Vozes - Paulo Uebel
O Brasil pode se tornar cada vez menos democrático, e as autoridades que estão tomando medidas drásticas (supostamente) em nome da democracia também podem ser responsáveis por isso.
É verdade que invadir os Três Poderes e destruir o patrimônio público brasileiro é errado, e as pessoas que fizeram isso devem ser, sem dúvida, punidas.
Por outro lado, quebrar o sigilo de pessoas que não são alvo de investigações também é errado.
Ambas atitudes violam nossa Constituição e enfraquecem a nossa democracia. Censurar pessoas e desrespeitar o equilíbrio entre os Três Poderes também prejudica a democracia.
Esquemas de corrupção e a impunidade de pessoas envolvidas nesses escândalos abalam a credibilidade das instituições e a própria democracia. E o que dizer então de alianças políticas com ditaduras e o financiamento delas?
Com as autoridades, especialmente do Judiciário, aumentando cada vez mais seus poderes, é (muito) injusto jogar toda a culpa das ameaças à democracia brasileira nas costas de manifestantes que, embora violentos, estão longe do poder.
Uma eventual escalada do autoritarismo do Judiciário pode, inclusive, incentivar que mais pessoas desprezem a democracia, inflamando ainda mais os descontentes com os rumos da política no país.
Enquanto os governantes, parlamentares e
ministros não corrigirem suas atitudes, o Brasil seguirá sofrendo com o
aumento da descrença nos processos democráticos e nas instituições
públicas.
Além disso, os cidadãos que acompanham as notícias, os
comentários e a opinião pública são, muitas vezes, amordaçados com a
falácia de que “ou se defende a democracia brasileira ou se critica o
Judiciário”.
Uma crítica ponderada e justa jamais deveria ser
qualificada como golpista em uma democracia.
Personalidades da direita
brasileira têm alertado sobre os riscos da escalada do autoritarismo do
Judiciário, pelo menos, desde 2019: quando a revista Crusoé publicou a
reportagem “O amigo do amigo de meu pai”, no dia 11 de abril, sobre a
menção a um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (e então
presidente da Corte) na Operação Lava Jato e foi censurada pelo ministro
Alexandre de Moraes. O episódio marcou o avanço do Poder Judiciário em
um direito fundamental: a liberdade de imprensa e de informação.
Agora,
um nome importante da esquerda mundial tem reconhecido, dia após dia,
os excessos do Judiciário: o escritor, advogado especialista em Direito
Constitucional dos Estados Unidos e jornalista americano radicado no
Brasil, Glenn Greenwald. “Existe agora, ou já existiu, uma democracia
moderna onde um único juiz exerce o poder que Alexandre de Moraes possui
no Brasil? Não consigo pensar em nenhum exemplo sequer próximo”,
publicou o jornalista nas redes sociais.
Seria razoável pensar que a
esquerda brasileira pararia um pouco para pensar no assunto, já que
Greenwald se consagrou como um ícone da esquerda moderna na última
década. Ledo engano. Após suas críticas ao Judiciário, o jornalista
passou a despertar a ira da esquerda e também a ser tratado como um
pária por muitas personalidades de seu espectro político.
Mas
Glenn não é o único americano a prestar atenção em eventuais excessos do
poder judiciário. Em outubro do ano passado, 9 dias antes da votação do
2º turno, um artigo publicado no The New York Times (NYT) noticiava que
o Brasil deu poder a um homem sobre o que pode ser dito online: o
ministro Alexandre de Moraes. Internacionalmente, Moraes teve seu poder
reconhecido. Neste último domingo (22), outro texto sobre o ministro foi
publicado no NYT. “Ele é o defensor da democracia no Brasil. Mas será
que ele é realmente bom para a democracia?”, questiona o título da
reportagem escrita por Jack Nicas, correspondente do NYT no Brasil.
As autoridades devem dar o primeiro passo: restaurar o uso de processos
legais e investir na moralidade, legitimidade, razoabilidade,
proporcionalidade e não excessividade de seus atos.
