Alexandre de Moraes é ministro de Corte constitucional. Não o Batman.
Peço vênia pela franqueza. Nada é pessoal. Sou, sobretudo, óbvio.
Moraes, ou qualquer outro de seus pares, não tem mandato de pacificador;
muito menos de justiceiro.
Ainda que diante do pior dos Coringas: não
tem. E deveria mesmo zelar pelo esvaziamento de sua presença
monocrática. Nada contra a vaidade. Tudo pelo foco. Não temos Batman.
Mas há o prestígio de estar no lugar mais alto do Judiciário. Deveria
bastar. Um entre os 11. Não um porque entre os 11.
O Supremo não pode ser plataforma para a impulsão moderadora de um juiz
onipresente; de repente tranquilo para decidir — para mandar entrar na
casa das pessoas e lhes bloquear as contas — com base em reportagem
jornalística.
Pense-se no efeito cascata disso. Aqui o magistrado se
move — mal — a partir de bom jornalismo. Imagine-se, porém, o precedente
aberto para canetadas judiciais, Brasil profundo adentro, assentadas em
publicações fraudulentas.
A obviedade: a força de uma Corte constitucional está na voz do
colegiado. Não no exercício da musculatura individual ao alcance de seus
integrantes; o que deveria ser exceção — não abuso.
Abusa-se. Estou à vontade. Denunciei os perigos do inquérito das fake
news no dia em que instaurado.
Tudo caberia no escopo daquela defesa
institucional sem objeto definido, em que a vítima também seria o
julgador, antes ainda promotor.
Aquela largueza sugeria desdobramentos
temerários. Era março de 2019; e não tardaria até que produzisse censura
contra uma revista, a Crusoé, que publicara reportagem incômoda para o
então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli.
Ali se subiu um degrau nas liberdades para que o relator, Moraes,
agisse, porque em defesa da democracia, a seu bel-prazer. Já temos a
volta do PowerPoint.
O que é defender a democracia?
Qual a possível defesa da democracia
pelo Supremo? Como um ministro do STF pode defender a democracia?
Até
onde pode avançar, o monocrático, para defendê-la?
O que a urgência em
defendê-la permite?
Permitimos que se defenda a democracia à margem das
balizas republicanas? Vale a pescaria?
Moraes autorizou buscas contra empresários que, em conversas privadas
asquerosas, manifestaram predileções golpistas. Sua decisão informa que
não há outros elementos fundamentando as medidas — também bloqueio de
redes sociais — que não simplesmente aquela troca de mensagens estúpidas
entre idiotas ricos.
É grotesco. Porque as mensagens, per se, não indicam organização para
financiamento de atividade antidemocrática — o que seria, aí sim, crime.
Não indicam; nem forçando a barra.
E não será aceitável que um guarda
da Constituição, com base somente naquilo, respalde antecipação
coercitiva ao que intui ser a fumaça da pretensão golpista. Moraes não
tem esse poder.
Não tem o poder de agir com base na previsão de que a estupidez
manifestada no zap por endinheirados desaguaria em financiamento à
instabilidade no dia da Independência.
Não tem o poder de ordenar atos
para dissuasão escorados em bravatas desprovidas da mais mínima
articulação.
Não tem mandado para agir preventivamente pela garantia de
um 7 de Setembro pacífico.
Não lhe é papel mover-se estrategicamente
para, antecipando ação policial, desencorajar possíveis intenções de
bancar ataques à ordem republicana.
O que significará um ministro do Supremo afirmar, sustentado apenas
naquelas conversas cretinas, não ter dúvidas “de que as condutas dos
investigados indicam a possibilidade de atentados contra a democracia e o
Estado de Direito”?
Que loteria é essa, em que a indicação de possibilidade lastreia certeza materializada em intervenção policial?
Juiz nenhum pode ter tal poder. Advirta-se que, sendo agora esses
excessos bacanas, exceções virtuosas, excentricidades que permitimos
porque contra o mal, será muito difícil retirar adiante essa autorização
caçadora de quem a esbanja. Advirta-se também que a licença que se dá a
Moraes vira precedente a um Mendonça.
Não precisamos de mais um herói togado. Herói togado é oximoro que
expõe a doença de uma sociedade à procura de mitos. Já os temos muitos.
Está aí nossa tragédia. Herói togado é convite à briga de rua; terreno
em que o bolsonarismo será imbatível. E aqui não duvido de que Moraes
almeje o bem. Bem faria o Supremo, ajudando na pacificação do país, se,
em sua máxima expressão, a plenária, impessoal e derradeira, defendesse a
matéria constitucional agredida pelo orçamento secreto — corda e
caçamba bilionária para a permanência do populismo autocrático que erode
a República no Brasil.
Cadê? Isso seria defender a democracia. Moraes não deveria ambicionar o posto de homem que evitou o golpe de
Estado. O golpe que está em curso prospera com a omissão do STF. Nem
sugerir, aqui e acolá, que a imprensa só reage agora contra suas gestões
arbitrárias porque tocaram em empresários potenciais anunciantes. [matéria excelente; só que nessa frase, o ilustre articulista, deixou transparecer a verdadeira motivação da imprensa militante - sempre silenciosa diante de outros supremos abusos - se manifestar criticando a suprema monocracia do ministro Moraes.] Isso,
essa fraqueza conspiracionista, é linguagem bolsonarista. A briga de
rua contamina mesmo.
Carlos Andreazza, colunista - O Globo
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