Mas afinal, o pacote anticrime e anticorrupção apresentado pelo ministro Sergio Moro dá licença para matar, como anda-se dizendo por aí? Para o jurista Walter Maierovitch, de certa forma, sim. E há outras pedras no caminho do estado democrático de direito que emanam das propostas, como as execuções provisórias.
O ponto positivo fica por conta de uma legislação mais específica contra o crime organizado e a corrupção. Já a implantação da barganha como forma de encaminhar os processos criminais é uma boa ideia, porém poderia ser melhor formulada. Mas, para além do pacote, o que dizer sobre o embate que vai se desenhando entre STF e Senado? Onde Moro entra na história de Flávio Bolsonaro? [Moro entra, no mínimo por conivência por omissão, ao não mandar investigar os vazamentos do Coaf no que concerne as 'movimentações atípicas' do Queiroz e aos depósitos efetuados por Flávio - se trata de matéria protegida por sigilo e quem vazou tem que ser responsabilizado na esfera administrativa, penal e cível.] Dá para ser um titular da pasta da Justiça apenas técnico e não político, conforme sugerido pelo próprio ministro?
Maierovitch é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Estudioso do processo mafioso, chegou a trabalhar com o célebre juiz italiano Giovanni Falcone, antes que este fosse dinamitado, em 92. Fundou e preside o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que leva o nome de Giovanni Falcone. Foi secretário nacional antidrogas da Presidência da República (1999-2000).
Que achou do pacote anticrime e anticorrupção apresentado pelo Ministério da Justiça?
O pacote vem cheio de medidas boas mas com algumas muito preocupantes. Tem algumas coisas de que não gostei. Como o absurdo da prisão do júri popular, por exemplo.
Nada contra, até gosto da participação popular. No Brasil, todos os crimes intencionais contra a vida, como homicídio, indução ao suicídio, aborto, infanticídio, passam pelo tribunal do júri popular, onde 7 jurados decidem soberanamente.
Minha crítica ao júri brasileiro é por se tratar de um modelo em que os votos acontecem na base do sim ou não, sem dizer o por que. É um absurdo alguém ser condenado na base do sim ou não.
É um tribunal anacrônico, aqui. Que tem uma jurisprudência que mostra que ele reage emocionalmente e flutua de região para região. Nos casos de crimes passionais, por exemplo, o que prevalece é a tese de legítima defesa da honra, e o que acaba acontecendo na grande maioria dos casos, é que o sujeito é absolvido. São marcantes as absolvições pelo país afora. Isso nada mais é do que o sujeito sendo traído, buscando justiça pelas próprias mãos e sendo absolvido.
A absolvição predomina nos outros casos ou apenas em crimes passionais?
Atualmente, atendendo ao clamor da sociedade, o tribunal de júri tem condenado até a própria sombra, o que também é alarmante. Existe uma ética ambígua, entende?
E o que o pacote de Moro modifica?
Há um atraso, um retrocesso perigosíssimo, que envolve a questão de liberdade. É que pela proposta, o réu que responde em liberdade ao processo entra solto e sai preso caso seja condenado pelo júri popular.
E o que há de errado nisso?
É uma forma de execução provisória. Até agora se o réu estivesse em liberdade e fosse condenado, poderia apelar para instância superior em liberdade. Então esta proposta dá mais poder para o júri, o que é uma coisa temerária.
Agora a moda é prisão, prisão, prisão. [o lugar de criminoso condenado é a prisão; o júri popular condenar e o réu ganhar o direito de recorrer em liberdade é uma afronta ao principio da soberania do júri.]
E o projeto de execução provisória de sentença condenatória confirmada em segunda instância, como por exemplo no caso do Lula?
Todo mundo sabe que a justiça é lenta, morosa, eu diria que em ritmo de lesma reumática. Os processos demoram e a credibilidade da justiça fica afetada. Um processo pode facilmente levar 10, 20 anos, para ser concluído. Mas ao invés de corrigir a duração média de um processo, se inventa a execução provisória.
Existe uma regra constitucional pétrea que é o princípio de presunção de inocência. A outra tese, é de que não se deve aplicar esse princípio quando a matéria já está decidida e não pode ser alterada por tribunais superiores. Então de um lado temos a presunção, e de outro questões de fato já julgadas que não serão reanalisadas por um tribunal superior ou mesmo pelo STF.
O problema é que isso não é verdade. Um tribunal superior consegue habeas corpus de ofício para execução penal, evitando um constrangimento ilegal. Existem infinidades de recursos dentro destes tribunais. Portanto a questão central é o tempo de duração de um processo no Brasil. É muito lento e é um problema, porque os crimes podem ser prescritos. É exatamente a morosidade que leva à impunidade, e é isso que Moro deveria combater. [uma condenação que resiste a mais de 50 pedidos de habeas corpus, que é confirmada por um TRF, por uma turma do STJ, pelo Plenário virtual e também o real do STF, confirmada por ministros do Supremo quando negam habeas corpus,é obviamente resultado de uma sentença correta.]
