O Globo
Nada é normal neste governo
Bolsonaro não fez visita de cortesia ao Supremo
[a visita do presidente Bolsonaro foi uma visita de cortesia esclarecedora - os que decidem, ou corroboram decisões certas ou erradas, devem arcar com o ônus ou o bônus decorrentes.]
A marcha do presidente Bolsonaro, seu ministro da Economia Paulo Guedes, deputados e um grupo de industriais sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) é uma típica ação política de pressão, e ao negar esse intuito o chefe do Gabinete Civil General Braga Neto demonstra que não entende nada do assunto, ou, ao contrário, já deixou de ser um técnico apolítico para se transformar em um político seguidor do presidente.
Seus companheiros de toga ficaram irritados, evidentemente, com o ultrajante avanço do chefe do Executivo sobre um outro poder, e gostariam que Toffoli tivesse recebido apenas o presidente, deixando a comitiva na sala de estar. Evidentemente, não foi uma visita de cortesia, como disse Paulo Guedes, mas sim uma pressão para impedir que Estados façam lockdown e apertem as barreiras para evitar o aumento do caso de mortes pela Covid-19, que já está chegando a limites dramáticos.
A resposta de Toffoli foi certeira, colocando a coisa em seu devido lugar, ao reafirmar que a Constituição garante a competência de estados e municípios na matéria. O comitê de crise sugerido por ele poderia estar funcionando há muito tempo, se o presidente não fosse tão autoritário.
Colocar na mesma mesa representantes de governadores, prefeitos, industriais, comerciantes, médicos, judiciário, sob a coordenação do ministério da Saúde para planejar o momento certo e como fazer o relaxamento da quarentena seria uma medida correta num governo normal. Mas nada nesse governo é normal.
Agora mesmo estamos às voltas com a disputa pela divulgação do vídeo da reunião ministerial em que o presidente Bolsonaro teria ameaçado o então ministro Moro de demissão se não concordasse com a troca do diretor-geral da Policia Federal. O governo, através da AGU, primeiro pediu ao ministro Celso de Mello, relator do processo no STF, que revogasse a exigência, e depois que a fita fosse editada. Tudo indica que teremos uma repetição, como farsa, da crise do então presidente dos Estados Unidos Richard Nixon com a Suprema Corte, na investigação do caso Watergate, em torno da divulgação de áudios das conversas presidenciais em seu gabinete no Salão Oval.
Conforme relato do livro “Os dias finais”, de Bob Woodward e Carl Bernstein, o juiz Thurgood Marshall disse no julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o direito de Nixon de escolher quais documentos liberaria para a Comissão Especial que investigava o caso Watergate: “A Nação estará seriamente ameaçada se o Presidente, qualquer Presidente, puder dizer que a Constituição é o que ele acha que é, e que não existe ninguém, nem mesmo a Corte Suprema, capaz de dizer-lhe que as coisas não são assim”. O promotor especial Jaworski alegava que ele tinha direito de levar o Presidente aos tribunais sobre a questão do privilégio executivo. O advogado da presidência, St. Clair, defendia que o promotor especial era um funcionário do Executivo e devia obediência ao Presidente.
Os juizes pareciam espantados com a alegação de que quem definiria quais provas deveriam ser dadas era o presidente Nixon. O advogado insistia em que a privacidade do Presidente deveria ser preservada, e citou o caso de uma fictícia conversa entre o Presidente e um indicado para a Suprema Corte. O juiz Marshal então atacou: “o senhor não acha que seria importante tomar conhecimento de uma conversa em que o presidente estivesse escolhendo um membro da Suprema Corte em troca de dinheiro?” Resta saber o que o presidente Bolsonaro e seus ministros palacianos querem esconder do público.
Merval Pereira, jornalista - O Globo
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