As dificuldades de articulação política do Planalto vão testar a estratégia dos militares
Levava um tempão antigamente até que conversas confidenciais envolvendo
um presidente e seus principais ministros aparecessem transcritas em
algum arquivo. Agora é quase em “real time”. Como sempre, são
elucidativas.
A audionovela envolvendo o presidente Jair Bolsonaro e o exonerado
ministro da Secretaria-Geral Gustavo Bebianno – um de seus colaboradores
mais próximos – confirma um vencedor ainda em clima de campanha
eleitoral, totalmente preso ao círculo mais próximo familiar e
subordinando temas centrais às rusgas pessoais. Ou seja, Bolsonaro está
muito distante ainda de “institucionalizar” seu papel, talvez nunca o
consiga.
Ao dar entrevistas comentando a audionovela que ajudou a divulgar (o
episódio confirma que não existe lealdade em política), Bebianno
forneceu uma importante radiografia do papel dos militares em todas as
fases do processo que levou Bolsonaro ao Palácio. Sabe-se publicamente
agora que os militares forneceram os planos estratégicos de governo. E
os quadros para executá-los. Sem eles, o presidente provavelmente não
tem condições de sobreviver no cargo, tal como a situação se coloca
agora.
Cabe recordar que a entrada de algumas principais cabeças entre os
militares (então fardados ou não) na campanha de Bolsonaro ocorreu de
forma relativamente tardia. Deu-se em grande parte por uma leitura
angustiada com a possibilidade de o País resvalar para uma situação
incontrolável. Esse temor se agravou entre lideranças militares durante a
semianarquia da greve dos caminhoneiros. E foi exacerbado pela bagunça
institucional no domingo em que Lula saía e ficava na cadeia de hora em
hora por causa de uma canetada de um desembargador.
Os líderes militares acolheram Bolsonaro também como instrumento eficaz
na “guerra cultural” – os militares usavam a expressão “frear a
esquerdização do País” – e como personagem político de apelo à
estabilidade e à ordem. Não cabe na cabeça deles um Bolsonaro como
agente de caos político, seja pela influência do clã familiar, seja pela
dificuldade em impor um sentido e disciplina ao próprio partido pelo
qual se elegeu, seja por estapafúrdia ideologia – e às vésperas de seu
grande desafio do momento, a reforma da Previdência. Essa mesma reforma, com o projeto apresentado ontem, vai testar, talvez
precocemente (pela confusão política inicial), a “grande estratégia” de
juntar a uma onda disruptiva e abrangente (a que levou Bolsonaro à
Presidência) os méritos e o preparo de um grupo treinado para
administrar e coordenar – coisa que os oficiais-generais aprenderam nas
escolas de Estado-Maior. Esse lado eles, os militares, entendem bem. O
que os deixa inseguros, pois não têm treino nisso nem experiência
direta, é a política.
Bolsonaro pretende agora ser o articulador político dele mesmo. O teste é
severo, e muito mais abrangente do que conseguir os 308 votos mínimos
necessários na Câmara dos Deputados para aprovar a reforma da
Previdência (sem a qual a economia não destrava) e fazer andar o pacote
anticrime de Moro (importante medida de sucesso do governo). Requer um
jogo de cintura que as hostes esbravejantes em redes sociais confundem
com tibieza. E a inevitável colaboração de profissionais (como a do
ex-ministro de Dilma agora na função de líder do governo no Senado) que a
mesma turma da lacração carimba de “política desprezível”.
Bebianno diz que chamava Bolsonaro sempre de “capitão”. É um título de
forte apelo positivo. O capitão do avião, do navio, do time. A figura da
autoridade, comando e respeito. Na acepção puramente militar do termo,
capitão ainda é um oficial júnior que, por mais brilhante que seja, não
tem o sentido de direção e a visão abrangentes dos oficiais superiores.
William Waack - O Estado de S. Paulo
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