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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Uma STASI para chamar de nossa - Guilherme Baumhardt

O início dos anos 2000 trouxe uma interessante produção cinematográfica alemã. Recomendo o fantástico “Adeus, Lênin” (2003), em que uma senhora entra em coma antes da queda do Muro de Berlim e desperta em um país já unificado – sob rigorosa recomendação médica de não ser submetida a emoções fortes. Já o filme “O Grupo Baader Meinhof” (2008) retrata o surgimento e as atrocidades dos terroristas de extrema-esquerda, responsáveis por atentados na então Alemanha Ocidental. Mas a obra que mais se assemelha ao que vivemos hoje no Brasil certamente é “A Vida dos Outros” (2007).

 Aos que não assistiram, um breve resumo. Um dos grandes dramaturgos da Alemanha Oriental (Georg Dreyman) é considerado por muitos o modelo de cidadão alemão a ser seguido. É o sujeito perfeito, que não questiona o regime e sobre o qual não pairam suspeitas
Ao menos até o dia em que um burocrata do governo resolve vigiá-lo 24 horas por dia, utilizando o aparato da STASI, a polícia secreta da Alemanha soviética.
 
 Escutas são instaladas no apartamento em que Dreyman vive. Cada passo dele e sua companheira passam a ser monitorados. Toda palavra ou ação é alvo da atenção dos espiões. 
Ao perceberem que viraram foco dos agentes, as conversas na casa passam a ser feitas ao pé do ouvido, com música alta ao fundo, para que os microfones instalados de maneira clandestina não captem o que é dito. Alguma semelhança com a operação da Polícia Federal contra oito empresários brasileiros ocorrida nesta semana?  
Sim, o Brasil de Alexandre de Moraes e do STF virou isso.
 
 A vida imita a arte. A ação autorizada pelo autossuficiente Moraes (que instaura inquéritos, investiga, julga e condena) é a reprise desse estado policialesco. 
 Celulares foram apreendidos, contas em redes sociais foram bloqueadas, o sigilo bancário de investigados foi quebrado. 
Para quê? 
Inúmeros motivos foram elencados, nenhum deles minimamente plausível até aqui. O que parece bastante claro, porém, é o caráter intimidatório da ação.

 Estamos tratando de mensagens trocadas em um espaço privado. E, do que veio a público até agora, nada (repito, nada) representa um atentado contra a democracia. “Ah, mas alguns ali falaram em golpe, Guilherme!”. Sim, e desde quando alguém deve ser punido por uma ideia, por mais estapafúrdia que ela seja?

Não custa lembrar: o ainda todo-poderoso petista José Dirceu já disse com todas as letras que “eleição não se ganha, se toma”
Inúmeros integrantes da esquerda e extrema-esquerda não escondem o fascínio e a admiração por regimes ditatoriais, alguns com boas doses de saudosismo da extinta União Soviética. No Brasil, idolatra-se um ditador chamado Getúlio Vargas (que governou o país durante muito mais tempo sem ter sido eleito, do que pela via democrática). 
 E? Todos são livres para defenderem, inclusive, absurdos. É a beleza da liberdade.
 
Desde a eleição de Jair Bolsonaro alguns alertam para “tempos sombrios” e para o “obscurantismo”
Alertas de araque, feitos por pensadores de fundo de quintal. 
A afronta às liberdades vem do outro lado da Praça dos Três Poderes, em Brasília. 
Foi o Supremo Tribunal Federal quem mandou prender jornalistas
Foram os “supremos” que ordenaram a prisão de um deputado federal que goza de imunidade parlamentar.  
Se há uma ameaça às liberdades nesse país, ela começa na casa dos togados.

 Foi o ministro Alexandre de Moraes que acionou a Polícia Civil de São Paulo para enquadrar um grupo que conversava no Jockey Club da capital paulista, fazendo críticas ao STF. Detalhe: Moraes não estava ali, foi “avisado” por terceiros. E, assim, voltamos ao filme “A Vida dos Outros”. Temos, portanto, uma Stasi para chamar de nossa.

 Enquanto isso, parte de uma imprensa calhorda comemora. Mal sabem eles que amanhã ou depois podem ser os próximos alvos da fúria suprema. Para a burrice, infelizmente, ainda não há remédio.

O autor é jornalista e o artigo foi publicado originalmente no Correio do Povo de 28 de agosto de 2022


terça-feira, 23 de agosto de 2022

Festa no Tribunal Imperial - Gazeta do Povo

Guilherme Fiuza - VOZES

– Foi linda a posse do imperador.

