Tanques e togas tentam cercar a democracia brasileira
Nas democracias, chefes militares não fazem considerações sobre política e eleição
Tanques e togas tentam cercar a democracia brasileira. Há um esforço deliberado para tratar o eleitor como um débil mental. Generais, juízes e procuradores se arvoram em consciência crítica da brasileirada incapaz. Aos 57 anos, incomoda-me o assédio que ofendia meu senso de autonomia adolescente. Desculpem-me por um tantinho de memória privada a unir setembros. Como naquele filme, sei que a história de uma pessoa “vale menos do que um punhado de feijão neste mundo louco”, mas é a minha história — ou a infância afetiva de um liberal. Entre togas e tanques.Eu tinha 15 anos quando o DOPS (Departamento da Ordem Política e Social) encostou as mãos sujas em mim. Passei por um interrogatório informal na escola. A denúncia partira de um professor infiltrado. Eu havia vencido um concurso estadual de redação cujo tema era “O Dia da Árvore”. Associei a agressão à natureza à incúria do governo, ao egoísmo humano e ao lucro irresponsável. E o fiz com a ambição condoreira que têm os candidatos a mau poeta na periferia do mundo...
Bastou para que os arautos de então de uma “escola sem partido dos adversários” se assanhassem. De onde eu havia tirado aquelas ideias? Vinham de algum professor? De qual? O que eu entendia por “lucro”? E por “egoísmo”?
Engrolei irrelevâncias. Era só um garoto inocente, óculos fundo-de-garrafa, barba nascente, voz ainda desengonçada, meio gordo, ruim de bola, mas bom de amigos — afinal, eu tinha cigarros e dividia com eles os arcanos do Movimento Retilíneo Uniformemente Variado (MRUV) e da Oração Subordinada Adverbial Temporal Reduzida de Particípio. Terminado o interrogatório, concluí em silêncio que a ditadura tinha de acabar. No tempo da memória, como no do cinema, que furta detalhes em benefício da síntese, fui ser condoreiro da periferia do trotskismo. Até os 21 anos. Nas ditaduras, não há lugar para míopes inocentes.
Também não dizem quem pode e quem não pode ser eleito. Ciro Gomes tem razão ao afirmar, aludindo a Brecht, que o general buscava calar as “vozes das cadelas no cio” do fascismo caseiro. E, destaque-se em nome da precisão, Villas Boas descartou um golpe. Mas restou a sombra da tutela. Eu não me bandeei para o liberalismo como um trânsfuga. Passei por um processo de conversão silenciosa. Quero a inocência dos que se sentem representados pelo império da lei, não pelo triunfo da vontade dos senhores da guerra ou de grupos que se organizam para assumir o lugar da consciência do eleitor.
Há duas semanas, denunciei nesta coluna o movimento empreendido pelo Ministério Público — na verdade, pelo “Partido da Polícia — para interferir nas eleições. Dados forma, calendário e argumentação contida nas petições, as investidas contra Geraldo Alckmin, Fernando Haddad e Beto Richa são brocados de um Estado fascista. Notem que não assevero inocências e culpas. Cobro é o devido processo legal. Ações de improbidade, prisões temporárias e preventivas e vazamentos de inquéritos e de delações passaram a ser empregados com o nítido propósito de mudar o resultado das urnas. A corregedoria do Conselho Nacional do Ministério Público vai apurar a conduta de alguns de seus membros, que resolveram confundir boca de urna com combate à corrupção. No TSE, Roberto Barroso inventou o “trânsito em julgado” do que ainda está “sub judice”.
Um espanto. A exemplo do general, todos querem proteger o povo brasileiro. O diabo é que se colocam no papel de quem pode até rasgar a lei para poupá-lo de sua própria vontade. Ainda sei o que é MRUV e reconheço a Adverbial Temporal Reduzida de Particípio quando diante de uma. O Dia da Árvore se comemora na sexta que vem, unindo setembros. Dois dias depois, começa a primavera. Odeio invernos. Desde os 15 anos. Este também passará.
Folha de S. Paulo
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