A procuradora-geral da República Raquel Dodge terá de tomar nas próximas semanas uma decisão hamletiana:
- pedir ou não pedir a abertura de inquérito
contra o presidente do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, eis a questão. O
dilema passou a assediar Dodge depois que o juiz da 13ª Vara Federal de
Curitiba, Luiz Antonio Bonat, determinou que lhe fossem enviadas explicações de
Marcelo Odebrecht para a Polícia Federal. Nelas, o empreiteiro condenado esclarece
que o codinome "amigo do amigo do meu pai", anotado em e-mail
apreendido no seu computador, refere-se ao atual presidente da Suprema Corte. Se
Dodge concluir que o caso requer apuração, terá de pedir autorização ao
Supremo.
Nessa hipótese a Corte viverá o histórico constrangimento de decidir
sobre a conveniência de submeter seu próprio presidente aos rigores de uma
investigação criminal. Se a procuradora-geral optar pelo arquivamento do caso,
atiçará a ira de sua corporação, pois dissemina-se entre os procuradores a
avaliação de que os esclarecimentos prestados por Marcelo Odebrecht em resposta
a indagações da Polícia Federal não podem ser ignorados. Vai abaixo um resumo
da encrenca em dez atos:
1. A
origem: O e-mail que deu origem à controvérsia foi apreendido pela Lava Jato
num computador de Marcelo Odebrecht. Está datado de 13 de julho de 2007. Na
mensagem, o empreiteiro indaga a dois executivos da Odebrecht: "Afinal,
vocês fecharam com o amigo do amigo do meu pai?" Um dos executivos,
Adriano Maia, então diretor jurídico da Odebrecht, respondeu: "Em
curso".
2. A dúvida: Intrigados com o teor do e-mail, investigadores da Polícia
Federal decidiram cobrar explicações de Marcelo Odebrecht. Queriam saber a
identidade do "amigo do amigo do meu pai" e a natureza do assunto
tratado com ele. Recolhido à prisão domiciliar, o empreiteiro é colaborador da
Justiça. Na condição de delator, assumiu o compromisso de dizer a verdade.
3. O amigo: Em resposta anexada no último dia 9 de abril aos autos de
inquérito que corre em Curitiba, Marcelo Odebrecht informou que "o amigo
do amigo do meu pai" é José Antonio Dias Toffoli. Em 2007, quando o e-mail
for redigido, Toffoli era advogado-geral da União do governo Lula. A
empreiteira discutia com ele "temas envolvendo as hidrelétricas do Rio
Madeira". O delator informou aos agentes federais que só Adriano Maia, o
ex-diretor financeiro, saberia informar sobre "a natureza e o conteúdo das
tratativas." (veja reprodução de trecho do documento abaixo)...
4. A
divulgação: O teor do e-mail e das explicações de Marcelo Odebrecht vieram à
luz em notícia veiculada pela revista eletrônica Crusoé. Na sexta-feira da
semana passada, 12 de abril, um dia depois da divulgação, o juiz Luiz Antonio
Bonat, que substituiu Sergio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba, mandou
retirar do processo que corre na primeira instância a papelada que faz
referência a Dias Toffoli. Como o personagem dispõem de "foro
privilegiado", o magistrado ordenou à PF a remessa dos documentos para a
Procuradoria Geral da República.
5. A
confusão: Na mesma sexta-feira, 12 de abril, horas antes do despacho do juiz
Luiz Bonat, Raquel Dodge emitira uma nota para negar que tivesse sido informada
sobre a existência da manifestação de Marcelo Odebrecht. Escorando-se nessa
nota da procuradora-geral, Dias Toffoli endereçou um ofício ao colega Alexandre
de Moraes, relator do inquérito secreto aberto no Supremo para investigar
ataques à Corte e ameaças aos seus membros. Toffoli pediu a Moraes que tomasse
providências contra a revista Crusoé.
6. A
censura: Na última segunda-feira, 15, sem suspeitar que o novo juiz da Lava
Jato já havia remetido para Raquel Dodge, três dias antes, a documentação sobre
o "amigo do amigo do meu pai", Alexandre de Moraes censurou a revista
Crusoé e o site Antagonista. Evocando a nota da procuradora-geral, àquela
altura já com o prazo de validade vencido, tachou de "fake news" a
notícia que mencionava Toffoli. Determinou que a reportagem fosse tirada do ar,
sob pena de pagamento de multa diária de R$ 100 mil. No dia seguinte,
terça-feira (16), o juiz de Curitiba, Luiz Bonat, levantou o sigilo do despacho
em que ordenara à PF o envio da encrenca para Brasília.
7. A toga
justa: Na mesma terça-feira (16), Raquel Dodge, já informada sobre a decisão do
magistrado de Curitiba, divulgou um despacho no qual "promove o
arquivamento" do inquérito secreto aberto no Supremo à margem do
Ministério Público Federal. O relator Moraes deu de ombros. E o próprio Toffoli
prorrogou a investigação sigilosa por mais 90 dias. É contra esse pano de fundo
que Dodge terá de decidir o que fazer com o material enviado pela Lava Jato.
Criou-se no Supremo um ambiente de toga justa. Em privado, ministros se
declaram constrangidos. O constrangimento seria potencializado diante de eventual
pedido de abertura de inquérito contra Toffoli.
8. Os indícios: Atentos ao desdobramento do caso, procuradores avaliam
que há na documentação indícios suficientes para que Raquel Dodge requisite a
abertura de uma investigação. Sustentam que a menção de Marcelo Odebrecht ao
nome de Toffoli orna com o contexto. Então advogado-geral, Toffoli era tratado
como "amigo" do chefe Lula, que era "amigo" de Emílio
Odebrecht, o pai do delator. Os procuradores realçam que a Odebrecht tinha
interesses a defender nas obras da hidrelétrica de Santo Antônio, um ninho de
propinas detectadas pela Lava Jato. Sem fazer juízo de valor, realçam a
necessidade de interrogar o patriarca Emílio, o filho Marcelo e Adriano Maia, o
ex-diretor jurídico que conduziu as "tratativas" com Toffoli. No
limite, dependendo do desenrolar da apuração, seria necessário ouvir o próprio
presidente do Supremo.
9. A tempestade: Aquilo que Dias Toffoli e Alexandre de Moraes chamavam
de "fake news" há poucos dias tornou-se, em verdade, uma tempestade
perfeita. O e-mail de Marcelo Odebrecht é real. Os esclarecimentos do
empreiteiro foram mesmo remetidos à Polícia Federal. E o envio do material à
Procuradoria-Geral da República, que Toffoli e Moraes imaginavam inexistente,
ganhou as manchetes depois que o juiz levantou o sigilo do seu despacho.
10. A
ficha não cai: Nesta quarta-feira, em palestra na Congregação Israelita Paulista,
Dias Toffoli declarou que "a liberdade de expressão não pode servir à
alimentação do ódio, da intolerância." Sem fazer menção às notícias que
Alexandre de Moraes mandou censurar, declarou que a incitação ao ódio "é
um uso abusivo desse direito" à livre expressão. "Se permitimos que
isso aconteça, colocamos em risco as conquistas da Constituição de 1988".
Quer dizer: a ficha do presidente do Supremo Tribunal Federal demora a cair.
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