Análise Política
É razoável relacionar a estabilidade e a paz política com a capacidade
de o Estado construir consensos majoritários. E são duas as ferramentas
fundamentais para essa construção: o convencimento da sociedade com e
sem coação. Na vida real, a resultante é sempre uma combinação dos dois
vetores.
Nenhum governo se sustenta apenas com base na força, mas governos que
não têm força tampouco param em pé. E em democracias constitucionais
plurais como a nossa os governos dependem também de uma variável externa
a eles: os grupos sociais hegemônicos, mesmo os opostos, conseguirem
dialogar e alcançar convergências.
Algo como uma mútua aceitação, ainda que implícita.
Não há estabilidade e paz possíveis se largos contingentes sociais e
partidários enxergam-se simplesmente excluídos do edifício
político-cultural quando perdem uma eleição. Tampouco haverá normalidade
política nos sistemas fechados em que um grupo considere insuportável a
convivência com o antípoda. Isso deveria ser óbvio.
A ideia original da Nova República de 1985 era colocar em prática um
pacto informal para garantir a todos os relevantes o acesso ao poder,
por eleições diretas. Ganhar, governar e, quando perder, esperar pela
próxima eleição. E por um período o convívio entre as diversas forças
foi essencialmente institucional, com um soluço: o impeachment de
Fernando Collor.
Os estudiosos um dia diagnosticarão onde a maionese começou a desandar,
mas aquele episódio tem boa chance de figurar com destaque. Ali voltou a
dar as caras uma cultura do “nunca mais”. Cada eleição passou a ser
vendida como a derradeira oportunidade de o país salvar-se do mal. E,
numa imagem especular, escolher um salvador da pátria.
Que, convenientemente, precisa chegar ao poder, ou continuar nele, para salvar a pátria ao livrá-la do indesejável “outro”.
Mas e se o “outro” reúne, digamos, pelo menos um terço do eleitorado? Aí
complica. É muita gente. Veja-se o ocorrido com o Partido dos
Trabalhadores e seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva. Não só
sobreviveram à guerra de extermínio, hoje estão em posição eleitoral
auspiciosa.
A mola, quanto mais comprimida, mais acumula energia potencial à espera de se soltar.
A quem antes de tudo interessa a paz política? Ao poder. Seria razoável
então supor que dele viessem as iniciativas para incluir, fagocitar e
digerir as resistências externas. Mas a era da hiperconectividade e das
redes introduziu um complicador: os políticos precisam responder
rapidamente aos estímulos externos, sempre de olho no que a turba vai
achar.
Turba que hoje exibe um poder próprio e invejável.
A violência política explícita (a implícita sempre foi parte do jogo) é
simultaneamente consequência e realimentadora desse arcabouço. E a
ilusão maior é achar que se vai neutralizá-la seguindo no jogo de caça e
caçador até conseguir, finalmente, eliminar o adversário.
Em momentos históricos singulares, alguns países tiveram a sorte de
encontrar personagens capazes de entender que isso é simplesmente
bobagem.
Alon Feuerwerker, jornalista e analista político
Publicado na revista Veja de 20 de julho de 2022, edição nº 2.794
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