As
operações de combate ao trabalho escravo não "libertam" ou "resgatam"
ninguém, não
ajudam os trabalhadores pobres e consideram escravos gente que ganha muito mais
que a média dos brasileiros
Mais
uma grife de roupas foi acusada de utilizar trabalho escravo no Brasil. Segundo uma reportagem da BBC publicada nesta segunda-feira,
auditores do Ministério do Trabalho flagraram cinco
bolivianos, entre eles uma adolescente de 14 anos, mantidos como escravos
numa oficina na zona leste de São Paulo que produzia para a grife Brooksfield.
Infelizmente
a BBC só reproduziu
a desinformação que ativistas do combate ao trabalho escravo costumam difundir
sobre o assunto. Abaixo, mostro seis esclarecimentos que a
reportagem poderia ter feito. O leitor me desculpe o tamanho do texto – o
assunto é relevante e merece ser explicado em detalhe.
1.
Não é escravidão
No caso desta semana e na maioria dos que vão aos
jornais, a
situação flagrada pelos fiscais não tinha nada do que o povo, a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) ou as leis da maioria
dos países entendem por escravidão. Não
havia pessoas acorrentadas, ameaçadas, trabalhando para pagar uma dívida com os
patrões ou para recuperar um documento.
Por que, então, dizem
que é trabalho escravo? No Brasil, uma mudança no Código
Penal afrouxou enormemente o conceito de trabalho escravo. Passou a incluir
a jornada exaustiva e condições degradantes como critérios para caracterização.
Parece um detalhe, mas a mudança na lei juntou crimes
diferentes no mesmo balaio. Patrões que ofereciam alojamentos sem a
distância adequada entre as camas passaram a responder pelo mesmo crime que
quem torturava os trabalhadores com ferro de marcar gado ou os mantinha em
cativeiro.
A própria OIT esclarece, num relatório de 2005, que não se deve confundir
trabalho ruim com escravidão. “O trabalho
forçado não pode simplesmente ser equiparado a baixos salários ou a más
condições de trabalho. Tampouco cobre situações de mera necessidade econômica,
por exemplo, quando um trabalhador não tem condições de deixar um posto de
trabalho devido à escassez, real ou suposta, de alternativas de emprego.”
Os
bolivianos que produziam para a Brooksfield foram considerados escravos porque
não tinham carteira assinada ou férias e, segundo a BBC, “trabalhavam e dormiam com suas famílias em ambientes com cheiro forte,
onde os locais em que ficavam os vasos sanitários não tinham porta e camas eram
separadas de máquinas de costura por placas de madeira e plástico”. Era trabalho precário, mas não escravidão.
2.
Há “escravos” que ganham R$ 5 mil por mês
Como cabe ao auditor do trabalho decidir o que é
trabalho escravo, há
interpretações das mais extravagantes e ideológicas. Em 2013, a fiscalização encontrou vinte funcionários de uma
construtora de Belo Horizonte que tinham registro na carteira, recebiam
horas-extras e adicionais de produção. Um pedreiro disse que ganhava 5 mil por mês. Como não havia lençóis nos beliches do alojamento e os
banheiros estavam sujos, o fiscal
enquadrou a construtora como escravista.
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O
alojamento era, de fato, precário, mas muitos dos trabalhadores poderiam achar
que a remuneração compensava. Um salário de 5 mil reais, afinal, colocava o funcionário entre os 20%
de brasileiros mais ricos daquele ano. Como revelou a revista Exame, casos assim são comuns.
No
episódio desta semana, os imigrantes
ganhavam 6 reais por peça produzida. Se costuravam duas peças por hora (provavelmente produziam muito mais), ganhariam 12 reais por hora, 96 reais por
jornada de oito horas, ou 2100 reais por mês. Isso é mais do que ganham 72%
dos brasileiros, que sobrevivem com até dois salários mínimos.
3.
