Presidente envolveu País como não se via desde a 2.ª Guerra em assuntos de outra nação
Escrevo de Caracas, onde a disputa de poder entre oposição e o regime
de Nicolás Maduro atinge o clímax desde a tentativa de golpe contra o
então presidente Hugo Chávez em abril de 2002, que me trouxe à Venezuela
pela primeira de incontáveis vezes.
A rejeição do novo mandato de Maduro e o reconhecimento do governo
interino do presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, no mês
passado, coincidiram com o início do governo de Jair Bolsonaro, que
prometeu grandes mudanças na política externa brasileira.
O Brasil agora está envolvido como talvez nunca tenha estado nos
assuntos de outro país desde o envio dos “pracinhas” à Itália na 2.ª
Guerra. O governo brasileiro está apoiando a tentativa da oposição de
forçar a entrada de produtos de primeira necessidade em território
venezuelano, atropelando a recusa de Maduro. A montagem da estrutura de
armazenamento da ajuda humanitária em Roraima é a materialização de uma
nova postura do Brasil em relação aos dramas internos de outro país. Na
prática, trata-se da participação em uma estratégia de mudança de
regime.
Embora a nova política externa brasileira se alinhe, em quase tudo o
que é relevante, à americana,
o governo de Donald Trump parece
descontente com o alcance do engajamento de seu novo parceiro. Segundo
fontes em Washington ouvidas pela reportagem do Estado,
o governo
americano pressiona para que o Brasil garanta a entrada da ajuda pela
sua fronteira. Os militares brasileiros, no entanto, resistem a abrir caminho para
um confronto direto com os venezuelanos —
que seria desencadeado pela
invasão do território vizinho para a derrubada do cerco erguido por
ordem de Caracas. Entretanto, apesar de todos os ultimatos impostos
pelas autoridades americanas,
também não houve até aqui nenhuma
movimentação por parte dos Estados Unidos nesse sentido.
O regime chavista, inaugurado em janeiro de 1999, é longevo o
suficiente para ter atravessado o segundo mandato de Fernando Henrique
Cardoso, os dois de Luiz Inácio Lula da Silva, os oito anos somados de
Dilma Rousseff e Michel Temer e mais esse início de governo Bolsonaro. Nesse período,
o Brasil experimentou todas as opções possíveis com a
Venezuela — com exceção de uma intervenção militar.
Fernando Henrique
atuava como conselheiro de Chávez, que apesar da
verborragia ainda
seguia uma linha relativamente moderada. No último mês de seu governo,
em dezembro de 2002, FHC atendeu ao pedido do então presidente eleito
Lula de enviar um carregamento de combustível para Chávez fazer frente à
greve política da PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana, contra o
seu governo.
Lula apoiou Chávez de forma crescente e aberta, chegando a pedir voto
para ele na inauguração de uma ponte ligando os dois países sobre o Rio
Orinoco, em novembro de 2006, três semanas antes da eleição
presidencial na Venezuela. Nesse período, que se estendeu pelos governos
de Dilma, o Brasil era visto pela oposição venezuelana como um governo
hostil a ela e dócil aos chavistas. Quando Temer assumiu, voltou à política externa anterior, que seguia a
linha tradicional do Brasil, de não ingerência unilateral em outros
países. O que não o impediu de evocar os princípios democráticos do
Mercosul para suspender a Venezuela, como FHC havia ameaçado fazer em
1996, para evitar um golpe no Paraguai.
Agora, o Brasil sai de novo do marco dos princípios e acordos, para
exercer uma liderança e uma responsabilidade regionais conforme suas
preferências e visões circunstanciais.
Não está necessariamente errado. É
apenas novo. E terá consequências. Parafraseando o Pequeno Príncipe, um
país se torna eternamente responsável pelo regime que ele muda.
O Estado de S.Paulo