Lula teve alguns
momentos de sinceridade na última semana. Disse que tanto ele como Dilma estavam no volume
morto e que o PT só pensa em cargos. Ele se referiu ao volume morto num
contexto de análise de pesquisas, que indicavam a rejeição ao governo e ao PT. Nesse sentido, volume morto significa
estar na última reserva eleitoral. No entanto, o termo deve ser visto de
forma mais ampla.
Estar por baixo nas pesquisas nem
sempre significa um desastre. Em alguns momentos da História, o próprio PT, e
disso me lembro bem, não alcançava 10% dos eleitores, mas tinha esperança, e os
índices não abalavam sua autoestima. O
volume morto em que se meteu agora é diferente. Ele
indica escassez da água de beber e incapacidade energética, depois de 12
anos de governo. Foi um tempo em que, sob muitos aspectos, andamos para trás.
Há
perdas na economia, na credibilidade do sistema político, todo um projeto fracassado acabou
jogando o país também num volume morto. Há chuvas esparsas como a Operação Lava-Jato, mas
elas caem muito longe dos reservatórios do PT. Tão
longe que ajudam a ressecar ainda mais o terreno
lodoso que ainda abastece as torneiras petistas.
Lula pode estar apenas querendo
se distanciar de Dilma e do PT. Ele a inventou como estadista e agora bate em
retirada. E
quanto ao PT, quem vai rebater suas críticas e arriscar o emprego e a carreira? Pois é esse o combustível de seus quadros.
Há cerca
de uma década escrevi um artigo intitulado “Flores
para os mortos”, no qual afirmava que uma experiência com pretensão de
marcar a História terminava, melancolicamente, numa delegacia de polícia. Foi
muito divulgado, e na internet usaram até fundo musical para compartilhá-lo. O
título é inspirado numa cena do filme de Luis Buñuel, a florista gritando na
noite: “Flores, flores para os mortos”.
Devo ter recebido muitas críticas
dos petistas.
Passados dez anos e algumas portas de delegacia, hoje é
o próprio líder que admite a incapacidade política de Dilma e a voracidade dos seus
seguidores. Olho para esse tempo
com melancolia. Ao chegar ao Brasil, os tempos do exílio não pesavam tanto.
O
futuro era tão interessante, o processo de redemocratização tão promissor que
compensavam o passado recente. Agora, não. O futuro é mais sombrio
porque a tentativa de mudança foi uma fraude, a própria palavra mudança tornou-se suspeita:
poucos creem que o sistema político possa realizar os anseios sociais. Lula fala em esperança para sair do volume
morto. Mas que esperança pode arrancá-los do volume morto quando o próprio
líder, apesar de sua sinceridade ocasional, não consegue vislumbrar uma saída?
Lula repete aquela frase atribuída ao técnico Yustrich: “Eu ganho, nós empatamos, vocês perdem”. Lendo no avião uma entrevista do escritor argelino Kamel Daoud, muito criticado pelos muçulmanos mais radicais do seu país. O título da entrevista é: “Nem me exilar, nem me curvar”.
Lula repete aquela frase atribuída ao técnico Yustrich: “Eu ganho, nós empatamos, vocês perdem”. Lendo no avião uma entrevista do escritor argelino Kamel Daoud, muito criticado pelos muçulmanos mais radicais do seu país. O título da entrevista é: “Nem me exilar, nem me curvar”.
Uma de
suas respostas me tocou fundo. O repórter perguntou: “Como você, depois de viver anos ligado aos Irmãos Muçulmanos,
conseguiu escapar desse mundo?”. “Leitura, muita leitura”, respondeu Kamel
Daoud.
O resto
da viagem fiquei pensando como teria sido bom para a esquerda brasileira leitura, muita leitura,
para poder escapar da sua própria miopia ideológica. Na verdade, ela
mastigou conceitos antigos, cultivou políticas retrógradas, como essa de apoiar
o chavismo, e se perdeu nos escaninhos dos cargos e empregos. Ela me lembra os
jovens do filme “O muro”. Um dos seus
ídolos acaba como porteiro de hotel, e é melancólica a cena em que os
admiradores o descobrem, paramentado, carregando malas.
Leitura, muita leitura, não
importa em que plataforma, talvez impedisse a esquerda de ver seu predestinado líder proletário
trabalhando como lobista de empreiteiras. Talvez nem se chamasse
mais de esquerda. Um dos mais ricos
petistas critica os outros por só pensarem na matéria. A realidade surpreendeu
todas as previsões da volta ao exílio, tornou-se uma espécie de pesadelo.
Tomara
que chova nos reservatórios adequados e as forças que caíram no volume morto
continuem por lá, fixadas na única esperança que lhes resta: sobreviver. O país precisa sair do volume morto,
reencontrar um nível de crescimento, credibilidade no seu sistema político.
Hoje o país é governado por um fantasma de bicicleta e um
partido de míseros oportunistas, segundo seu próprio líder, chamado de Brahma pelas empreiteiras.
Fonte: Fernando Gabeira – O Globo
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