Vozes - Paulo Uebel
Além disso, os cidadãos que acompanham as notícias, os comentários e a opinião pública são, muitas vezes, amordaçados com a falácia de que “ou se defende a democracia brasileira ou se critica o Judiciário”.
Agora, um nome importante da esquerda mundial tem reconhecido, dia após dia, os excessos do Judiciário: o escritor, advogado especialista em Direito Constitucional dos Estados Unidos e jornalista americano radicado no Brasil, Glenn Greenwald. “Existe agora, ou já existiu, uma democracia moderna onde um único juiz exerce o poder que Alexandre de Moraes possui no Brasil? Não consigo pensar em nenhum exemplo sequer próximo”, publicou o jornalista nas redes sociais.
Mas Glenn não é o único americano a prestar atenção em eventuais excessos do poder judiciário. Em outubro do ano passado, 9 dias antes da votação do 2º turno, um artigo publicado no The New York Times (NYT) noticiava que o Brasil deu poder a um homem sobre o que pode ser dito online: o ministro Alexandre de Moraes. Internacionalmente, Moraes teve seu poder reconhecido. Neste último domingo (22), outro texto sobre o ministro foi publicado no NYT. “Ele é o defensor da democracia no Brasil. Mas será que ele é realmente bom para a democracia?”, questiona o título da reportagem escrita por Jack Nicas, correspondente do NYT no Brasil.
As autoridades devem dar o primeiro passo: restaurar o uso de processos legais e investir na moralidade, legitimidade, razoabilidade, proporcionalidade e não excessividade de seus atos.
“Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, assumiu o papel de principal defensor da democracia brasileira. Usando uma interpretação ampla dos poderes do Tribunal, Moraes impulsionou investigações e processos, bem como o silenciamento nas redes sociais, de qualquer pessoa considerada por ele uma ameaça às instituições brasileiras”, reportou Nicas ao veículo americano. Apesar de listar ações de Moraes que teriam sido benéficas para a democracia brasileira, o repórter do NYT também reconhece: “Alexandre de Moraes já ordenou prisões sem julgamento por ameaças postadas em redes sociais; liderou o voto que sentenciou um deputado federal a quase nove anos de prisão por ameaçar o Tribunal; ordenou busca e apreensão contra empresários com poucas evidências de irregularidades; suspendeu um governador eleito de seu cargo; e bloqueou monocraticamente dezenas de contas e milhares de publicações nas redes sociais, praticamente sem transparência ou espaço para recurso.”
Nicas também revela que alguns ministros do Supremo Tribunal Federal começaram a conversar, privadamente, sobre pôr fim aos inquéritos de Moraes, mas que foram desencorajados após os ataques aos Três Poderes do dia 8 de janeiro. De fato, os ataques ao Palácio do Planalto, Supremo Tribunal, Câmara dos Deputados e Senado foram inaceitáveis — mas também não podem servir como pretexto para a escalada de autoritarismo. Ora, um abuso não justifica outros abusos. Por sua vez, o jornal americano The Wall Street Journal (WSJ) afirmou que a “Suprema Corte do Brasil é ameaça ainda maior à democracia que os atos de 8 de janeiro”, em texto de Mary O'Grady, editora do WSJ e membro de seu conselho editorial desde 2005, também no último domingo (22).
Cabe relembrar que a escalada de autoritarismo do Judiciário começou para proteger um ministro citado na Lava Jato em 2019. De lá para cá, o Judiciário mudou um pouco o rumo de seus alvos, mas isso foi muito antes de 8 de janeiro. O Judiciário, embora se qualifique como defensor da democracia, também tem sua parcela de responsabilidade sobre a descrença na democracia de muitos brasileiros. “Uma fonte de descrença com a democracia é a excessiva interferência das cortes. Do que adianta o sujeito votar, se esforçar para eleger pessoas que representam suas ideias se quando o eleito tenta implantá-las as cortes derrubam tudo? Os representantes do povo podem votar a favor de reforma trabalhista, de menos impostos de importação ou da privatização do ginásio do Ibirapuera, mas na hora ‘H’ a vontade que prevalece é a de não-eleitos de toga. Desse jeito é difícil convencer o povo a se entusiasmar com a democracia”, escreveu, em suas redes sociais, o jornalista e escritor best-seller Leandro Narloch.
