Consulado-geral na cidade poderia evitar mudança dramática na nossa política externa
[o volume de negócios do Brasil com Israel, não justifica a pressa em mudar a sede da embaixada brasileira - foi uma promessa feita por afogadilho do nosso presidente e, que, felizmente, teve seu cumprimento adiado 'sine die';
as prioridades com alguns países precisam ser fundamentadas nos interesses economicos e certamente desagradar dezenas de países árabes não está entre as mais adequadas.]
Durante a campanha eleitoral, o candidato Jair Bolsonaro disse que, se
eleito, iria transferir a Embaixada do Brasil de Tel-Aviv para
Jerusalém: “Israel é um Estado soberano, que decide qual é sua capital, e
nós vamos segui-lo”. A promessa respondia à reivindicação da comunidade
evangélica, que apoiava fortemente o candidato. Depois de eleito, o presidente decidiu dar prioridade às relações com
Israel e se comprometeu a concretizar a transferência a ninguém menos
que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que em entrevista disse que a
“questão não é se, mas quando”. Posteriormente, Bolsonaro recuou ao
afirmar que “essa não é uma questão de honra” e “por ora” não haveria
transferência, o que deve ter estimulado o vice-presidente Hamilton
Mourão a receber duas delegações árabes e observar publicamente que “não
haverá mudança da embaixada para Jerusalém”. O chanceler Ernesto Araújo
qualificou declarações anteriores e notou que a decisão seria “parte de
um processo de elevação do patamar da relação com Israel, isso, sim,
uma determinação, independente da mudança ou não da embaixada”. A
comunidade evangélica reagiu e deixou saber que vai cobrar a decisão
presidencial para concretizar a transferência.
Como era previsível, a ideia causou reação em diversas frentes. Na área
diplomática, porque representaria uma guinada radical na política
externa brasileira, que desde 1947 se mantém coerente com o apoio da
política de uma solução negociada para o conflito Israel-Palestina, com a
implementação da política de dois Estados, com a criação também do
Estado Palestino. Caso venha a concretizar-se, o Brasil ficará em
Jerusalém ao lado apenas da Guatemala, que se alinhou automaticamente
aos EUA. Por outro lado, a Liga Árabe e a União das Câmaras Árabes de
comércio manifestaram preocupação com essa eventual decisão e uma
comitiva ministerial brasileira teve visita ao Egito cancelada.
Na área econômica houve reação mais explícita, com menção à perspectiva
de as exportações brasileiras de frango e carne bovina poderem vir a ser
suspensas. O Ministério da Agricultura e associações de produtores
manifestaram apreensão quanto às consequências negativas para as
exportações brasileiras e a balança comercial. Nas prioridades para os primeiros cem dias de governo, o Itamaraty
incluiu a visita presidencial a Israel e o interesse em ampliar a
colaboração nas áreas de defesa, segurança e tecnologia. E em
pronunciamento recente nas Nações Unidas, o representante alterno
brasileiro reafirmou a política do Itamaraty de dois Estados, indicando
que nada havia mudado.
O governo brasileiro tem assim nas mãos uma questão delicada a resolver,
procurando evitar ao mesmo tempo um desgaste desnecessário com Israel e
uma perda significativa para o agronegócio. Qualquer que seja a decisão
do governo, não está em questão o interesse em elevar o nível do
relacionamento bilateral com Israel, mantendo a posição tradicional de
excelente relação bilateral. Nesse contexto, cabe mencionar um antecedente histórico que poderia
ajudar na busca de uma solução de compromisso para essa questão. O
Brasil tem uma relação histórica com Israel, desde que o então
presidente da Assembleia-Geral da ONU, Oswaldo Aranha, coordenou
pessoalmente a aprovação da resolução de 1947 que determinou a criação
dos Estados e Israel e da Palestina.
[Oswaldo Aranha foi presidente temporário da ONU e nesta condição presidiu a Assembleia citada;
na realidade ele sequer era o representante oficial do Brasil na ONU - o então representante faleceu e seu lugar foi ocupado, interinamente, por Oswaldo Aranha e a interinidade coincidiu com a realização da Assembleia-Geral que determinou a criação dos Estados de Israel e Palestina, resultando na criação dos dois Estados, sendo a Palestina o primeiro Estado a ser criado sem território geográfico.]
No governo de Juscelino Kubitschek, com Macedo Soares como chanceler,
foi instalada a representação diplomática com a criação da legação do
Brasil na capital, Tel-Aviv. Em 27 de março de 1958, a legação foi
elevada ao status de embaixada. Como medida de rotina diplomática, e a
fim de evitar contrariar a política dos dois Estados, por decreto de 22
de abril do mesmo ano o governo brasileiro decidiu criar um
consulado-geral em Jerusalém. Em 1993, com Itamar Franco e Celso Amorim,
o decreto foi revogado. O posto, assim, nunca chegou a ser efetivamente
aberto.
A exposição de motivos que justificava a criação do consulado-geral,
publicada nos jornais na época, causou controvérsia por imprecisões
diplomáticas sobre as peculiaridades da disputa regional. Na consulta
realizada ao governo de Tel-Aviv sobre a abertura do consulado foi
afirmado que não seria objetada a criação de “uma seção consular” da
embaixada, o que contrariava a decisão anunciada pelo governo de
Juscelino Kubitschek, que talvez tenha motivado a não designação de
pessoal para o posto. Indagado sobre as razões que levaram o governo
brasileiro a abrir o consulado-geral em Jerusalém, Macedo Soares disse
que foi “por razões espirituais, políticas e diplomáticas”. Mencionou
também que “a existência de uma repartição consular brasileira”
significava “a presença de milhões de católicos brasileiros na Cidade
Santa”, que “a principal missão dos consulados é a defesa e o amparo de
brasileiros que se acham no exterior” e, no caso de Israel, “de
peregrinos que se encontravam naquela cidade”.
A recriação do consulado-geral em Jerusalém poderia ser uma solução para
evitar uma mudança dramática de diretriz de política externa de mais de
60 anos. Essa solução - amparada em precedente histórico - seria até
melhor, do ponto de vista brasileiro, do que outras soluções, como a
criação de um escritório comercial em Jerusalém, a exemplo do que fez a
Austrália. Ao anunciar o estabelecimento do escritório, o
primeiro-ministro australiano manteve a coerência de sua administração e
confirmou sua posição favorável à política de dois Estados. Apresentada de maneira apropriada, o governo israelense e a comunidade
evangélica entenderiam a decisão do Brasil, coerente com sua tradicional
atitude, compreendendo as dificuldades internas para alterar uma
política tão consolidada e evitar o isolamento internacional.
Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio exterior - O Estado de S. Paulo