Bolsonaro e Guedes apenas começam o confronto com os interesses de cada grupo
A agenda liberal de Paulo Guedes chegou ao leitinho e, com ela, o
vocabulário sobre a discussão tornou-se preciso, realista e fiel aos
fatos. “O desmame não pode ser radical”, disse a ministra da Agricultura
ao se referir a pretendidos cortes nos subsídios do crédito rural,
anunciado pelo colega da Economia. Nem o setor dos produtores de leite pode prescindir de tarifas de
importação (diretas ou na forma de antidumping) para enfrentar
competidores externos – Bolsonaro atendeu os produtores e disse no
Twitter que o leitinho deles, em sentido metafórico, está garantido. Na
mesma linha geral surge a tomada de decisão sobre o fim da isenção dada
às contribuições previdenciárias dos produtores rurais que exportam.
A proposta de agenda liberal de Guedes supõe o fim dessa renúncia (cerca
de R$ 7 bilhões por ano nos cofres do INSS), tanto por razões fiscais
como pelo propósito conceitual mais amplo. A Agricultura diz que não faz
sentido tirar refresco de um setor – o de exportações agrícolas – que
ajuda substancialmente a gerar os superávits comerciais que a economia
também precisa. Essa é uma típica discussão que no Brasil (mas não só) anda em círculos
há décadas, subordinada sempre ao curtíssimo prazo e às turbulências dos
momentos de crise econômica e política. Que obrigaram sucessivos
governos a esticar contas (aumentando impostos, por exemplo, ou deixando
de investir) para atender a todos que demandam seu leitinho.
Seja pela típica estatolatria reinante no Brasil, seja pelo fato de que a
mentalidade predominante no País não é liberal (nem importa classe
social ou ramo de atividade econômica), seja pelo comodismo de deixar
decisões difíceis para depois, o leitinho de cada um expressa a
realidade de uma sociedade anestesiada pelo subsídio. O corporativismo é
apenas um sintoma de um estado geral no qual se assume que o governo,
no final das contas, acabará fazendo alguma coisa em meu benefício.
Este é o padrão cultural mais amplo que Bolsonaro e Guedes dizem estar
dispostos a enfrentar. Por vezes ambos transmitem a sensação de confusão
entre causa e efeitos. Queixam-se (com razão, aliás) que o consagrado
método do “toma lá, dá cá” no Legislativo, do qual dependem para
qualquer reforma fiscal significativa, embaralha as cartas na hora de
proceder a reformas estruturantes quando, no fundo, esse jogo político
não é outra coisa senão (pelo menos naquilo que é interesse setorial
lícito e legítimo) a defesa do leitinho de cada grupo.
Bolsonaro e Guedes chegaram ao poder impulsionados por uma enorme onda
de transformação política e aparentemente empolgados com a frase tão
repetida segundo a qual é imperioso acabar com a mania, que no nosso
caso dura séculos, de mamar nas tetas estatais. São certeiros no
diagnóstico. “Todo mundo vem pedir subsídios, dinheiro para isso,
dinheiro para aquilo”, desabafou Guedes na quarta-feira, falando em
evento para servidores públicos. “Quebraram o Brasil”, sentenciou.
Pode ser (suposição meramente teórica) que Bolsonaro e Guedes
compartilhem cada vírgula de uma idêntica visão de mundo, e cada mínimo
impulso sobre como agir na política. No caso do leite em pó cederam ao
“toma lá, dá cá” por sólidos motivos políticos. Querem o apoio de um
setor? Serão obrigados a atender a pelo menos parte de suas demandas,
num delicado jogo de equilíbrio, articulação e compensações, enquanto o
ambiente político vai se tornando mais hostil à medida que o leitinho
some da mesa. Vamos ver como aguentam o berreiro de uma manada de bezerros desmamados.
William Waack - O Estado de S. Paulo
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