Não há “resgate” ou “libertação” de trabalhadores
O mito do
“trabalho análogo à escravidão” vem
sendo cultivado por auditores do trabalho, procuradores, jornalistas e
ativistas bem-intencionados. Eles fazem questão de esclarecer que a servidão
moderna se define por condições precárias de trabalho e tem pouco da escravidão
tradicional. Mas utilizam termos e imagens que só fazem sentido quando se
referem à restrição da liberdade – como imagens de correntes e termos
como “resgate” ou “libertação”.
Os trabalhadores costumam
considerar um absurdo serem chamados de escravos. Sem ninguém pedir, os fiscais quebram contratos de trabalho, calculam multas
enormes para as empresas e mandam os trabalhadores para hotéis ou de volta para
suas cidades de origem. “O
primeiro contato com a vítima geralmente é de resistência. Ela não se enxerga
como trabalhador forçado e se incomoda com o rótulo”, me disse, no ano
passado, Luiz Machado, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado
da OIT. “Quando explicamos as violações
dos direitos trabalhistas, eles ficam agradecidos, pois ganham pagamentos de
direitos, seguro-desemprego especial para resgatados e prioridade na fila do
Bolsa Família”.
4.
As operações não ajudam os trabalhadores
Quando a indenização acaba, os “escravos libertados” descobrem que os
fiscais os transformaram em desempregados dependentes de programas
assistenciais. Precisam começar tudo de novo e sair à procura de um
emprego. Geralmente encontram trabalhos bem parecidos com aqueles dos quais
foram “resgatados”. “Quando a polícia vai
embora, os bolivianos vão para outras oficinas onde a condição é a mesma”,
me contou, numa entrevista, o boliviano Luis Vásquez, líder da comunidade
boliviana em São Paulo.
Os
próprios ativistas admitem o problema da reescravização. “O trabalhador volta para casa com três meses de seguro-desemprego no
bolso, mais verbas rescisórias, mas assim que o dinheiro acaba, ele volta a
migrar e acaba escravizado de novo”, disse, em outra reportagem da BBC, o
fundador da ONG Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto.
5.
As operações eliminam alternativas de quem já tem poucas
Numa
coisa os ativistas do combate ao trabalho degradante estão certos: milhões de pessoas têm empregos terríveis
no Brasil. Trabalham amontoadas em cômodos sem
janelas; cumprem uma jornada tão alta que mal veem a família. Diante de
situações assim, tudo o que não se deve fazer é diminuir as opções disponíveis
a eles.
O
que prejudica o trabalhador não é a opção de trabalho que ele encontra, e sim a falta de opções. Os
operários das pequenas oficinas de roupas da zona leste de São Paulo se
submetem a condições ruins porque aquela é a melhor alternativa de que dispõem.
O que os torna vulneráveis não é a
empresa que os contratou, mas a ausência de mais empresas que os contratem.
E o que
as operações de combate ao trabalho escravo fazem é diminuir ainda mais essas
opções. “Quando a Polícia Federal
aparece, dá a impressão de que vai prender o Fernandinho Beira-Mar”, diz o
boliviano Luiz Vásquez. “Um monte de
viaturas e policiais para prender o coitado do dono da oficina. Ele é multado
por tudo o que você pode imaginar. Essa história tem levado muitos
empreendedores à falência”.
Não é um
grande incentivo à abertura de fábricas no Brasil ter a possibilidade de ver a marca manchada por falsas acusações de
trabalho escravo. As bem-intencionadas operações prejudicam a segurança
jurídica e dão um empurrão a mais para fábricas se mudarem para a China ou o
Paraguai. Com menos vagas à disposição no Brasil, os trabalhadores ficam ainda
mais vulneráveis. Quem realmente se
preocupa com os pobres precisa, pelo amor de Deus, evitar
que as empresas tenham medo de contratar ou subcontratar trabalhadores no
Brasil. Ações menos sensacionalistas, como criar um pacto entre as oficinas
para seguirem condições mínimas, sob pena de multa, ajudariam muito mais do que
aterrorizar grifes internacionais interessadas em produzir no Brasil.
