Ruas vazias falam mais alto (por Mary Zaidan) - Blog do Noblat
Por Mary Zaidan
Nada melhor para o presidente do que a briga
O palco de encomenda – e infiltrados para tal não estão descartados –
é quebra-quebra, atiradores de pedras, destruição, gás lacrimogênio.
Nada melhor para o presidente do que a briga de rua para desanuviar
as tensões recentes provocadas pelos dois processos em curso na Suprema
Corte. Um sobre a sua confessa tentativa de interferir na Polícia
Federal, motivo da demissão do ex-juiz Sérgio Moro do Ministério da
Justiça, e outro, mais aflitivo, que esmiúça seus filhos, empresários e
políticos amigos unidos em redes de notícias falsas. E ainda pelo TSE,
que nessa semana inicia julgamento de impugnação da chapa que o elegeu
por motivo similar: o uso de dinheiro ilícito de empresas nessas redes
para fermentar mentiras.
Uma pancadaria entre torcidas permite ainda apontar os contras como
“terroristas”, o que fez e continuará fazendo Bolsonaro vibrar. Pode
até, nos delírios do presidente, dar um empurrão a uma sonhada
intervenção armada (militar ou não) em nome da ordem. A conceituação muito particular e avessa que o presidente faz de
liberdade, só válida para os seus apoiadores, e de democracia, que na
cartilha dele inclui desobediência civil, impedem o desdenho a tal
desvario. Muito menos o esforço para agradar as corporações militares,
em especial as polícias estaduais sob comando dos governadores, cuja
insubordinação já foi incentivada pelo presidente.
Soma-se à rota do perigo a obsessão por armar a população – “eu quero
todo mundo armado” – , que na semana passada teve um toque a mais no
reforço à milicianos, com a decisão do presidente de liberar ao público
fuzis 5.56 e 7.62, até então de uso exclusivo das Forças Armadas. Mais do que tudo, a guerra das ruas ajuda a embaçar o foco no ponto
que mais impacta negativamente o seu governo: o pouco caso com a
pandemia. Rechaçado até pelo ídolo Donald Trump, que condenou a forma de o
Brasil agir diante da multiplicação de infectados e mortos, Bolsonaro
sentiu os efeitos danosos do vírus. Não sob o país, mas no seu perfil no
Twitter, essa sim, sua verdadeira preocupação.
Depois de a Fundação Getúlio Vargas apontar ou aumento de críticas e a
queda seguidores devido ao coronavírus, Bolsonaro até tentou se
consertar na inauguração do primeiro hospital de campanha federal, em
Águas Lindas, Goiás. “Do fundo do coração, torço para que pouca gente
venha para cá, que é sinal de que não precisa de atendimento” . Pronto. Uma única e rápida menção ao flagelo que já matou mais de 35
mil brasileiros. Em seguida, voltou ao discurso de sempre: reabertura o
comércio, facilidades para importação de armas, renovação de carteira de
aviador, suspensão da troca de tacógrafos e de chip nas bombas de
combustível. Tudo, menos o essencial: o combate à pandemia.
Como se vê, há motivos de sobra para que as ruas em balbúrdia sejam desejadas pelo bolsonarismo. Não há espaço mais democrático do que as ruas. Elas foram
determinantes para alcançar o sufrágio universal, avançar na conquista
por direitos civis, liberdades de expressão e comportamento. Seu grito
derruba e forja governos, cria e destrói ditaduras, ceva guerras e paz. No Brasil, de estopim para o golpe militar de 1964 elas se vestiram
para a campanha pelas Diretas Já. Desiludidas, depuseram dois
presidentes da República eleitos pelo voto que motivara tanta luta. E
voltaram a falar alto nas jornadas de junho de 2013. A democracia está umbilicalmente atada às ruas. A causa é nobre,
urgente. Mas hoje, em nome do distanciamento social que a ciência e o
juízo exigem e contra os incitamentos à violência que só a Bolsonaro
servem, torço para que elas estejam vazias. É assim que a sua voz se
fortalece em tempos de pandemia e de perigosas provocações.
Mary Zaidan - Blog do Noblat - VEJA
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