O real perigo nas negociações com o Congresso é o da construção de um sistema que leve a uma crise
O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Alceu
Moreira (MDB-RS), deu um presente a Jair Bolsonaro. Quando o repórter
Raphael Di Cunto perguntou-lhe como funcionaria a articulação do governo
com as “bancadas temáticas” do Congresso, ele respondeu:“Quem disser que sabe qual é o resultado que esse novo modelo produzirá, de duas uma: ou é adivinho ou está mentindo”.
Moreira apoia o novo governo, lidera uma frente que reúne mais de 200
parlamentares e sabe que a eficácia das “bancadas temáticas” é uma
fantasia. Elas agrupam deputados e senadores que têm pontos de vista
semelhantes em questões genéricas, mas separam-se em temas pontuais. O
próprio Moreira fez questão de lembrar que sua frente “só discute
produção de alimento, não é nem agro”. A ideia da negociação com as “bancadas temáticas” é útil numa campanha
eleitoral e funciona durante a fase de transição. No dia 2 de janeiro,
Jair Bolsonaro deverá abrir a quitanda e em fevereiro instala-se a nova
legislatura. Só então começará o jogo, com a remessa ao Congresso das
diversas emendas constitucionais prometidas pelo candidato. Elas
precisam de três quintos dos votos da Câmara e do Senado.
Cada parlamentar tem sua legítima agenda de defesa dos interesses de sua
base eleitoral. O toma lá dá cá faz parte da vida política, desde que
se esclareça o que se toma e o que se dá. Por exemplo: um deputado de
uma bancada temática vai ao governo com um pedido para que se autorize o
funcionamento de uma faculdade de Medicina na sua região. O pleito pode
ser justo e o projeto, impecável. Pode também ser uma girafa. Como
ensinava o então ministro Paulo Renato Sousa, “se você entregar o poder
de decisão para a abertura de faculdades privadas às freiras carmelitas
descalças, na segunda reunião elas virão com bolsas Vuitton”.
O toma lá dá cá com as bancadas que se dizem partidárias chegou a níveis
obscenos nas últimas legislaturas, mas não existe governo que possa
conviver com o Congresso sem que haja um sistema de trocas com os
parlamentares. Bolsonaro conseguiu formar seu Ministério com grande
liberdade, e não se pode dizer que este ou aquele ministro esteja ali
por delegação de partido. Contudo, formar equipe é atribuição do
presidente, mas votar projetos e, sobretudo, emendas constitucionais
depende do consentimento do Congresso. As negociações com a Câmara e o Senado poderiam ser saneadas se a
liderança do governo tivesse disposição para denunciar propostas
indecentes, começando pelos eternos jabutis que são enfiados nas medidas
provisórias. Muitos deles nascem naquilo que hoje se chama de bancadas
temáticas.
Bolsonaro armou um governo bifronte, com uma face política e outra
militar, representada por generais da reserva. Só a vida real mostrará
se tramitarão negociações capazes de exasperar a banda militar, ou vetos
capazes de paralisar a banda política. A fantasia das bancadas temáticas é popular, mas só os adivinhos podem
saber como funcionará o sistema. (Os mentirosos, na formulação de Alceu
Moreira, sabem que estão mentindo.)
Para dar certo, o futuro governo precisa aprovar as reformas que
promete. Talvez não aprove todas, mas isso não seria um pecado.
Desgraça, da boa, seria um cenário no qual um governo legítimo e popular
promete reformas e, um ano depois da eleição, se queixa de ter sido
bloqueado pelo Congresso.Nos últimos 50 anos, sempre que isso aconteceu, o governo sabia que estava criando a crise.
Elio Gaspari, jornalista - O Globo
Elio Gaspari, jornalista - O Globo
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