“Alexandre
de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, assumiu o papel de
principal defensor da democracia brasileira. Usando uma interpretação
ampla dos poderes do Tribunal, Moraes impulsionou investigações e
processos, bem como o silenciamento nas redes sociais, de qualquer
pessoa considerada por ele uma ameaça às instituições brasileiras”,
reportou Nicas ao veículo americano. Apesar de listar ações de Moraes
que teriam sido benéficas para a democracia brasileira, o repórter do
NYT também reconhece: “Alexandre de Moraes já ordenou prisões sem
julgamento por ameaças postadas em redes sociais; liderou o voto que
sentenciou um deputado federal a quase nove anos de prisão por ameaçar o
Tribunal; ordenou busca e apreensão contra empresários com poucas
evidências de irregularidades; suspendeu um governador eleito de seu
cargo; e bloqueou monocraticamente dezenas de contas e milhares de
publicações nas redes sociais, praticamente sem transparência ou espaço
para recurso.”
Nicas também revela que alguns ministros do
Supremo Tribunal Federal começaram a conversar, privadamente, sobre pôr
fim aos inquéritos de Moraes, mas que foram desencorajados após os
ataques aos Três Poderes do dia 8 de janeiro. De fato, os ataques ao
Palácio do Planalto, Supremo Tribunal, Câmara dos Deputados e Senado
foram inaceitáveis — mas também não podem servir como pretexto para a
escalada de autoritarismo. Ora, um abuso não justifica outros abusos.
Por sua vez, o jornal americano The Wall Street Journal (WSJ) afirmou
que a “Suprema Corte do Brasil é ameaça ainda maior à democracia que os
atos de 8 de janeiro”, em texto de Mary O'Grady, editora do WSJ e membro
de seu conselho editorial desde 2005, também no último domingo (22).
Cabe
relembrar que a escalada de autoritarismo do Judiciário começou para
proteger um ministro citado na Lava Jato em 2019. De lá para cá, o
Judiciário mudou um pouco o rumo de seus alvos, mas isso foi muito antes
de 8 de janeiro. O Judiciário, embora se qualifique como defensor da
democracia, também tem sua parcela de responsabilidade sobre a descrença
na democracia de muitos brasileiros. “Uma fonte de descrença com a
democracia é a excessiva interferência das cortes. Do que adianta o
sujeito votar, se esforçar para eleger pessoas que representam suas
ideias se quando o eleito tenta implantá-las as cortes derrubam tudo? Os
representantes do povo podem votar a favor de reforma trabalhista, de
menos impostos de importação ou da privatização do ginásio do
Ibirapuera, mas na hora ‘H’ a vontade que prevalece é a de não-eleitos
de toga. Desse jeito é difícil convencer o povo a se entusiasmar com a
democracia”, escreveu, em suas redes sociais, o jornalista e escritor
best-seller Leandro Narloch.
Em abril de 2020, o próprio
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então recém-liberto da prisão,
criticou a decisão de Alexandre de Moraes de barrar a nomeação feita
pelo então presidente Jair Bolsonaro de Alexandre Ramagem para a chefia
da Polícia Federal (PF). Provavelmente preocupado com o futuro de seus
poderes caso sua empreitada de voltar ao Palácio do Planalto desse
certo, Lula defendeu o respeito às funções do presidente da República,
dizendo que cabia a ele fazer a indicação para a PF, e que Moraes só
poderia barrar a indicação caso fosse comprovado que Ramagem tivesse
cometido algum ilícito que o impedisse de ocupar o cargo.
Para proteger a democracia, não se pode tomar ações severas sem respaldo legal. O autoritarismo também não é a solução.
Antes
mesmo de ser eleito, mais uma vez, Lula percebeu o perigo do Judiciário
interferir nas decisões dos poderes Executivo e Legislativo. Seus
apoiadores, pelo contrário, se tornaram fãs das ações que beiram o
autoritarismo do Supremo.
É certo que não era conveniente para Lula
fazer alarde contínuo sobre isso naquela época, já que seu adversário
Bolsonaro já estava (e ainda está) sob a mira do Judiciário. Lula, na
verdade, foi beneficiado (a começar, é claro, por sua soltura).
