Hebe
Mattos, Lilia Schwarcz, Laura de Mello e Souza e João José Reis, entre
tantos outros, participam do movimento Historiadores pela Democracia,
que foi ao Alvorada prestar solidariedade à presidente afastada. Eles
anunciam um livro coletivo intitulado "O Golpe de 2016: a Força do
Passado". Todos os cidadãos têm o direito de se manifestar sobre a cena
nacional. A iniciativa, porém, viola os princípios que regem o ofício do
historiador.
Não se tece a narrativa histórica em bando, sob uma
baliza política coletiva. O historiador indaga o passado, formulando
hipóteses que orientam a investigação e reconstrução da trama dos
eventos. Do diálogo entre narrativas historiográficas distintas nasce
alguma luz. Mas não é luz que eles buscam. Historiadores pela
Democracia é um nome de vocação totalitária, cuja implicação lógica é
excluir os demais historiadores do universo democrático. O projeto do
movimento é desenrolar o fio da história a partir da conclusão. Eles
decidiram (ou, de fato, o Partido decidiu) que o impeachment é "golpe"
– e isso, antes mesmo da deliberação final do Senado. Querem inscrever
nos livros de história a versão útil para o Partido. Não é história, mas
propaganda política coberta pelo manto da autoridade historiográfica.
Democracia,
abusa-se da palavra. A Associação Juízes pela Democracia (AJD)
define-se como entidade consagrada à "defesa intransigente dos valores
do Estado Democrático de Direito", mas escancara sua natureza
político-partidária ao adotar ritualmente a expressão "presidenta da
República", tornada compulsória por Dilma Rousseff. Nomear é
desnudar-se: a AJD está dizendo que os demais juízes transigem na defesa
do Estado Democrático de Direito –ou seja, que seriam inaptos para
exercer a magistratura.
Efetivamente, a inaptidão está em outro
lugar. Não se fazem sentenças em bando: a magistratura exige a
independência do juiz, que aplica a lei segundo a interpretação de sua
consciência. Como conciliar tal exigência com a lealdade política à AJD?
A pergunta nada tem de retórica, pois remete ao problema da apropriada
revisão judicial. Como garantir a proteção dos direitos de um acusado
que, por acaso, depara-se na instância inferior e também na superior com
juízes pertencentes à AJD?
Só um passo lateral separa o alinhamento ideológico do alinhamento corporativo.
A
Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar) gerencia uma operação de
assédio judicial contra cinco jornalistas da "Gazeta do Povo" que
ousaram publicar reportagem sobre os salários e benefícios
extraordinários dos juízes estaduais. A entidade estimulou os
magistrados a ingressarem com dezenas de processos quase idênticos, nas
mais diversas cidades, oferecendo um modelo de ações individuais por
danos morais. Há dois meses, os cinco acusados deslocam-se diariamente
por centenas de quilômetros para comparecer às audiências. Na prática,
impedidos de trabalhar e cuidar de seus afazeres pessoais, já cumprem
penas tácitas de privação de liberdade.
Corporação é corporação. A
ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, negou um recurso do
jornal para suspender as ações, recusando o argumento óbvio de que os
juízes paranaenses carecem de isenção para julgar a causa corporativa
dos juízes paranaenses. Para todos os efeitos, ela fingiu não entender
que está em curso um sequestro do sistema de justiça com as finalidades
de intimidar a imprensa e enquistar os privilégios de seus pares numa
cápsula de aço.
Na Alemanha, em 1931, o Partido Nazista encorajou
a publicação da obra "Cem Autores contra Einstein", uma coleção de
críticas à teoria da relatividade oriundas da velha guarda acadêmica. A
réplica de Einstein: "Por que cem autores? Se eu estava errado, um seria
o suficiente!". Na história e no direito, como na ciência, a razão de
um argumento não deriva do número de seus apoiadores.
Fonte: Demétrio Magnoli - Folha de São Paulo
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