O Estado de S. Paulo
Fim de isolamento com mortos de 9 Boeings e corpos na rua? Teich e governadores não farão
O Brasil ainda não chegou na fase de “caminhões do Exército
transportando corpos pelas ruas”, como advertia o agora ex-ministro Luiz
Henrique Mandetta, mas já exibe cenas horripilantes de caminhões
frigoríficos à saída de hospitais em Manaus para evitar outras cenas
horripilantes, de corpos e pacientes, lado a lado, pelos corredores.
Preparem suas almas e estômagos, porque o Brasil não é uma bolha e essas
imagens vão se repetir.
Por ora, alternam-se números da realidade com imagens da realidade
paralela em que habitam milhões de brasileiros e o presidente da
República. São mais de 2 milhões de contaminados e 150 mil mortos no
mundo, mais de 33 mil e 2 mil no Brasil, mas incautos amontoam-se pelas
ruas, sem máscara, cuidado e medo. “Indo para o matadouro”, definiu a
jornalista Monica Waldvogel.
Na mesma reunião com Bolsonaro e ministros em que falou dos “caminhões
do Exército”, Mandetta comparou: se morressem mil pessoas, seria o
correspondente à queda de quatro Boeings. Logo, hoje já seriam nove. Em
frente ao aeroporto de Congonhas, o Memorial 17 de julho lembra os 199
mortos do voo TAM 3054, em 2007, meses depois que um Legacy se chocou no
ar com o Gol 1907, deixando 154 vítimas. Foram os dois maiores
acidentes aéreos brasileiros, com grande comoção nacional. Hoje, a
Covid-19 já faz 2.347 mortos e famílias destroçadas, quase 12 vezes que
em cada acidente, num só mês.
E o mundo parou (dizem que nunca mais voltou a ser o mesmo) naquele 11
de Setembro em que ataques terroristas fizeram 3 mil mortos em Nova
York. Pois o terrorista coronavírus agora mata mais de 2 mil por dia –
por dia! As vítimas já beiram 15 mil em NY e 35 mil na maior potência do
mundo. Quantas Torres Gêmeas dá isso? E que mundo sairá dessa pandemia,
que não tem ideologia, religião, raça e não poupa ricos e pobres?
No Brasil, como nos EUA, o coronavírus atacou “por cima”, os que podiam
passear pelo mundo, e chega aos “de baixo”, que mal têm onde morar. Se
em Nova York o maior índice de mortos é de negros e pobres, o que prever
quando a Covid-19 sair dos bairros elegantes e se espraiar por
periferias e favelas? E já saiu, está se espraiando. E quando a pandemia deixar seu rastro macabro na Ásia, Europa e EUA,
sossegar no resto das Américas e desabar na África?
Não haverá caminhões
do Exército nem frigoríficos suficientes e o continente pode se
transformar num imenso Guayaquil, cidade do Equador com cadáveres pelas
ruas.
Chocante? Sim, a realidade é chocante e quem ainda está sonhando precisa
de uma chacoalhada. E é aí que entram as dúvidas sobre o novo ministro
da Saúde, Nelson Teich. Com belo currículo e respeito dos pares, ele já
defendeu publicamente o isolamento como principal arma para evitar uma
tragédia maior, mas assumiu o ministério prometendo “alinhamento total”
com um presidente que confronta, petulantemente, o isolamento.
Na conversa decisiva, Teich deixou boa impressão nos presentes, mas
dúvidas na cabeça conturbada do presidente: seria capaz de transformar
os achismos presidenciais em política de saúde? O mundo inteiro está
aflito com os efeitos calamitosos da pandemia nas empresas e nos
empregos, mas, como médico, gestor e especialista em saúde e economia, é
improvável que o novo ministro jogue fora sua biografia assumindo o
“risco” de um chefe eventual.
A melhor aposta está na senha do próprio presidente para Teich na posse:
“Junte eu e o Mandetta e divida por dois”. Leia-se: o governo vai
relaxar o isolamento, mas o ministro não topa loucuras e planeja um
pouso controlado. Mesmo que topasse, governadores, Supremo e Congresso
barrariam. Oremos!
[pela Constituição vigente, que se for desrespeitada por qualquer um dos Poderes, será o fim do decantado 'estado democrático de direito', com todas as consequências resultantes, os três Poderes da União são harmônicos e independentes.
Cada um, na sua seara - estabelecida pela Constituição Federal - é independente e harmônico em relação aos demais (repetindo: na sua área constitucional de competência nenhum Poder é submisso, nem superior, a outro Poder.
O próprio presidente do Supremo em decisão (íntegra aqui) deixou claro que as ações de Saúde precisam ser capitaneadas pelo Ministério da Saúde - que até o presente momento é um órgão integrante do organograma do Poder Executivo Federal.
Governadores são meros coadjuvantes - se fosse criada uma junta de 3 ou mesmo 5 governadores para administrar as ações contra a pandemia, as vaidades implodiriam à Junta.]
Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo
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