Jair Bolsonaro está cumprindo uma espécie de via-Crucis a que é obrigado
todo presidente que enfrenta um processo de impeachment sem que haja,
no entanto, condições práticas de transformá-lo em realidade, embora
todas as premissas estejam dadas. A Covid-19, que o presidente tanto desdenhou, impede que o Congresso se
reúna presencialmente para discutir o tema, e também faz com que as ruas
vazias não reverberem o sentimento majoritário.
Bolsonaro deveria ser a favor do distanciamento social, que faz com que
manifestações populares pedindo sua saída se transformem em panelaços
quase diários. Simbólicos, porém ineficazes. [insignificantes mesmo; impeachment é aprovado quando tem pessoas nas ruas querendo a medida.
Falta povo nas ruas e razões para impedir o presidente.
Não podemos esquecer que se não houvesse a pandemia o 'daí' não teria ocorrido.] Se não houvesse esses obstáculos impostos por uma trágica pandemia, as
ruas explodiriam diante do “E daí?” dito pelo presidente sobre as mais
de cinco mil mortes de brasileiros, todos sem direito a velório, muitos
enterrados em covas rasas.
A busca de apoio no Congresso, que todos os que sofreram impeachment
fizeram e apenas Michel Temer concretizou, é uma dessas etapas, e nessa
Bolsonaro tem desvantagem, pois sai de quase zero para conseguir uma
maioria defensiva que evite o impeachment. Vai sair muito mais caro, e
não há certeza de final feliz. [172 votos a favor de Bolsonaro arquivam qualquer pedido de impeachment;
342 votos a favor aprovam o impeachment.
DETALHE: a sessão só é aberta com a presença de 342 parlamentares.] A cada bolsonarice que diz ou faz, abala a confiança que por acaso ainda
exista em setores da classe média que o apoiou em 2018. Agora mesmo
está fazendo mais uma de suas bravatas para agradar seu núcleo duríssimo
de apoiadores quando diz que vai insistir no nome do delegado Alexandre
Ramagem para chefiar a Polícia Federal.
De nada adiantaria recorrer, porque o recurso cairia para o mesmo
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que
suspendeu a nomeação por desvio de finalidade. [o instituto da 'prevenção' é que torna possível que um único ministro trave um processo, impedindo pelo tempo que quiser sua chegada ao Plenário.
Tem um detalhe: com a revogação do decreto presidencial na parte que efetua a nomeação combatida, não existe nada impedindo nova nomeação de Ramagen.
E, ocorrendo nova nomeação não se aplicaria o instituto da prevenção caso a nova nomeação fosse contestada - seria um processo novo.] Além disso, depois que a
nomeação foi tornada sem efeito pelo próprio presidente, que devolveu
Ramagem para a chefia da Abin, não haveria do que recorrer.
Se não encontrar um substituto ideal para Ramagem, Bolsonaro tem duas
opções:
ou deixa como interino o delegado Disney Rossetti, que Moro
gostaria de ver substituindo Mauricio Valeixo, ou tenta encontrar alguém
que aceite o cargo, o que está sendo difícil. Há na corporação o temor de que qualquer delegado que seja nomeado terá
pela frente um presidente ávido por informações sobre inquéritos em
andamento, especialmente os que se referem a membros de sua família. Ou
forçar uma nova investigação sobre o atentado que sofreu, como se uma
grande conspiração estivesse protegendo os supostos mandantes do crime.
Provavelmente somente depois que o inquérito aberto a pedido do
Procurador-Geral da República, Augusto Aras, sobre interferência de
Bolsonaro na Polícia Federal denunciada pelo ex-ministro Sérgio Moro
terminar é que poderá novamente nomear Ramagem para o cargo, caso não
exista nenhuma denúncia contra o presidente da República. O presidente Bolsonaro manteve a nomeação de Ramagem para a Polícia
Federal, mesmo sabendo que havia o risco de ela ser barrada, porque quer
um delegado no cargo de diretor-geral da Polícia Federal que passe
informações para ele. Mas a PF não é órgão da presidência da República,
precisa ter autonomia para as investigações.
Mas enquanto as instituições estiverem funcionando e puderem barrá-lo, a
democracia está preservada, apesar de todo o tumulto que ele provoca. É
preciso ficar atento, porque há casos de políticos autoritários que
chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar
as instituições. Boa parte do aumento das mortes pela Covid-19 deve-se ao comportamento
do presidente, que vai para a rua desmoralizar o distanciamento social,
entra em disputa com o ministério da Saúde e quer impor a adoção de
remédios dos quais não se sabe o efeito. Bolsonaro vive num mundo
próprio, paranóico, isolado da realidade.
O que obriga seus ministros a fazerem papeis ridículos como o atual da
Saúde, Nelson Teich, que só faz repetir, como disse ontem, que “estamos
navegando às cegas”. Não é culpa dele, é a verdade que se repete em
todos os países. O problema é que Teich fica impossibilitado de terminar
sua frase, dizendo aos brasileiros: “Porque não sabemos nada, a única
coisa a fazer é ficar em casa”.