Ministros são mais realistas que o rei na agenda conservadora
Durante a recente campanha eleitoral, o consultor de um grande fundo de
investimento britânico indagou aos convivas, num almoço em São Paulo, o
que achavam da anunciada presença de militares no provável governo
Bolsonaro. A resposta, quase em uníssono, foi rápida: "Será boa para o
país". Surpreso, o executivo questionou: "Por quê?". Porque ninguém
sabia quem é realmente Bolsonaro e, portanto, como ele governaria - a
dúvida remanesce depois de dois meses de mandato, apesar do aparecimento
de algumas pistas. Tudo indica, prosseguiu o interlocutor do consultor,
que os militares serão o "fator de estabilidade" da nova gestão.
A preocupação e o espanto do consultor eram justificáveis. Basta
conhecer um pouco da história recente do Brasil para entender que a
longa ditadura militar (1964-1985) deixou marcas profundas. Não há nada
que possa relativizar os efeitos nocivos da supressão das liberdades
civis, nem mesmo o progresso econômico, como sugerem alguns em defesa do
regime de 64. [excesso das práticas erroneamente consideradas liberdades civis, só prejudicam o país que é vítima do abuso.
Até mesmo a democracia, quando excessiva - caso do Brasil atualmente - é prejudicial - ainda que de forma indireta o deputado Rodrigo Mais, presidente da Câmara dos Deputados, reconheceu que atrapalha o andamento das reformas.]
O golpe [contragolpe] tinha dois objetivos claros: conter o getulismo, que desde 1930
era a maior força política do país, e afastar, no auge da Guerra Fria, a
suposta ameaça comunista. O ambiente econômico, com inflação fora do
controle (em torno de 100% ao ano), facilitou a ação militar, que, por
pouco, não sucedera dez anos antes. Nos dois casos, a ousadia
amparava-se em interesses de grupos políticos antagonistas ao getulismo.
Pausa para o "House of Cards" tupiniquim, onde a vida imita a arte e faz
do original inglês e de sua versão americana uma espécie de "Sessão da
Tarde": durante o predomínio de Getúlio e seus discípulos (de 1930 a
1964), apenas um presidente - Jânio Quadros, eleito em 1961 - não era
getulista. Eurico Gaspar Dutra foi eleito em 1946 com o apoio de
Getúlio, deposto no ano anterior, e dos dois partidos (PSD e UDN) da
órbita do ditador. Dutra ajudou Getúlio a instaurar o Estado Novo, a
ditadura que nos governou de 1937 a 1945, e foi seu ministro da Guerra
até a deposição. Depois de oito anos de autoritarismo, o povo, dizia-se,
ansiava por democracia, mas elegeu um prócer do regime que a suprimiu
por quase uma década. Na eleição seguinte, Getúlio voltou ao poder
eleito pelo voto popular...
Com o fim da ditadura, em 1985, a instituição Forças Armadas estava,
obviamente, com a imagem destroçada. A participação num movimento de
interrupção do processo constitucional é indefensável, afinal, a missão
constitucional das três corporações é defender a soberania da nação
contra a ameaça estrangeira. O uso da força internamente, admitida em
casos como o da intervenção no Rio, é uma exceção.
A tensão, porém, nunca desapareceu, embora se possa afirmar que, durante
os governos civis que sucederam o regime ditatorial, não tenha havido
risco real de interrupção do rito constitucional. Houve ruídos que
alguns chamaram de "crise institucional". Afeito ao hábito de, a partir
de escassa informação, intuir sobre o desconhecido, o brasileiro
facilita a disseminação de lendas urbanas que, de tão repetidas, se
tornam "verdades" indiscutíveis. Há a ideia, por exemplo, de que os
militares estão de prontidão para intervir no processo democrático em
momentos de desordem, corrupção etc.
Desde a redemocratização, a imagem do Exército teria se recuperado.
Pesquisa do instituto MK, de Belo Horizonte, contratado em 2015 pela
corporação para fazer a aferição, mostra que 80,1% da população
considera o Exército sério e confiável. Isso tornaria a instituição a de
maior credibilidade do país. Não se deve deduzir, todavia, que essa
opinião reflita suposto desprezo dos brasileiros pela democracia. A presença de militares nos altos escalões de Brasília - são mais de 30 -
não deve ser confundida com a "militarização" do governo. Não se trata
de envolvimento institucional. A maioria está na reserva e alguns são
reformados (não podem mais retornar ao serviço ativo). Estão no poder
graças à democracia. O risco, se existe algum, vem da caserna, onde
militares da ativa que se sintam preteridos - por não estarem no governo
- possam produzir barulho. [os militares no governo possuem grande prestígio junto aos militares da ativa, tanto os da reserva (que podem voltar ao serviço ativo) quanto os reformados (definitivamente fora da ativa).
Só que os que integram o governo comandam mesas e os da ativa comandam tropas.
O contragolpe de 64 teve apoio de praticamente 100% das FF AA, mas, só começou quando um general no comando de tropas (Olympio Mourão Filho) decidiu deslocar suas tropas rumo ao Rio.]
Até o momento, o papel do vice-presidente Hamilton Mourão e dos generais
e almirantes que ocupam cargos no primeiro escalão tem sido o de
moderar arroubos de ministros, de origem civil, que parecem desconhecer
nossa história e, o pior, onde estamos como sociedade. No Itamaraty, por
exemplo, o chanceler Ernesto Araújo causou espanto quando, numa nota
oficial, acusou o governo venezuelano de chefiar o crime organizado e
estar envolvido com tráfico de drogas e de pessoas.
A diplomacia não comporta linguagem beligerante como a do chanceler. O
Brasil tem 11 vizinhos, caso único no planeta. Desde a Guerra do
Paraguai, de 1864 a 1870, quando, aliado à Argentina e ao Uruguai,
massacrou o Paraguai, não se envolve em conflitos com países da região.
Apesar de ser o "gigante do Atlântico-Sul", detentor de mais da metade
do território do continente sul-americano, da população e do Produto
Interno Bruto, ainda é uma economia de renda média, com cerca de 50
milhões de pessoas vivendo em condições de miséria e outras dezenas de
milhões com enorme dificuldade para ascender social e economicamente.
Como costumam dizer diplomatas experientes, o país não possui
"excedentes de poder" para ajudar os vizinhos a se desenvolver, logo,
não tem também - nem deveria ter - poder para interferir em questões
internas dessas nações e de quaisquer outras. A liderança brasileira é
natural, mas não pode haver excesso de gesticulação, como sempre adverte
o embaixador Marcos Azambuja. Não se deve criar expectativa que, todos
sabemos, não será atendida, nem ter a ambição de influir em regimes
alheios.
Mourão, que, por ser vice-presidente, é indemissível, tornou-se
porta-voz informal dos militares do núcleo do poder em Brasília. Tem
sido a voz da moderação, inclusive, na política externa. Porque, sem
saber o que pensa exatamente o presidente sobre a maioria dos temas,
alguns ministros arvoram-se em defender, em várias áreas, ideias
anacrônicas e perigosas para a jovem democracia brasileira.
Cristiano Romero - Valor Econômico
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