Como enfrentar esse problema? Com execuções provisórias? Não.
São muitos graus e instâncias aqui no país. A solução que eu esperava de Moro era a diminuição do tempo de duração do processo.
(...)
Falemos das medidas positivas.
Há medidas positivas evidentemente. Com relação à criminalidade organizada o pacote adota um modelo de legislação que nomina a máfia. Moro fala textualmente sobre o PCC e o Comando Vermelho, o que é algo positivo.
Gosto também do dispositivo que diz que nos crimes de corrupção o regime inicial de cumprimento de pena deve ser fechado. Nossa legislação com relação a
isso é antiga, as penas são baixas neste tipo de delito, e corrupção é um crime gravíssimo, afeta a população diretamente. A pessoa não pode ser co
ndenada e pegar um regime semi aberto ou aberto.
Onde as milícias se encaixam nesse quebra-cabeça?
Aqui você encaixa o conceito de pré-máfia, que vem a ser uma organização que tem território, projeção social, hierarquia interna, e regras próprias que impõem a lei do silêncio, difundindo o medo. Podem até ser interfronteiriças. Mas não são transnacionais. No Brasil temos pré-máfias, não temos máfia ainda.
As milícias do Rio nunca tiveram influência eleitoral? Salta aos olhos, mas não se apura. O PCC já teve dois candidatos. Hoje apoia vários políticos.
Qual o papel do ministro em um caso como o do Flávio Bolsonaro?
Vamos primeiro analisar as respostas das autoridades, que disseram que o filho do presidente não faz parte do governo. Isso não casa com a realidade. Os Bolsonaro ainda não descobriram que governo é uma coisa, e família é outra.
E a denúncia partiu do Coaf. O Coaf é uma agência de inteligência financeira importantíssima, que está ligada ao Ministério da Justiça. Um órgão que detecta, fiscaliza e informa as autoridades competentes. Como ministro, Moro deve estar atento para que o Coaf, assim como a PF, possam agir com independência.
(...)
Como enxerga a ideia de cassação de ministros do Supremo? Não é preocupante?
Hoje um ministro é muito blindado.
O impeachment é cabível, vários pedidos foram feitos, mas quando Renan Calheiros presidiu o Senado, arquivava. Ele era o primeiro a receber e liminarmente, sem plenário, arquivava. Circulou a notícia de que Renan era o candidato de Toffoli e Gilmar. Não sei se isso é verdade, mas que Renan sempre usou a gaveta para ficar de bem com o Judiciário, sempre usou.
E o Conselho Nacional de Justiça?
Existe uma decisão do próprio STF, de que o Conselho Nacional de Justiça deveria funcionar como um órgão de controle externo da magistratura. Mas ele se tornou um órgão de controle corporativo, visto que os fiscais são os próprios juízes.
Você vê o futuro com bons olhos?
Não. Vejo um Supremo precisando de alterações. Tudo vai ao Supremo hoje, até questões não constitucionais. Há intromissões, o STF precisa estabelecer suas próprias regras. Eu por exemplo sou a favor de um mandato por tempo certo, sem direito a recondução.
E Sergio Moro como ministro?
Moro é um homem correto, foi um bom juiz, no sentido de que é preparado juridicamente para fazer a análise de provas. É uma pessoa sensível, que tem posição humanista. Considerado pela magistratura inteira como sendo um bom juiz.
Ele deixa a carreira, abre mão de 26 anos de magistratura, se exonera e vai para um cargo político. Isso é um problema pessoal dele. Você pode dizer, puxa, ele largou a carreira, não vai ter aposentadoria… Eu achava que esperar vaga no Supremo tinha mais a ver com o ambiente dele. Bem, agora nesta função, ele tem experiência na área de crime organizado para se sair um bom ministro, mas não tem vocação para se meter em questões de política partidária.
Por fim, voltando ao pacote. Há quem diga que ele dá licença para matar.
O direito de punir é do Estado e indelegável. O que o Estado permite é o direito de defesa. Assim mesmo diz que só não haverá crime quando a agressão é injusta, iminente e, na reação defensiva, se usada com moderação dos meios e instrumentos necessários.
Essa fórmula é adotada nos códigos penais ocidentais. E sempre se mostrou suficiente para caracterizar a legítima defesa e deixar claro que permite a defesa e não o ataque.
(...)
Blog Inconsciente Coletivo - O Estado de S. Paulo
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