Em 2022,
o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) atendeu 60 pedidos do PT para
remover da internet e da propaganda eleitoral conteúdos que ligassem
Lula a temas incômodos, como ao crime organizado ou à corrupção, do
início da corrida eleitoral até o dia 20 de outubro. Mas, e quando Lula
for o alvo de eventuais interferências indevidas?
O professor de
Ciência Política e coordenador do curso de Relações Internacionais do
IBMEC, Adriano Gianturco, resumiu bem a situação política do Brasil:
“Pedir golpe é antidemocrático. Destruir o Estado de Direito é
antidemocrático. Desrespeitar o devido processo legal é antidemocrático.
Mesma pessoa ser vítima, investigador e julgador é antidemocrático.
Alianças políticas com ditaduras são antidemocráticas. Não permitir
acesso aos atos é antidemocrático. Quebrar sigilo de pessoas não
investigadas é antidemocrático. Censura é antidemocrática. Censura
enviesada é antidemocrática.”
Gianturco continua: “Cercear o
direito de ir e vir é antidemocrático. Financiar ditaduras é
antidemocrático. Abuso de poder é antidemocrático. Penas
desproporcionais são antidemocráticas. Atos inconstitucionais, ilegais e
ilícitos são antidemocráticos. Calar a mídia é antidemocrático. Comprar
a mídia é antidemocrático. Comprar o Congresso é antidemocrático.
Asfixiar economicamente um investigado é antidemocrático. Aniquilar a
oposição é antidemocrático. Desrespeitar imunidades é antidemocrático.
Desrespeitar a divisão de poderes é antidemocrático. Desrespeitar o
equilíbrio de poderes é antidemocrático. Bloquear estradas é
antidemocrático. Ameaçar e amedrontar todo o mundo é antidemocrático”.
Nenhuma defesa da democracia funcionará de verdade enquanto os brasileiros não voltarem a confiar nas instituições.
Lula
também já foi e pode voltar a ser uma ameaça à democracia. Há anos, seu
partido nutre o desejo de regular a mídia e assim restringir a voz de
seus adversários e críticos.
Ele também capturou o Congresso por meio do
Mensalão, e anos depois, viu seu partido envolvido no esquema de
corrupção do Petrolão.
Também usou o dinheiro dos pagadores de impostos
para financiar ditaduras de esquerda.
Mas o risco que ele representa não
se resume às ações do passado. O governo Lula III estuda criar um
“código penal próprio” para “crimes contra a democracia”. Isso não seria
antidemocrático?Porém,
que moral o atual governo possui para
defender a democracia? Para se ter ideia,
o site oficial do governo
chama de “golpe de 2016” o impeachment de Dilma Rousseff, o que é em si
uma agressão contra a democracia, já que o impeachment foi um processo
legal, democrático, constitucional e, portanto, legítimo. Chamar o
impeachment de golpe é fake news e faz uma crítica injusta contra os
poderes Legislativo e Judiciário. Quanto a isso, o Congresso nada fez.
Também não fez nada contra os excessos do Judiciário. Assim, os
parlamentares tomam sua parcela de culpa pelo enfraquecimento da
democracia em razão da sua inércia.
O
Brasil não pode deixar sua democracia, que já é falha, se tornar cada
vez mais enfraquecida.
É fácil culpar os manifestantes barulhentos e
destruidores do patrimônio público de golpistas, mas não se pode isentar
as autoridades de sua parcela de culpa por ações e omissões que
enfraquecem a nossa democracia.
O exemplo vem de cima. Enquanto os
governantes, parlamentares e ministros não corrigirem suas atitudes, o
Brasil seguirá sofrendo com o aumento da descrença nos processos
democráticos e nas instituições públicas.
Para proteger a
democracia, não se pode tomar ações severas sem respaldo legal. O
autoritarismo também não é a solução. Nenhuma defesa da democracia
funcionará de verdade enquanto os brasileiros não voltarem a confiar nas
instituições.
E, para isso, as autoridades devem dar o primeiro passo:
restaurar o uso de processos legais, dentro dos limites do Estado de
Direito, e investir na moralidade, legitimidade, razoabilidade,
proporcionalidade e não excessividade de seus atos. As autoridades
precisam ser o exemplo do que querem ver no Brasil.Paulo Uebel, colunista - Gazeta do Povo - VOZES