Ignorância atrevida - Carlos Alberto Sardenberg
A crise, qualquer crise, pode ser favorável aos governantes de
plantão. E um problema para as oposições. Neste momento, mundo afora,
todo dia a gente vê as autoridades na televisão anunciando medidas,
recomendando comportamentos, pedindo apoio para o sacrifício necessário.
Já as lideranças de oposição quase desaparecem da mídia. Ficam até
constrangidas: criticar neste momento?
Mas dada essa regra geral – o governante sai em vantagem no momento
crítico – surgem as diferenças. Alguns crescem, como o primeiro-ministro
da Itália, Giuseppe Conte. Ele chegou ao posto em junho de 2018, numa
daquelas situações típicas da política italiana: um arranjo provisório
diante de um impasse entre partidos. Nunca tinha sido político, estava como que tomando conta do posto. Cresceu na crise do coronavírus. Os governantes regionais do norte da
Itália fracassaram, mas Conte foi o primeiro na Europa a decretar o
confinamento, assumindo os riscos com um discurso firme. Tornou-se uma
liderança europeia, ao propor medidas de combate às crises sanitária e
econômica.
E nem precisamos ir longe. O médico Luiz Henrique Mandetta é ortopedista, não infectologista ou epidemiologista. Não passava de um político regional. Hoje, tem mais de 75% de aprovação popular e talvez até mais nos meios políticos. [tal aprovação é mais resultado de uma política, profissionalmente dirigida, de tudo que for contra o Presidente da República merece elogios.]
Agiu como manda o manual: assumiu a liderança e os riscos, soube encontrar especialistas aos quais deu autonomia e nos quais confiou.
Fernando Henrique Cardoso, num livro sobre sua carreira, chamou-se “presidente acidental”. O Ministério da Fazenda caiu nas suas mãos como um limão azedo e dali ele tirou a limonada do Plano Real, sem ter qualquer especialidade em economia.
Conte e Mandetta também são líderes acidentais.
[somos compelidos a admitir que o presidente Bolsonaro vacilou quando optou pela escaramuça com inimigos que só crescem devido a atenção, ainda que belicosa, que recebem do Presidente da República.
O momento era de concentrar esforços no combate ao coronavírus, falar menos, evitar entrevistas desnecessárias e improvisadas e no instante em que ideias suas para combater a doença fossem contestadas pelo ainda ministro, buscar fundamentação técnica junto a outros médicos e após seu entendimento estar devida e tecnicamente fundamentado, convocar o ministro Mandetta - não pela imprensa ou redes sociais - para ajuste da política.
Não fosse possível um acordo, exonerar o ministro - via DO, a forma legal de nomear/demitir no Serviço Público. Sua teimosia o levou a optar por permitir que o ministro descobrisse que tinha tudo a ganhar se tornando seu adversário, tanto que chegou ao ponto de confrontar sua autoridade e agora tem que demiti-lo, quanto mais rápido melhor, até mesmo para uma unificação de entendimentos e com os brasileiros torcendo para que o substituto de Mandetta unifique, não sirva aos intentos dos que pretendem ser oposição a Bolsonaro e não sabem como fazer.
O presidente Bolsonaro insiste em adestrar e municiar os que desejam lhe fazer oposição.]
Bolsonaro também é um presidente acidental, mas pelo lado negativo.
De anos de baixo clero, de repente tornou-se a alternativa aos desastres
do PT. Era completamente despreparado para o cargo, mas outros líderes
também chegaram assim aos seus postos. Nesses casos, a diferença entre o êxito e o fracasso está no tamanho
da ignorância. Alguns guardam um pouquinho de sabedoria, o suficiente
para saber que não entendem nada daquilo e que é melhor chamar gente que
entende. Bolsonaro fez isso na economia, quando outorgou poderes ao
ministro Paulo Guedes.
Mas tirante isso – e talvez o ministro Moro – Bolsonaro carrega
aquilo que nossas avós chamavam de “ignorância atrevida”. Ele acha que
entende de radares nas estradas, pontos na carteira de motorista,
cloroquina, índios, nióbio, coronavírus, como domar o Congresso e os
políticos. Para ele e seu pessoal mais próximo, aquecimento global,
pandemia, direitos humanos, atendimento aos pobres, a rede Globo e a
mídia em geral, óleo nas praias – tudo é uma conspiração de
esquerdistas, com a China comunista sempre por trás, às vezes a pobre
Venezuela ou “os estrangeiros”.
Parece tosco – e é tosco. Nessa circunstância, não se podia esperar
mesmo que ele entendesse o tamanho da crise de saúde. Por sorte,
surgiram lideranças localizadas, como Mandetta, e nos estados, como
muitos governadores e prefeitos. Mas com o presidente atrapalhando, isso
emperra as políticas nacionais de combate aos efeitos do coronavírus e
de preparação para a saída da crise.
Muitos governantes se atrasaram no reconhecimento da crise, mas
conseguiram dar a volta. Menos quatro: os ditadores da Bielorússia, do
Turquemenistão – aquele que manda tomar vodka contra o vírus – da
Nicarágua e Bolsonaro, o único eleito em um pleito democrático mas que
ele acha que foi fraudado. Sim, ele também acha que entende de sistema
de urnas eletrônicas. (Aliás, ele prometeu provas de que foi roubado no
primeiro turno e até agora nada. Assim como não mostra seus exames de
coronavírus).
Não tem como dar certo. A crise vai deixar mais mortos do que se
fosse administrada de modo mais competente. A recuperação econômica e
social será mais tardia e mais lenta. Dependemos da capacidade de
lideranças localizadas, parlamentares, governadores, prefeitos, e da
gente mesmo, sociedade e mídia séria e independente.[Artigo brilhante, verdades contundentes - raros exageros - que nos leva à recorrência, que também pode ser uma forma de ignorância atrevida: "Errar é humano, permanecer no erro é diabólico."]
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
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