Renato Janine Ribeiro
MP 914 transformará reitores em interventores
A medida provisória 914, baixada na véspera do Natal pelo governo Jair
Bolsonaro, é um passo decisivo para a destruição da autonomia do ensino
superior federal. Explico seus três pontos mais graves. Começo pelas 63 universidades federais que temos. A MP 914 introduz um
detalhe que as tornará fantoches do governo. Decreta que cada votante,
na formação da lista tríplice, terá direito a sufragar apenas um
candidato. Ora, a tradição no mundo acadêmico permite a cada votante
escolher três nomes, de modo a haver três mais votados que sejam
representativos da comunidade científica. A própria USP, a mais
resistente opositora à eleição direta de reitores, sempre atuou assim.
[Qual a conveniência da autonomia universitária no modelo atual? A Acadêmica é aceitável desde que contida em certos limites.
O Governo Federal banca e assim tem o DEVER e o DIREITO de controlar aspectos administrativos, gerais e opinar - sem em caráter impositivo - sobre o acadêmico.
A lista tríplice pode até permanecer, desde que o nome escolhido possa ser o de alguém que dela não conste, mas, que atenda alguns requisitos.
Por óbvio o reitor tem o direito de nomear os diretores, segundo critérios pré estabelecidos pelo Governo Federal.]
Ao limitar cada votante a um nome, o governo induz à formação de listas
tríplices nas quais o terceiro nome poderá entrar com 5% ou 10% dos
votos. A prática do atual governo indica que é esse o seu objetivo:
impor às instituições federais de ensino superior, que incluem a maior
parte das melhores universidades brasileiras, nomes sem apoio interno,
sem reconhecimento acadêmico, que funcionarão como interventores, o que
não se vê há décadas.
Segundo ponto: os reitores assim nomeados escolherão arbitrariamente os
diretores de faculdades que componham suas universidades ou institutos.
Dentro da universidade ou do instituto federal, todos os dirigentes
serão escolhidos sem a participação do corpo docente, para não falar dos
alunos e servidores. Nem na ditadura foi assim! Ao contrário do que
dizia a promessa de campanha de “mais Brasil e menos Brasília”, haverá
só Brasília na escolha dos dirigentes universitários.
Terceiro: a MP 914 acaba com a autonomia dos 38 institutos federais de
ciência e tecnologia na escolha de seus dirigentes. Pela lei que os
criou, eles elegem diretamente reitor e diretores. Pela MP, passam a se
subordinar à lista tríplice, isto é, de novo o presidente da República
pode escolher o menos votado para dirigir o instituto.
Na verdade, a MP é totalmente inconstitucional. Medidas provisórias
podem ser baixadas em caso de relevância e urgência. Não há a menor
urgência para definir questões que precisam de um debate amplo, na
academia, na sociedade e no Congresso, antes de entrarem em vigor.
Além disso, a Constituição é claríssima, em seu artigo 207, ao definir a
autonomia das universidades, que a MP elimina. Universidades e
institutos federais passam a ser repartições públicas, burocráticas,
como um almoxarifado. Como são órgãos de pesquisa e de formação de alto
nível, a autonomia é o meio de garantir que a qualidade científica e
educacional não seja sequestrada pelos humores políticos do governo. Por
isso, o artifício para nomear reitores com baixíssima votação e a
escolha arbitrária dos diretores de faculdades agridem diretamente o
princípio constitucional, que é imprescindível para que funcione bem
tanto a pesquisa quanto a formação de graduandos, mestres e doutores.
O problema fica mais grave porque este ano serão renovados mais de 30
mandatos de reitor, entre universidades e institutos. A medida
provisória tem validade por 120 dias, não sendo computado neste prazo o
período de recesso. O Congresso Nacional, por sua Presidência, deveria devolvê-la, como já
foi feito no passado, quando medidas provisórias foram baixadas que não
atendiam aos requisitos de relevância e/ou de urgência. Assim, o Congresso evitará que sejam consumadas nomeações que firam a
autonomia universitária e, ao mesmo tempo, preservará seu espaço de
órgão legislativo. Medidas provisórias são excepcionais e não podem substituir o processo
legislativo normal, pelo qual as duas Casas apreciam projetos de lei que
discutem, emendam e remetem à sanção presidencial.
Renato Janine Ribeiro - Edição impressa Folha de S. Paulo