Em abril de 2020, o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então recém-liberto da prisão, criticou a decisão de Alexandre de Moraes de barrar a nomeação feita pelo então presidente Jair Bolsonaro de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal (PF). Provavelmente preocupado com o futuro de seus poderes caso sua empreitada de voltar ao Palácio do Planalto desse certo, Lula defendeu o respeito às funções do presidente da República, dizendo que cabia a ele fazer a indicação para a PF, e que Moraes só poderia barrar a indicação caso fosse comprovado que Ramagem tivesse cometido algum ilícito que o impedisse de ocupar o cargo.
Para proteger a democracia, não se pode tomar ações severas sem respaldo legal. O autoritarismo também não é a solução.
Antes mesmo de ser eleito, mais uma vez, Lula percebeu o perigo do Judiciário interferir nas decisões dos poderes Executivo e Legislativo. Seus apoiadores, pelo contrário, se tornaram fãs das ações que beiram o autoritarismo do Supremo.
O professor de Ciência Política e coordenador do curso de Relações Internacionais do IBMEC, Adriano Gianturco, resumiu bem a situação política do Brasil: “Pedir golpe é antidemocrático. Destruir o Estado de Direito é antidemocrático. Desrespeitar o devido processo legal é antidemocrático. Mesma pessoa ser vítima, investigador e julgador é antidemocrático. Alianças políticas com ditaduras são antidemocráticas. Não permitir acesso aos atos é antidemocrático. Quebrar sigilo de pessoas não investigadas é antidemocrático. Censura é antidemocrática. Censura enviesada é antidemocrática.”
Gianturco continua: “Cercear o direito de ir e vir é antidemocrático. Financiar ditaduras é antidemocrático. Abuso de poder é antidemocrático. Penas desproporcionais são antidemocráticas. Atos inconstitucionais, ilegais e ilícitos são antidemocráticos. Calar a mídia é antidemocrático. Comprar a mídia é antidemocrático. Comprar o Congresso é antidemocrático. Asfixiar economicamente um investigado é antidemocrático. Aniquilar a oposição é antidemocrático. Desrespeitar imunidades é antidemocrático. Desrespeitar a divisão de poderes é antidemocrático. Desrespeitar o equilíbrio de poderes é antidemocrático. Bloquear estradas é antidemocrático. Ameaçar e amedrontar todo o mundo é antidemocrático”.
Nenhuma defesa da democracia funcionará de verdade enquanto os brasileiros não voltarem a confiar nas instituições.
Lula também já foi e pode voltar a ser uma ameaça à democracia. Há anos, seu partido nutre o desejo de regular a mídia e assim restringir a voz de seus adversários e críticos.
Porém, que moral o atual governo possui para defender a democracia? Para se ter ideia, o site oficial do governo chama de “golpe de 2016” o impeachment de Dilma Rousseff, o que é em si uma agressão contra a democracia, já que o impeachment foi um processo legal, democrático, constitucional e, portanto, legítimo. Chamar o impeachment de golpe é fake news e faz uma crítica injusta contra os poderes Legislativo e Judiciário. Quanto a isso, o Congresso nada fez. Também não fez nada contra os excessos do Judiciário. Assim, os parlamentares tomam sua parcela de culpa pelo enfraquecimento da democracia em razão da sua inércia.
Para proteger a democracia, não se pode tomar ações severas sem respaldo legal. O autoritarismo também não é a solução. Nenhuma defesa da democracia funcionará de verdade enquanto os brasileiros não voltarem a confiar nas instituições. E, para isso, as autoridades devem dar o primeiro passo: restaurar o uso de processos legais, dentro dos limites do Estado de Direito, e investir na moralidade, legitimidade, razoabilidade, proporcionalidade e não excessividade de seus atos.
Paulo Uebel, colunista - Gazeta do Povo - VOZES