Emocionante.

– Qual foi a parte que você mais gostou?

– Ah, aquela em que ele abraçou o ladrão.

– Eu chorei nessa hora.

Eu também.

– Acho que todo mundo chorou.

– É.

                   Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

– O perdão sempre emociona.

– Perdão? Você quis dizer descondenação, né?

– Ah, dá no mesmo.

– É, de certa forma dá.

– Acho até que descondenar é mais que perdoar.

– Faz sentido.

Não existe prova maior de compaixão do que saltar sobre as leis para libertar um ser humano.

– E que ser humano!

– O mais humano de todos.

– Será que o imperador vai punir o ladrão por pedir votos antes do período permitido?

– Em primeiro lugar, acho que já dá pra passarmos a usar “ex-ladrão”, né?

– Tem toda razão. Fica mais simpático. Mesmo ele sempre tendo sido um bom ladrão.

– Quanto a isso não há dúvidas. Quanto à punição, tenho a impressão de que não vai acontecer.

– Por quê?

– Até agora ninguém falou nada no Tribunal Imperial. E as manchetes nem se detiveram nesse detalhe. Punir o ladrão...

– Quem?

– Desculpe. Punir o ex-ladrão a essa altura seria revanchismo.

Verdade. Onda de ódio.

– Me emocionei também com a intensidade dos aplausos ao imperador.

– Nunca vi nada igual. O que você acha que mais encanta os devotos do imperador?

Acho que é o fato de ele ter libertado a sociedade das leis.

– Como assim?

A vida nacional estava muito engessada pelas leis. O imperador mostrou que os iluminados estavam com dificuldade de fazer o bem.

– Ah, isso é mesmo. Antes era muito difícil alguém do bem calar a boca de alguém do mal.

– Foi isso que o imperador modificou. Agora basta ele mesmo dizer que alguém está desinformando ou ameaçando a democracia que o mal é cortado pela raiz.

– Não tem mais aquela demora dos processos.

Processo só atrapalha. Se temos uma junta de mentes muito acima da média...

– Odeio a média.

– Eu também. Mas como eu ia dizendo, se temos uma junta de pessoas especiais capazes de enxergar e determinar tudo o que é verdadeiro e justo, pra que perder tempo com burocracia?

Não é só a burocracia e a perda de tempo. É a injustiça. Investigar demais, dar muito espaço pro Ministério Público, envolver polícia e outras instituições, tudo isso dispersa, confunde e pode desviar o processo da verdade.

Inclusive foi o que aconteceu com o ex-ladrão.

– Exatamente. Ele sempre foi um bom ladrão, mas acabou sentenciado como um mau ladrão.

– A maior injustiça da história.

– Sem dúvida. E quando o caso foi revisto por uma única mente brilhante do Tribunal Imperial, a verdade foi restituída.

– O bom é que o Tribunal Imperial age em bloco. Combinam lá entre eles o caminho a seguir e a justiça está feita. É muito mais prático assim.

– Por isso o imperador foi tão aplaudido na posse.

– Claro. É a euforia dos cultos, perfumados e ricos com a certeza de que não serão atrapalhados por esse bando de imbecis que se amontoam nas ruas para repudiar os luminares.

São invejosos que não suportam as virtudes da nobreza e ficam pedindo liberdade.

– Se forem “libertados” da pureza das decisões imperiais vão ver o que é bom pra tosse.

– Só sobraria a imbecilidade.

– E a completa incapacidade de julgar o que é fake news, de identificar e calar quem desinformar, de conter a onda de ódio e de reprimir os fascistas e seus atos antidemocráticos.

– Por isso estão articulando um golpe. Querem que a sociedade seja guiada pela vontade da maioria, o que é altamente antidemocrático.

– Todo mundo sabe que a maioria não presta. Bota esse monte de imbecis pra decidir no lugar do imperador e você vai ver a bagunça que isso aqui vai virar.

– Vira essa boca pra lá.

– Já virei.

– Virou pra onde?

– Pra leste.

– Por que?

– Porque se essas palavras perigosas forem na direção oriental acabarão neutralizadas pela democracia chinesa.

– Bem pensado. Lá a maioria não se mete a besta com o soberano.

– A gente chega lá.

– Depois da posse do imperador, começo a acreditar que chega mesmo.

– Viva o imperador!

– Viva o ex-ladrão!