Outra
opção é ajudar os imigrantes a encontrar vagas melhores e ter documentação para
se candidatar a elas. Em São Paulo, o Ministério Público do Trabalhou fez um
excelente trabalho ao criar um centro onde os imigrantes podem regularizar a
residência no Brasil, tirar carteira de trabalho e abrir uma conta corrente.
Documentados, ficam aptos a trabalhos menos precários. “Em diversos países e momentos da história, o subemprego foi o meio
pelo qual as minorias, os migrantes e os menos favorecidos entraram no mercado
de trabalho e começaram a ascender socialmente”, diz o cientista político
Diogo Costa. “Proibir o emprego ruim
acaba funcionando como uma barreira de exclusão dos menos qualificados.”
6.
Coibir as más condições é impor preferências da elite aos trabalhadores pobres
Imagine
que você acabou de se mudar para um país estranho e está sem dinheiro, sem
qualificação ou mesmo conhecimento da língua local – e ainda tem três filhos
famintos nas costas. De repente aparecem
duas opções de trabalho em oficinas de costura. A primeira oficina,
ensolarada e espaçosa, oferece um salário de 10 reais por hora. A segunda, sem janelas e com uma
jornada maior, paga 12 reais. Na hora do aperto, você
não se dará ao luxo de perder 20% da remuneração. Como quer acumular o
máximo possível e voltar para o seu país, você trabalharia mais, muito mais que
oito horas por dia.
O combate ao trabalho degradante
se baseia na ideia de que as condições ruins são fruto da escolha dos patrões. Mas a escolha não é só deles. Ao
decidir ingressar num emprego, uma
pessoa avalia todos os tipos de compensação – o salário, o conforto, a jornada.
Quem ganha bem pode se dar ao luxo de descontar parte do salário em conforto e
jornada menor. Mas se a renda e a produtividade são baixas, e a melhor
alternativa de trabalho não é o suficiente para pagar as contas, provavelmente
ele abrirá mão do conforto para extrair o máximo da remuneração em forma de
salário. “Isso significa que a combinação
de compensações é determinada pelas preferências dos empregados (até o limite
da sua produtividade), e não pelas preferências de corporações multinacionais
ou empresas terceirizadas”, diz o economista Benjamin Powell, autor do
livro Out of Poverty: Sweatshops in the Global Economy.
Powell comprovou essa opção
entrevistando operários da Guatemala. Ele conversou justamente com quem trabalhava em
fábricas de roupa que motivaram escândalos de trabalho degradante, em
reportagens da TV americana. Descobriu que quase todos os trabalhadores não
topariam trocar parte do salário por melhores condições:
Você
aceitaria ter um salário menor se o seu empregador…
|
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SIM
|
NÃO
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tornasse
as condições de trabalho mais agradáveis?
|
8,6%
|
91,4%
|
reduzisse
o número de horas de trabalho?
|
10%
|
90%
|
aumentasse
o horário de almoço?
|
4,3%
|
95,7%
|
fornecesse
plano de saúde?
|
14,3%
|
85,7%
|
desse
férias remuneradas?
|
18,6%
|
81,4%
|
O
ensaísta Nassim Nicholas Taleb chama de “filantropia
de araque” a atividade de “ajudar as
pessoas de uma forma visível e sensacional, sem levar em conta o cemitério
oculto de consequências invisíveis”. O
exemplo preferido de Taleb são as causas trabalhistas.
“Você nota as pessoas cujos empregos estão mais seguros e atribui
benefícios sociais a essas medidas. Você não percebe o efeito naqueles que
ficarão desempregados, já que as medidas vão reduzir a oferta de empregos. Em
alguns casos, as consequências positivas de uma ação vão beneficiar
imediatamente os políticos e os humanitários de araque, enquanto as negativas
levarão um bom tempo para aparecer – e talvez nunca sejam perceptíveis.” Não
há definição melhor para o combate ao “trabalho
análogo à escravidão” no Brasil.
@lnarloch
*Para
quem se interessar, dedico a este tema um capítulo do Guia Politicamente
Incorreto da Economia Brasileira.
Fonte: Blog Caçador de mitos – Leandro Narloch
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