Um presidente autoritário não é o mesmo que um regime autoritário.
O primeiro pode até levar ao segundo, mas o percurso exige ingredientes especiais. Na Turquia, demandou anos de uma insurgência separatista. Não somos a Turquia. As vozes que, em nome do espantalho do “fascismo”, desceram às trincheiras da “resistência” evidenciam profunda ignorância do significado da democracia. “A tristeza tem que se transformar em resistência”, tuitou Manuela D’Ávila na hora da proclamação do resultado, pronunciando a senha clássica da política sectária.
Em 2010, batido por Dilma, Serra falou em “resistência”. Mas resistir a um governo escolhido em eleições livres equivale a negar a soberania popular. Haddad quase seguiu pela mesma trilha, negando o telefonema simbólico de congratulações que o derrotado deve ao vitorioso, mas corrigiu-se num tuíte, no dia seguinte. Na direção oposta, Guilherme Boulos, ícone de um PSOL que retorna ao berço lulista, conclamou à “resistência” —e foi imitado pelo pobre Eduardo Suplicy. Serra falava só para emitir sons. Ele não pretendia “resistir”, mas apenas reativar sua crônica guerra interna pela legenda do PSDB na eleição seguinte.
Já o lulismo e seus satélites parecem decididos a cavar trincheiras. Gleisi Hoffmann atribuiu a Haddad a função de articulador de uma “frente de resistência” e chegou perto de negar a legitimidade do eleito. Ela classificou os resultados eleitorais como um “fato” (alguém duvida disso?), mas qualificou as eleições como “processo eivado de vícios e de fraudes” que “consolidam” o “golpe” do impeachment. Daí ao “Fora Bolsonaro!”, o passo é curto.
Ao lado de “resistência”, a palavra “fascismo” risca o céu. Fascismo, porém, é um fenômeno definido por traços políticos que não estão presentes no bolsonarismo: um partido fascista, a organização de milícias, um modelo de Estado corporativo. O abuso do termo, dirigido como insulto aos que não se alinham com o PT, esgarça o tecido do debate público. A polarização resultante forma o ambiente propício para a coesão da maioria em torno de Bolsonaro.
A pulsão autoritária do novo presidente testará nossas instituições e leis. A vigilância é um dever democrático de parlamentares, partidos, procuradores, magistrados, bem como da imprensa e das organizações da sociedade civil. Face a ameaças definidas às garantias, direitos e liberdades, será o caso de exercitar topicamente a resistência. Mas a “resistência” em geral e a tal “frente de resistência” em particular não passam de versão atualizada da narrativa do “golpe parlamentar” que tanto impulsionou a candidatura de Bolsonaro. Não é casual, nem sem motivo, que partidos como o PDT, o PSB e o PPS resolveram excluir o PT da articulação de um bloco parlamentar oposicionista.
Gleisi, Boulos e as demais vozes histéricas das trincheiras candidatam-se, involuntariamente, ao cargo de ministro da Propaganda do governo Bolsonaro. O chamado à “resistência” ao “fascismo”, antes ainda da posse, só comove os bolsões fanatizados da militância de esquerda. Fora desse círculo de ferro, até mesmo os eleitores que votaram contra Bolsonaro sentem nisso o gosto acre da ruptura da regra do jogo. A farsa da candidatura de Lula cartografou o caminho de Bolsonaro à Presidência. A campanha da “resistência”, um imprevisto terceiro turno, pode proporcionar a Bolsonaro o triunfo ideológico que a campanha eleitoral não lhe deu.
Parlamentares falam o que lhes dá na telha. Candidatos tendem a explodir as mais elementares barreiras éticas. Nas duas condições, Bolsonaro destacou-se como caso extremo de violência retórica. Agora, no Planalto, terá que se acostumar com a caixinha da democracia. Se tudo der certo, ele sofrerá mais que nós. Se der errado, hipótese que nunca deve ser descartada, restará a resistência. Sem aspas e sem demagogia.
Demétrio Magnoli, sociólogo, doutor em geografia humana pela USP
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