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
 
Guilherme Fiuza, colunista - Gazeta do Povo - VOZES 
 

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O Saidão do Supremo - Revista Oeste

Augusto Nunes 

Para o tribunal governado por Gilmar Mendes, todos são inocentes. Menos Sergio Moro e Deltan Dallagnol

Não sabia que as atribuições do Ministério Público eram tão múltiplas e essenciais até aquela tarde em que acampei na sala do fórum de Itápolis reservada ao promotor de Justiça. Com 30 e poucos anos, só então descobri que meu irmão mais velho era muito mais que a figura que apontava o dedo acusador para o réu, ou o livrava da cadeia, nas sessões do tribunal do júri. Nas cinco horas seguintes, enquanto examinava processos, ele costurou três acordos entre patrão e empregado, reaproximou dois casais desavindos, consolou mães de preso, socorreu meia dúzia de miseráveis e, sobretudo, ouviu. Ninguém sabia ouvir um sem-ouvinte como Flávio Nunes da Silva.

No fim do expediente, entrou na sala um nissei com o paletó no ombro e o nó da gravata já desfeito, com cara de quarentão recente. Era o juiz de Direito. Os dois conversaram meia hora com o desembaraço de amigos de infância. O promotor disse que pediria a absolvição por falta de provas de alguém prestes a ser julgado. O juiz comentou outro caso em que lhe parecia evidente a culpa do réu. Acabou aí a pauta profissional e entraram os assuntos gerais. Fiquei sabendo que o convívio da dupla fora intensificado graças aos frequentes churrascos promovidos por um grupo de festeiros bons de papo, garfo e copo. Conversavam muito, comiam bastante e, sobretudo, bebiam como gente grande.

Também fiquei sabendo que o apreço por vinho e cerveja resultara num clássico do humor forense, protagonizado pelo juiz e pelo dono do bar mais movimentado da cidade, que fazia parte do grupo atraído por churrasqueiras. Semanas antes, o dono do bar aparecera no fórum para depor num inquérito judicial que tinha como indiciado um amigo da testemunha. Ainda no preâmbulo da inquisição, acompanhada pelo meu irmão, o juiz perguntou se o indiciado tinha mesmo o hábito de beber. Tinha, confirmou o depoente. Muito?, quis saber o juiz. Com um movimento de braço que abarcou os representantes do Judiciário e do Ministério Público, o depoente recorreu à comparação que lhe parecia bastante precisa: “Ele bebe que nem nós, doutor”. Depois de alguns segundos de silêncio, o juiz recuperou a oriental serenidade, voltou-se para o escrivão e ditou:

O depoente afirma que o indiciado bebe moderadamente.

Lembrei-me dessa história, e da fraternal convivência entre o juiz e o promotor de Itápolis, quando a imprensa velha se entregou ao surto de orgasmos provocados pela divulgação de mensagens trocadas por integrantes da Operação Lava Jato. Li todo o material furtado pela quadrilha de hackers, comprado pelo site The Intercept e reproduzido por jornais agonizantes em julho de 2019. Só consegui enxergar um grupo de procuradores e juízes federais justificadamente entusiasmados com a chance de drenar o pântano da roubalheira institucionalizada — e felizes com os caprichos do destino. A operação nasceu em 17 de março de 2014, concebida para investigar uma rede de lavagem de dinheiro que usava postos de venda de combustível e lava-jatos. Os homens da lei logo toparam com um doleiro, Alberto Youssef, que mapeou dutos criminosos que levavam à Petrobras. Por essas trilhas transversais as apurações conduziram à descoberta do Petrolão, cuja devassa fez da Lava Jato a mais bem-sucedida operação anticorrupção de todos os tempos.

Meu irmão morreu grávido de orgulho com os feitos da nova geração do Ministério Público. Se as trapaças da sorte os tivessem depositado em Curitiba na segunda década do século 21, ele e o juiz amigo também traduziriam em ansiosos recados digitais o desejo de que a varredura das catacumbas continuasse avançando. Como tantos milhões de brasileiros, Flávio se deslumbrara especialmente com dois assombros. Primeiro: a Lava Jato provara que é possível pôr em prática o preceito constitucional segundo o qual todos são iguais perante a lei. Segundo: também ficara claro que há na cadeia lugar para todos, aí incluídos presidentes da República que tratam o Código Penal a socos e pontapés. O Brasil parecia efetivamente ter encontrado a rota segura. Mas o sinal vermelho fora acionado já em maio de 2016 pela frase do senador Romero Jucá: “É preciso estancar a sangria”. Antes que a Lava Jato chegasse ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, dispensou-se de dizer o líder no Senado de todos os governos. Passados cinco anos, o tribunal que soltou o bandido persegue o juiz que o prendeu, a Procuradoria-Geral da República quer prender o procurador federal que insistia em engaiolar corruptos, o ex-presidiário virou candidato a presidente, a Odebrecht quer de volta a parte do dinheiro roubado que devolveu e Renan Calheiros é relator de uma CPI. Os inventores do faroeste à brasileira acham mesmo que só há idiotas na plateia.

