Opinião
Na pandemia o uso da rede se expandiu, mas as liberdades se deterioram.
A internet, como apoteose de um processo iniciado com o telégrafo e o telefone, materializou a utopia de um mundo sem distâncias onde cada ser humano – o “animal que fala”, na definição de Aristóteles – pode, em tese, se comunicar instantaneamente com todos os outros ao toque de um botão. Mas na prática, segundo o monitoramento Freedom on the Net, do instituto Freedom House, a liberdade global na rede se deteriorou pelo 10.º ano consecutivo.
Na
pandemia as atividades humanas – comércio, educação, saúde, política,
socialização – se expandiram digitalmente. Mas agentes autoritários
(governamentais ou não) também aproveitaram a oportunidade para manipular
narrativas, censurar críticas e ampliar tecnologias de controle social,
despertando os temores mais sombrios de um futuro distópico.
A
pandemia serviu amplamente de pretexto para limitar o acesso à informação. “As
autoridades frequentemente bloquearam sites independentes de notícias e
aprisionaram indivíduos sob acusações espúrias de disseminar fake news”,
aponta o estudo. “Em muitos lugares, os próprios agentes do governo e seus
zelotas disseminaram informações falsas e enganosas.” Alguns Estados desligaram
a conectividade para grupos marginalizados, alargando e aprofundando divisões
digitais.
Sob
o mesmo pretexto, muitas autoridades também capilarizaram seus aparatos de
patrulha. Por meio da Inteligência Artificial, vigilância biométrica e
ferramentas de big data, agências de segurança, mas também empresas e
mesmo criminosos digitais ampliaram seu acesso a informações sensíveis, como
históricos médicos, padrões faciais e vocais e até códigos genéticos.
A
crise ainda acelerou a fragmentação da internet, com cada governo impondo suas
próprias regulamentações de modo a restringir o fluxo de informações entre as
fronteiras. Muitos manobraram mais ou menos incisivamente na direção de sua
própria “internet nacional”, outrora uma ambição restrita a autocracias como
Irã, Rússia e China.
A
China figurou pelo 6.º ano consecutivo como o ambiente digital menos livre do
mundo. Com a pandemia e a crise em Hong Kong, o Partido Comunista intensificou
sua parafernália de controle, como censura automatizada, vigilância high-tech e
detenções em massa. “Os agentes e a mídia governamental, apoiados por robôs e
trolls, promoveram a desinformação domesticamente e em campanhas ao redor do
mundo.”
A
Índia está entre os cinco países que mais retrocederam em 2020. A maior
democracia do mundo é líder em desativações da rede. No ano passado, pela
primeira vez, o governo derrubou a conexão em grandes cidades, em retaliação
aos protestos de minorias muçulmanas contra uma lei discriminatória. As
autoridades aumentaram as pressões sobre as mídias sociais pela remoção de
conteúdos críticos ao regime nacionalista hindu, e as evidências indicam um
aumento da espionagem contra ativistas, jornalistas e advogados de grupos
marginalizados.
Os EUA são o sétimo ambiente mais livre, mas regrediram pelo quarto ano consecutivo, seja por respostas desproporcionais a riscos genuínos apresentados por aplicativos nacionais e estrangeiros, seja pela sua evasão, quando não sabotagem, da cooperação internacional. “Como a covid-19 demonstrou, enfrentar os desafios de um mundo interconectado exige uma coordenação efetiva entre a esfera política e a sociedade civil”, alerta a Freedom House. Dada a natureza global da internet, “para questões relacionadas à competição, tributação e fluxo de informações transfonteiriço, a coordenação intergovernamental é plausivelmente mais eficaz do que a regulação ad hoc pelos Estados”.
A internet é um ativo inestimável para a democracia. Mas para que possa servir com todo o seu potencial à liberdade de expressão, ao engajamento comunitário e ao desenvolvimento econômico, Estados, corporações e sociedades civis precisam robustecer sua agenda para prover informação confiável e diversificada, proteger os direitos humanos da vigilância intrusiva e garantir o livre fluxo de informações contra a escalada do nacionalismo digital.
Opinião - O Estado de S. Paulo
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