futuro do emprego cresceu de forma tímida no País durante o período 2006-2017”.

O estudo apresenta um cálculo das probabilidades de automação das ocupações brasileiras: para 29% delas a probabilidade é alta e para 26% é de média para alta. Isto é, mais da metade dos empregos do País podem ser, mais cedo ou mais tarde, substituídos por máquinas ou no mínimo ser fortemente alterados por elas.

Para enfrentar os desafios da revolução digital, os pesquisadores apontam algumas diretrizes para as políticas públicas. Em primeiro lugar, o aprimoramento dos sistemas de educação, com foco no ensino de competências e habilidades de valor cognitivo e analítico. Depois, recomenda-se a criação de um amplo sistema de informações ocupacionais. Com políticas integradas de recolocação e treinamento profissional, tais medidas poderão conferir à força de trabalho mais agilidade para se adaptar a um mercado em rápida mutação e talvez se tornar ela mesma uma potência transformadora.

Blog do Augusto Nunes - Veja

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Burocracia maior e mais cara

O número de funcionários públicos na ativa, em todos os níveis de governo, aumentou muito mais do que a população; o salário médio desses servidores cresceu mais do que a remuneração média dos trabalhadores do setor privado; o pessoal empregado pela União, pelos Estados e pelos municípios se apropria de uma fatia maior de tudo o que o País produz. Se essa evolução da burocracia pública em duas décadas – entre 1995 e 2016 –, aferida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), tivesse sido acompanhada da correspondente expansão dos serviços públicos prestados à população, bem como de sua melhoria, certamente as condições de vida no País seriam melhores.
 
No entanto, indicadores sociais bem conhecidos como os referentes ao desempenho do sistema público de ensino, à segurança da população, à qualidade dos serviços de saúde prestados por instituições públicas e à eficiência dos sistemas de transportes públicos – mostram que os ganhos para a sociedade, quando existem, são muito limitados. O contribuinte gasta cada vez mais para manter uma máquina administrativa que não lhe devolve, na mesma proporção, o adicional que dele retira na forma de tributo.
 
O Atlas do Estado Brasileiro, lançado há pouco pelo Ipea, com uma análise da evolução do quadro de pessoal das três esferas de governo, mostra que, entre 1995 e 2016, o número de funcionários públicos na ativa passou de 6,264 milhões em 1995 para 11,492 milhões em 2016.

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sábado, 1 de dezembro de 2018

Cenários e receita para o país crescer

Estudo do Ipea mostra que o Brasil tem potencial para crescer o PIB per capita em 50% em 12 anos. Mas será preciso aprovar muitas reformas

O país cresceu no terceiro trimestre e retomou o ponto em que estava em 2012. Esse é o tamanho do atraso provocado pelos erros de política econômica no governo Dilma. Ainda há um caminho a fazer para chegar ao ponto em que a economia estava quando despencou. Os serviços puxaram, o investimento cresceu, mas nada foi suficiente para imprimir um ritmo maior. Desde que parou de encolher, o PIB se expande em ritmo moroso. Os números do terceiro trimestre vieram mais fracos do que o esperado pelo mercado. O crescimento acelerou na comparação com o segundo trimestre, de 0,2% para 0,8%, mas o que houve foi uma recuperação dos efeitos da greve do setor de transportes, que paralisou o país no mês de maio. Quando a comparação é feita com o mesmo trimestre de 2017, a alta foi de apenas 1,3%. No acumulado em 12 meses, subiu 1,4%. No começo do ano o país achou que cresceria 3%. Não vai dar.
 
O Ipea divulgou esta semana, no meu programa na Globonews, os cenários preparados para o país nos próximos 12 anos, até 2030. Bom para quem quer ver o Brasil avançar. “Cenários de longo prazo podem ser uma ferramenta importante para avaliação de custos, benefícios e riscos de alternativas”, alertam os economistas do Ipea.  No cenário “de referência”, o país cresceria em torno de 2,2% ao ano, o que daria 30% ao longo do período. Mesmo para esse ritmo moderado, será preciso fazer a reforma da Previdência. Sem ela, alerta José Ronaldo de Souza, diretor de Macroeconomia do Instituto, as receitas serão engolidas pelos gastos com pensões e aposentadorias. No cenário “década perdida”, o país entra em desequilíbrio fiscal, e o final será o default da dívida interna, ou seja, o Tesouro não conseguirá honrar sua dívida, que é a espinha dorsal da poupança do país. 

Neste filme de terror, que o país viu no Plano Collor, todo mundo perde.  O cenário “transformador” é o mais interessante. Aumentar o crescimento é o desejável. O país cresceria 3,9% já em 2020 e, dois anos depois, 4,8%. Ao longo de 12 anos a taxa acumulada chegaria a 60%. Para isso será preciso fazer as reformas que reequilibrem as contas, mas também uma série de mudanças que aumentem a produtividade da economia. Será preciso ter um sistema tributário mais eficiente e leve, abrir a economia, investir em qualificação de pessoal, ter uma regulação mais lógica, um custo menor de capital, ambiente de negócios mais favorável. São reformas macro e micro para mudar a economia.  — É uma projeção e não uma previsão. O interessante é que temos o potencial, é possível. O país pode aumentar em 50% o PIB per capita — diz José Ronaldo.
— O Brasil só tem três caminhos: reformas, reformas e reformas. Não há um quarto caminho. Temos que resolver gargalos porque sem isso a gente não consegue crescer, gerar emprego, gerar renda para a população que demanda uma retomada depois de anos de recessão — diz a economista Ana Carla Abrão, da Oliver Wyman.

Ele diz que é preciso acrescentar na lista das tarefas a mudança do Estado, que é 40% do PIB, uma máquina inchada, que gasta muito e não presta bons serviços. Ela sugere mudar carreiras e melhorar a qualidade dos serviços públicos. Para essa e outras mudanças, será preciso desagradar os grupos de interesse:  — O Brasil é hoje um país dominado pelas corporações — disse Ana Carla.

Se não optar por reformas vigorosas, o país de qualquer maneira terá que mudar a Previdência, do contrário o teto de gastos não se sustenta. O pior cenário, de não reformar nada, é flertar com o abismo do calote. Os dois economistas se disseram até otimistas, dado que a situação chegou a tal ponto que ou o país terá o pior dos mundos ou enfrentará a lista das grandes tarefas. Uma delas é abrir a economia.  — Essa é uma agenda que ficou abandonada nas últimas décadas e se formos falar de eficiência temos que ter abertura. O país continua muito fechado. Quando se soma exportação e importação o Brasil está abaixo dos países pares — diz Ana Carla Abrão.
— A economia brasileira ainda é voltada até hoje para substituição de importação, escolha feita há várias décadas. Os países só avançam com mais competitividade — afirma José Ronaldo.

A atual equipe econômica tirou o país da recessão, mas o PIB não engrena. A futura equipe diz que fará reformas e a abertura da economia. A receita está certa. Aplicá-la é mais difícil do que pensam alguns dos que assumirão o comando em janeiro.

Blog da Miriam Leitão - O Globo