O Saidão do Supremo é tão abrangente que inclui os ainda presos, os que usam tornozeleira eletrônica, os processados e os que enfrentam perigo de cadeia. Graças ao Timão da Toga, estão longe de celas Lula, José Dirceu, Dilma Rousseff, Gleisi Hoffmann, os Odebrecht, Antonio Palocci, Guido Mantega, Erenice Guerra, os presidentes e diretores da Petrobras na Era PT, Lulinha, Renan Calheiros, Renanzinho, Silvinho Land Rover, Edinho Silva, Rosemary Noronha e seus bebês gatunos, os irmãos Vieira Lima e a mãe da dupla, Miriam Cordeiro, João Santana, Fernando Collor, Joesley e Wesley Batista, Eduardo Cunha, Paulo Maluf, Jader Barbalho, Hélder Barbalho, Eike Batista, Delúbio Soares, João Paulo Cunha, José Genoíno, André Vargas, os sobrinhos de Lula, Waldemar Costa Neto, Edison Lobão, Edison Lobinho, Zeca Dirceu, Fernando Pimentel, Luiz Marinho, João Pedro Stédile, Ideli Salvatti, Paulo Okamoto, Zeca do PT e todos os tesoureiros do PT, fora o resto. Dessa turma eu não compraria, mesmo em suaves prestações, sequer um anzol de pesca. [observação: todos os citados deveriam estar presos e acorrentados e mais algumas dezenas que não estão na relação... - com certeza para evitar o desperdício de bytes citando nomes de bandidos. . . 
Destacamos alguns para facilitar a leitura. Perguntamos ao ilustre jornalista Augusto Nunes: a menção a anzol de pesca tem algo a ver com as lanchas que a petista Ideli Salvatti, comprou quando era ministro da pesca do criminoso Lula? 
A coisa pegou, devido a descoberta de que as lanchas seriam usadas para patrulhar em  região de serra = sem lagos, nem lagoas, nem mar.]

Mas topo comprar à vista qualquer carro usado posto à venda por Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Só eles foram contemplados com a condecoração moral reservada a quem consegue o aparentemente impossível: num Brasil infestado de sumidades da vigarice, ladrões compulsivos, estupradores patológicos, cafajestes irremediáveis, assassinos de nascença e demais representantes das ramificações da grande tribo dos bandidos sem conserto, todos premiados pela maioria dos ministros com o direito perpétuo de circular por aí, Moro e Deltan estão condenados à danação eterna pelo braço do Supremo governado por Gilmar Mendes.

 Leia também “Por uma Corte Constitucional no lugar do STF”

Se houver um Dia do Juízo Final, os dois serão encaminhados ao guichê com catraca livre.

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste  

 


quinta-feira, 25 de março de 2021

Vergonha para o STF, luto para o Brasil - Gazeta do Povo - Editorial

Editorial

Ministra Carmen Lúcia mudou o próprio voto e formou a maioria para considerar o ex-juiz Sergio Moro suspeito no processo do tríplex do Guarujá.

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal retomou, o julgamento de um habeas corpus inexistente, aquele que alegava suspeição do então juiz federal Sergio Moro no processo do tríplex do Guarujá, em que o ex-presidente Lula foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.  
E o desfecho deste espetáculo, por si só deprimente, só serviu para cobrir de vergonha dois de seus protagonistas, com uma inacreditável e injustificável reversão de voto que criou maioria de três ministros contra dois em favor do habeas corpus e da suspeição de Moro, neste dia que cobre o Supremo de infâmia. 
 
