Temer pode ser comparado, segundo Gustavo Franco, a Bolingbroke, o usurpador em ‘Ricardo II’, de Shakespeare
O economista Gustavo Franco, especialista em Shakespeare, considera que
os personagens que compõem o universo da dramaturgia do chamando “bardo
de Avon” refletem a natureza humana com incrível atualidade. Gosta, por
isso, de fazer paralelos entre nossos políticos e esses personagens, e,
em parceria com o advogado Jose Roberto Castro Neves, outro
“bardólatro” fervoroso, fez uma apresentação para os candidatos do
Partido Novo, do qual é um dos fundadores, inserindo os personagens de
Shakespeare na nossa época.
Falstaff, personagem de várias peças de Shakespeare, que considera um
dos mais populares e interessantes personagens do teatro elisabetano,
foi descrito como “Simpático cachaceiro, oportunista pândego e covarde
espirituoso, Falstaff é o tipo mais macunaímico de toda a galeria
shakespeariana; nenhum personagem foi mais carismático, cometeu gafes e
pronunciou tantos ditos espirituosos próprios de um humor de taverna,
que se tornou sua marca”.
Franco destaca como “clássicas” suas observações sobre a desnecessidade
de lutar em nome da honra, e sob qualquer pretexto, bem como as
justificativas à meia-boca para crimes flagrantes, assaltos à mão armada
inclusive. Falstaff tornou-se um personagem gigantesco, destaca Gustavo
Franco, contrariamente a todos os prognósticos. “Sempre retratado como gordo e barbudo, de um humor bonachão e etílico,
não é preciso especular um segundo sobre onde Falstaff reencarnou no
Brasil contemporâneo”, ironiza Franco. A própria Elisabeth I mandou o
bardo misturar Falstaff com as comadres de Windsor, para idiotizá-lo
através de uma paixão.
“Esperta Elisabeth”, exclama Franco, para explicar: “Incomodada com esta
entidade meio carnavalesca avacalhando a rotina dos reis com quem
conviveu, ela percebeu que Falstaff é o verdadeiro herói de “Henrique
IV” aos olhos do público, pois é quem mais se parece com ele, e que se
as coisas fossem se decidir por eleições gerais — um homem (ou mulher),
um voto — Falstaff ganharia todas”. Lula, como disse a falecida Barbara Heliodora, talvez a mais notável
especialista em Shakespeare no Brasil, “é um tipo de personalidade que
Shakespeare não concebia chegando ao poder na época”. Gustavo Franco
compara Fernando Haddad a “Henrique VI”, coroado rei da Inglaterra aos 8
anos devido à morte do pai, e também rei de França, mas nunca aceito
pela nobreza francesa, não sendo reconhecido oficialmente como tal.
Para Gustavo Franco, Lula não é Lear, como afirmou Marina Silva em um
texto. Mas ele acha que Marina escreveu sobre Lear apenas para se vestir
de Cordélia, a terceira filha, a não bajuladora, e, por isso mesmo,
banida em benefício das duas outras, bem mais ambiciosas, Goneril e
Regan, que seriam Dilma e Marta. Quando Lear rejeita Cordélia, e decreta seu banimento — ou a demite do
Ministério do Meio Ambiente —, segundo Marina, “não por acaso desmorona
seu mundo. O que antes era tão bem definido passa a ser ambivalente. Ele
só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é”.
Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo:
“Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.
Lear é um belo retrato da decadência de um rei que se ilude com a
sensação de que anda sobre as águas, comenta Gustavo Franco. Ambos
personagens de Hamlet, o tagarela Polônio lembra a Franco, com sua
sabedoria caseira, o ex-ministro Guido Mantega, e Laertes, “ se torna
uma espécie de Ciro Gomes, movido unicamente pelo ódio imerecido a
Hamlet”. Ciro tem muito também de Coriolano, o brilhante general que se voltou
contra Roma, depois de preterido. Gustavo Franco compara José Dirceu a
“uma espécie de Macbeth interrompido e sem remorsos”. Em “Ricardo II”, o
que o bardo exibe, segundo Franco, é a dessacralização da Presidência,
“digo, da Coroa”.
Ricardo II vê-se reduzido à condição de cidadão comum, fenômeno
extraordinário para a época, um risco institucional sem tamanho: um rei
legítimo pode ser removido se for suficientemente corrupto ou
incompetente, lembrando Collor e Dilma. Temer pode ser comparado, segundo Gustavo Franco, a Bolingbroke, o
usurpador em “Ricardo II”. Angelo, um puritano hipócrita em “Medida por
medida”, assediando a freira Isabela para não executar seu irmão, lembra
Bolsonaro. Petruchio em “A megera domada”, tentando controlar Catarina,
“brusca, irritada e voluntariosa”e, finalmente, domando-a com
brutalidade, refere-se ao machismo atribuído a Bolsonaro.
A peça finaliza com uma admissão de inferioridade da megera subjugada:
“[...] O mesmo dever que prende o servo ao soberano prende, ao marido, a
mulher. E quando ela é teimosa, impertinente, azeda, desabrida, não
obedecendo às suas ordens justas, que é então senão rebelde, infame, uma
traidora que não merece as graças de seu amo e amante?”
Merval Pereira - O Globo
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