Guilherme Fiuza - VOZES
– Foi linda a posse do imperador.
– Emocionante.
– Qual foi a parte que você mais gostou?
– Ah, aquela em que ele abraçou o ladrão.
– Eu chorei nessa hora.
– Eu também.
– Acho que todo mundo chorou.
– É.
Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE
– O perdão sempre emociona.
– Perdão? Você quis dizer descondenação, né?
– Ah, dá no mesmo.
– É, de certa forma dá.
– Acho até que descondenar é mais que perdoar.
– Faz sentido.
– Não existe prova maior de compaixão do que saltar sobre as
leis para libertar um ser humano.
– E que ser humano!
– O mais humano de todos.
– Será que o imperador vai punir o ladrão por pedir votos
antes do período permitido?
– Em primeiro lugar, acho que já dá pra passarmos a usar
“ex-ladrão”, né?
– Tem toda razão. Fica mais simpático. Mesmo ele sempre
tendo sido um bom ladrão.
– Quanto a isso não há dúvidas. Quanto à punição, tenho a
impressão de que não vai acontecer.
– Por quê?
– Até agora ninguém falou nada no Tribunal Imperial. E as
manchetes nem se detiveram nesse detalhe. Punir o ladrão...
– Quem?
– Desculpe. Punir o ex-ladrão a essa altura seria
revanchismo.
– Verdade. Onda de ódio.
– Me emocionei também com a intensidade dos aplausos ao
imperador.
– Nunca vi nada igual. O que você acha que mais encanta os
devotos do imperador?
– Acho que é o fato de ele ter libertado a sociedade das
leis.
– Como assim?
– A vida nacional estava muito engessada pelas leis. O
imperador mostrou que os iluminados estavam com dificuldade de fazer o bem.
– Ah, isso é mesmo. Antes era muito difícil alguém do bem
calar a boca de alguém do mal.
– Foi isso que o imperador modificou. Agora basta ele mesmo
dizer que alguém está desinformando ou ameaçando a democracia que o mal é
cortado pela raiz.
– Não tem mais aquela demora dos processos.
– Processo só atrapalha. Se temos uma junta de mentes muito
acima da média...
– Odeio a média.
– Eu também. Mas como eu ia dizendo, se temos uma junta de
pessoas especiais capazes de enxergar e determinar tudo o que é verdadeiro e
justo, pra que perder tempo com burocracia?
– Não é só a burocracia e a perda de tempo. É a injustiça. Investigar
demais, dar muito espaço pro Ministério Público, envolver polícia e outras
instituições, tudo isso dispersa, confunde e pode desviar o processo da
verdade.
– Inclusive foi o que aconteceu com o ex-ladrão.
– Exatamente. Ele sempre foi um bom ladrão, mas acabou
sentenciado como um mau ladrão.
– A maior injustiça da história.
– Sem dúvida. E quando o caso foi revisto por uma única
mente brilhante do Tribunal Imperial, a verdade foi restituída.
– O bom é que o Tribunal Imperial age em bloco. Combinam lá
entre eles o caminho a seguir e a justiça está feita. É muito mais prático
assim.
– Por isso o imperador foi tão aplaudido na posse.
– Claro. É a euforia dos cultos, perfumados e ricos com a
certeza de que não serão atrapalhados por esse bando de imbecis que se amontoam
nas ruas para repudiar os luminares.
– São invejosos que não suportam as virtudes da nobreza e
ficam pedindo liberdade.
– Se forem “libertados” da pureza das decisões imperiais vão
ver o que é bom pra tosse.
– Só sobraria a imbecilidade.
– E a completa incapacidade de julgar o que é fake news, de
identificar e calar quem desinformar, de conter a onda de ódio e de reprimir os
fascistas e seus atos antidemocráticos.
– Por isso estão articulando um golpe. Querem que a
sociedade seja guiada pela vontade da maioria, o que é altamente
antidemocrático.
– Todo mundo sabe que a maioria não presta. Bota esse monte
de imbecis pra decidir no lugar do imperador e você vai ver a bagunça que isso
aqui vai virar.
– Vira essa boca pra lá.
– Já virei.
– Virou pra onde?
– Pra leste.
– Por que?
– Porque se essas palavras perigosas forem na direção
oriental acabarão neutralizadas pela democracia chinesa.
– Bem pensado. Lá a maioria não se mete a besta com o
soberano.
– A gente chega lá.
– Depois da posse do imperador, começo a acreditar que chega
mesmo.
– Viva o imperador!
– Viva o ex-ladrão!
Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
Guilherme Fiuza, colunista - Gazeta do Povo - VOZES