Este processo e todas as outras ações contra Lula que correram na 13.ª Vara Federal de Curitiba foram liminarmente anulados por decisão do ministro Edson Fachin, ou seja, é como se jamais tivessem existido. A lógica básica leva a concluir que todos os recursos ligados a tais ações estão igualmente nulos, e já naquele momento era evidente que a única solução sensata era deixar para julgar a suspeição de Moro só depois que o plenário do Supremo julgasse a liminar de Fachin sobre a anulação dos processos de Lula (o que até hoje ainda não ocorreu). Apesar disso, no último dia 9, quatro ministros da Segunda Turma criaram a figura do “processo zumbi”, um recurso morto-vivo que poderia ser julgado mesmo sendo nulo. Naquela ocasião, Kassio Nunes Marquesque fora favorável ao julgamento do habeas corpus – pedira vista; quando comunicou que seu voto estava pronto para ser proferido, o tema voltou à pauta da turma, dando continuidade ao absurdo de se manter o julgamento da suspeição antes de resolver a questão da nulidade das ações.

Todos os “novos elementos” citados por Cármen Lúcia para mudar seu voto já eram conhecidos quando ela tinha votado contra a suspeição de Moro, o que invalida sua argumentação. Nunes Marques baseou seu voto contra a suspeição de Moro no fato de as supostas mensagens atribuídas ao ex-juiz e aos procuradores da força-tarefa da Lava Jato terem sido obtidas ilegalmente, motivo pelo qual não poderiam ser usadas. Não se pode dizer que seja a melhor linha de argumentação, até porque o uso de provas ilícitas quando servem para beneficiar o réu é aceito no ordenamento jurídico brasileiro. Teria sido melhor afirmar que os supostos diálogos são inúteis como prova neste caso não por terem sido obtidos ilegalmente, mas porque sua autenticidade jamais foi comprovada; e, depois, seguir apontando todas as incoerências e falácias da defesa de Lula, que buscavam atribuir parcialidade a Moro com base em atos bastante defensáveis do ponto de vista processual, seja porque explicitamente amparados pela lei, seja porque dentro da margem de discricionariedade concedida ao juiz em questões passíveis de interpretação.

De qualquer forma, o voto de Nunes Marques formava, naquele momento, maioria contra a concessão do habeas corpus. Na qualidade de presidente da turma, em vez de indagar se mais algum ministro tinha algo a acrescentar e proclamar o resultado, Gilmar Mendes protagonizou cenas extremamente constrangedoras ao passar horas simplesmente reafirmando o que já havia dito em seu voto do dia 9, demonstrando nitidamente sua insatisfação com o desfecho que não lhe agradava, elevando a voz em diversas ocasiões, repetindo clichês como a comparação da Lava Jato com o totalitarismo soviético e a Stasi alemã-oriental, e relendo as supostas mensagens que ele mesmo dizia não serem necessárias para comprovar a parcialidade de Moro. Tudo isso para constranger tanto Nunes Marques quanto Cármen Lúcia, que no dia 9 havia deixado no ar a possibilidade de mudar seu voto contrário à suspeição.

E o espetáculo protagonizado por Gilmar Mendes acabou empalidecendo em comparação com o que ocorreu após o intervalo. Com toda uma candidez que contrastava com o descontrole de Mendes, Cármen Lúcia mudou seu voto anterior, que havia sido contrário à suspeição, alegando que, depois de sua primeira manifestação, havia “novos elementos” que a levaram a mudar de opinião. No entanto, tudo o que a ministra citou – a condução coercitiva de Lula, a interceptação telefônica que incluiu advogados do ex-presidente, a divulgação das conversas entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff, e o levantamento do sigilo sobre a delação do ex-ministro Antonio Palocci já havia ocorrido quando Cármen Lúcia havia dado seu voto original. Ora, se foram esses os elementos que a fizeram mudar de ideia a respeito da suspeição, eles já eram amplamente conhecidos quando o habeas corpus começou a ser julgado, o que derruba a argumentação da ministra. Em sua irretocável intervenção final, na qual reforçou vários argumentos contra a suspeição, o relator Edson Fachin fez questão de demonstrar, de forma cristalina, que, à exceção das supostas mensagens, não havia nenhuma informação nova que já não estivesse presente quando a defesa de Lula impetrou o habeas corpus, no fim de 2018.

“Cada um passará à história com o seu papel”, vociferou Gilmar Mendes durante sua manifestação, e ele tem razão. Quanto ao presidente da Segunda Turma, sua atuação sistemática na desconstrução da Lava Jato já lhe garantiu com folgas a forma como ele passará à história. 
E Cármen Lúcia que, nesta terça-feira, acrescentou uma mancha ao seu legado. 
 
Pois o que ocorreu nesta sessão da Segunda Turma não foi apenas uma enorme injustiça contra Moro ou contra a Lava Jato. As portas foram abertas para se inviabilizar o bom combate à corrupção. O Brasil tem todas as razões para estar de luto.
 

Editorial - Gazeta do Povo