Moro cruza fronteiras da ética institucional e compromete a independência e a imagem de imparcialidade do Judiciário
O
juiz Sérgio Moro foi alçado, por nossa conta e risco, a um patamar
acima do bem e do mal. Suas ações e palavras passaram a ser lidas pelo
signo da virtude, sobretudo da coragem, da honestidade e do heroísmo.
Manias de sacralização não terminam bem na história democrática, nem à
esquerda nem à direita; nem para o sacralizado e muito menos para o
sacralizador. A aclamação deixa a visão nublada, interdita a crítica e
confere uma licença para agir que escapa aos canais ordinários de
prestação de contas. Permitimos que Moro preste contas apenas a sua
consciência, não às instituições de controle. E ele soube se valer dessa
onda redentora que lhe vestiu o manto da infalibilidade.
O
Judiciário e parte da sociedade têm conferido aos atos de Moro um selo
de integridade presumida. Questão de caráter, não de legalidade. Quando
liberou sigilo de interceptações telefônicas de modo ilegal; quando
ordenou condução coercitiva espetaculosa de modo ilegal; quando se
insubordinou a decisão de desembargador e, num domingo de férias,
telefonou para a Polícia Federal, articulou com o presidente do tribunal
e emitiu despacho à distância; ou quando liberou delação premiada de
nenhum valor probatório, mas de grande octanagem política dias antes da
eleição, atos com tempo bem calculado, engolimos suas explicações
professorais de bolso. [quando orForam variações da explicação ao STF, a quem
pediu “respeitosas escusas”: “Não teve por objetivo gerar fato
político-partidário, polêmicas ou conflitos”.
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Nesse
regime de “respeitosas escusas”, Moro abraçou uma excêntrica ética da
imparcialidade judicial, a ética da “la garantía soy yo”, ou do
“acredite em mim”. Decisões que pareceriam extravagantes na caneta de
muito juiz, se proferidas por Moro passam a ser percebidas como
instrumentos para o bem, não importam os meios. Ao aceitar convite para
ser ministro, Moro ajudou a fechar a narrativa do juiz partidário,
dentro do script que ele mesmo havia imaginado, ao dizer que assumir
cargo político afetaria a credibilidade de seu trabalho. Mas nos
ensinou, em mais uma de suas explicações professorais, que este é um
cargo “predominantemente técnico, não político”.
Não
bastou a Moro aceitar o convite. Em vez de se exonerar, resolveu pedir
férias que “permitirão que inicie as preparações para a transição de
governo”. Lembremos que Moro de férias é um perigo: pode suspender o
descanso e reativar sua jurisdição à distância em caso de urgência na
Lava Jato. Mas o problema maior é outro. Não será simples ao Judiciário recuperar-se do dano que Moro lhe inflige, mas talvez a magistocracia não se preocupe com isso.
Seguiu-se
um capítulo digno do Febejapá (o Festival de Barbaridades Judiciais que
Assolam o País): a própria Justiça Federal organizou, em sua sede,
entrevista coletiva para o juiz Moro (em férias) falar na condição do
ministro Moro (do time de transição). Moro colocou-se na posição de
fiador do novo governo ao declarar que, entre as razões para aceitar o
convite, estava a percepção geral de que o governo não daria certo.
A
necessidade de superministros com superpoderes é inversamente
proporcional à confiança que Bolsonaro desperta no mercado internacional
e na diplomacia ou a seu apreço pela lei. A composição do ministério
parece se orientar pela redução de danos. Moro pode ajudar nessa tarefa,
mas precisa aperfeiçoar sua noção de “dano”: quando declarou que
“frases infelizes” de Bolsonaro não serão “políticas de governo” e que
Bolsonaro “parece moderado” nas conversas, afirma que frases são
inofensivas. Frases de presidente já são atos: poderia dar atenção ao
que já acontece nas ruas, nas casas, nas salas de aula.
Movimentos
para “mudar tudo que está aí” foram encarnados, na história brasileira,
por personagens eleitos como Jânio Quadros e Fernando Collor (para não
falar dos não eleitos). A aposta em líderes infames para nos salvar da
infâmia coletiva não é ironia, mas tragédia. O raio higienizador, na
versão engravatada ou fardada, deu no que deu, mas o fenômeno tem
notável capacidade de reciclagem no tempo. Chegou a vez da versão
togada, a ser conduzida pelo mais recente príncipe da magistocracia, que
ignora a velha corrupção institucional sob as barbas da lei (que, entre
outras, fura o teto constitucional para se manter no 0,1% mais alto da
pirâmide social brasileira). Não é tragédia, mas farsa.
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