Narrativa do confronto está sendo substituída pela da negociação com parlamentares e partidos
Os governos petistas acostumaram o País à divisão. Foi o célebre “nós”
contra “eles”, os “progressistas” contra os “conservadores”, além de
outras versões da acepção do político enquanto distinção entre amigo e
inimigo. Apesar de estes governos terem tido, na prática, uma política
de negociação e, mesmo, de corrupção com os mesmos “conservadores” e
“eles” tão vilipendiados, a narrativa dominante foi a do combate
incessante. No imaginário nacional, prevaleceu a narrativa da guerra
política, até ela ser desmontada pela Operação Lava Jato, ao expor as
entranhas destes compromissos. É esta narrativa, aliás, que continua a
nortear o PT ao colocar o ex-presidente, julgado e condenado, como
“vítima” e “perseguido” político.
O curto mandato do presidente Temer caracterizou-se por uma acepção do
político diferente, voltada para a negociação e a pacificação. Foi
evitado qualquer confronto que pudesse pôr em questão a estabilidade
institucional, por meio de diálogos e compromissos. Tornou-se, assim,
possível realizar um ousado projeto de reformas de cunho liberalizante,
que colocou o Brasil num novo patamar, tendo faltado o seu desfecho na
reforma da Previdência, torpedeada por aqueles mesmos que procuravam
manter os seus privilégios. Serviu de álibi a luta “salvacionista”
contra a corrupção, embora nada tenha sido provado. Os efeitos
midiáticos, porém, foram enormes.
A campanha do atual presidente Bolsonaro, por sua vez, caracterizou-se
por uma retomada da acepção do político enquanto contraposição entre
amigo e inimigo, construindo uma narrativa de luta contra a “esquerda”,
sob as suas várias significações derivadas do politicamente correto.
Retomou os valores conservadores que foram brandidos contra os supostos
progressistas, insistindo num combate sem tréguas que continua a se
desenvolver no novo governo. Interessante observar que o cenário
eleitoral foi de tal maneira construído que o governo Temer foi
eleitoralmente considerado enquanto inexistente. Isso por uma razão bem
simples. A “nova política” precisava de um inimigo e nada melhor para
isso do que Lula e o PT. A narrativa estaria, assim, bem ancorada.
Contudo, o novo governo está retomando em seu perfil econômico as
linhas-mestras do governo Temer. Parte de seus pressupostos, como a
reforma trabalhista, o teto dos gastos públicos e o projeto de
concessões de aeroportos, agora realizado segundo as condições
elaboradas no governo anterior. Destaque-se, aqui, que um dos não
menores méritos do governo Temer consiste em ter tornado transparente a
crise fiscal e, em particular, o caráter imprescindível da reforma da
Previdência. Se hoje há clareza sobre isso, o crédito deve ser atribuído
ao ex-presidente.
A dificuldade maior do atual governo consiste em ter retomado como regra
de ação o combate ao inimigo, espraiando-se essa orientação não apenas à
oposição, mas a todos os que dele divergem, sem que se saiba ao certo
quem são “aqueles” que são tidos por divergentes. Explico. As
divergências maiores, que adquiriram contornos agudos, residem dentro do
próprio governo e entre os seus aliados potenciais, que nada têm de
simpatizantes da “esquerda”. Foram as lutas incessantes entre
“olavistas” e “militares”, com estes sendo objeto de uma campanha de
difamação nas redes sociais. Foram igualmente os embates contra a
“velha” política, contra aliados potenciais que passaram a ser vistos
como inimigos.
Torna-se uma missão quase impossível governar com tal fratura no
interior mesmo do governo, sobretudo por estar baseado numa forte
presença militar. Se até eles vieram a ser chamados de “comunistas” ou
outros nomes considerados como impróprios, nem faltando os piores
palavrões, é porque uma unidade de ação não consegue ser construída.
Note-se que o apaziguamento destas últimas semanas fez com que o governo
conseguisse avançar tanto na comunicação com a opinião pública,
transmitindo uma imagem de estabilidade, quanto na construção de
negociações que viabilizem a reforma da Previdência. O presidente
Bolsonaro soube colocar-se acima das disputas, pondo-lhes um término, e
não atuando enquanto parte delas. Seria fundamental para o País que
persista nesta via.
A narrativa do confronto está sendo também substituída pela da
negociação com parlamentares e partidos, o que pressupõe que estes
deixem de ser considerados como representantes da “velha política”. É
totalmente incompatível considerar parlamentares enquanto inimigos e, ao
mesmo tempo, como parceiros de negociação em prol do bem do País. Ou se
negocia ou se elimina o “inimigo”. Não é possível manter juntas ambas
alternativas. Isto é, não há como avançar uma pauta econômica
liberalizante se a narrativa for a de inviabilizar uma mesma negociação
necessária. A vida democrática tem como condição o diálogo incessante
entre o Executivo e o Legislativo, este último não podendo ser tido por
inimigo.
O Brasil só caminhará decisivamente rumo às reformas necessárias se a
política for a do apaziguamento. A pauta econômica não avançará se tiver
como pressuposto político uma concepção que inviabilize a própria
negociação parlamentar. Os impasses destes primeiros meses de governo,
em muito, se devem a essas contradições, que estão levando o Brasil à
paralisia. Não é demais atentar para o fato de que o desemprego é
elevadíssimo, o PIB foi negativo no último trimestre e há um desalento e
uma falta de expectativas crescentes. Não dá para brincar de fazer
política tendo como pano de fundo um cenário social deste tipo.
Os sinais são auspiciosos de que a reforma da Previdência será aprovada
em curto prazo no plenário da Câmara dos Deputados. Espera-se que isso
se confirme, sob pena de o País sofrer mais uma vez. E isso está sendo
agora possível graças a uma redução visível da alta combustão política.
Se o presidente perseverar nesta via, o novo governo dirá, então, ao que
veio.
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