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sábado, 15 de abril de 2023

Políticas semelhantes, cenários bem diferentes - Alon Feuerwerker

Análise Política

Toda tentativa de justificar política exterior com base em princípios tão bonitos quanto absolutos costuma terminar em impasse, quando não em comédia; ou tragédia.  
Pois os interesses frios sempre acabam prevalecendo, restando aos ideólogos dar aquela maquiada básica para salvar a face
Um exemplo recente é o conflito da Ucrânia.

Dois princípios nas relações internacionais são o direito à autodeterminação e o direito à integridade territorial. No conflito da hora, Kiev esgrime com o segundo, mas Moscou argumenta com o primeiro para as repúblicas do Donbass e as regiões sulistas do vizinho, Crimeia inclusive, que decidiram [autodeterminação.] se desligar.

Na dissolução e fragmentação da Iugoslávia, duas décadas atrás, os Estados Unidos e a OTAN invocaram o direito à autodeterminação, enquanto uma enfraquecida Rússia argumentava, imponentemente, em defesa da integridade territorial da Iugoslávia. No final, quem pôde mais chorou menos.

O observador razoavelmente atento notará que os EUA e a União Europeia retiraram dos arquivos o play-book da Guerra Fria 1.0 para conter a ascensão da China. Impor crescentes constrangimentos econômicos, deflagrar uma corrida armamentista e dar o golpe final por meio das tensões étnico-nacionais e do separatismo.

Entre as dificuldades na tentativa de repetir o roteiro, uma frequenta mais amiúde os pesadelos do Ocidente. Quando a URSS declinou e finalmente desapareceu, havia tempo que não era mais aliada da China, que na geopolítica estava até mais próxima dos EUA. Hoje, a ameaça existencial comum empurra chineses e russos a aliar-se estrategicamente.

Na economia e na esfera militar são nações que se complementam num encaixe quase perfeito.

Eis por que o Ocidente não pode nem pensar em conter a China, o objetivo central na Guerra Fria 2.0, sem atrair a Rússia para sua esfera de influência ou desmembrá-la, a exemplo do que foi feito com a URSS.
[não podemos olvidar, que a China conta agora com o apoio, que não pediu, nem precisa, do 'estadista' de todos os estadistas, ex-presidiário que preside o Brasil.]

Ou as duas coisas.

A Federação Russa permanece um dos poucos estados de fato plurinacionais no planeta, com potenciais tensões separatistas permanentes. Enquanto o Ocidente argumenta com o direito à integridade territorial da Ucrânia, usa a Ucrânia para desestabilizar a integridade territorial russa.

O que, aliás, somado à crescente simpatia ocidental pela tese de Taiwan independente e pelas pressões separatistas em Hong Kong e Xinjiang, ajuda a amalgamar a aliança entre Moscou e Beijing.

E o Brasil com isso? O cenário internacional para nós, também pelos motivos expostos, é incomparavelmente mais complexo do que quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto pela primeira vez, em 2003.

Naqueles tempos, 1) os EUA tinham o foco na guerra ao terror; 2) uma enfraquecida Rússia estava saindo do catastrófico governo de Boris Ieltsin; e 3) ainda prevalecia a esperança ocidental de que o desenvolvimento econômico chinês, orientado ao mercado e à globalização, faria entrar em colapso o poder comunista.

Assim, Lula pôde implodir o projeto norte-americano da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) sem maior consequência, teve espaço para projetar poder econômico-financeiro regional e o Brasil ajudou alegremente a construir os Brics. Mas os ventos começaram a mudar lá pelo final da década, acelerados pela crise de 2008/09, e quem acabou pagando o pato da insatisfação de Washington com o expansionismo e o independentismo brasileiros foi Dilma Rousseff.

Os EUA estão crescentemente nervosos diante da ameaça de um ocaso em seu reinado de única superpotência. E bem quando a história parecia ter chegado ao fim, dando razão a Francis Fukuyama, e quando o breve século XX, na definição de Eric Hobsbawm, tinha ficado para trás.

Mas as duas teses balançam. Fukuyama e Hobsbawn estão em xeque. O século XXI está cada vez mais parecido com o anterior.  Como Lula vai descascar o abacaxi? Até agora, recorreu aos velhos truques, de eficácia comprovada. Foi a Washington e disse coisas agradáveis aos anfitriões, depois dirigiu-se a Beijing para falar coisas que fizeram bem aos ouvidos dos chineses. Nas duas viagens, procurou extrair o melhor da relação.
[será que qualquer das partes acreditou no que ouviu? sabem que são palavras proferidas por um mentiroso patológico - .vide Lula se jactando para Jaime Lerner de que  mentia.]

Não deixa de ser inteligente como aposta para não queimar pontes.

Só é preciso saber até quando isso será suficiente. Pois de vez em quando chega uma hora em que os princípios, como tratado no início deste texto, e as declarações genéricas de intenções não dão mais para o gasto.

E 2023 não é 2003. 

Alon Feuerwerker, jornalista e analista político 

 


domingo, 17 de julho de 2022

O pecado da brancura - Revista Oeste

 Brendan O'Neill, da Spiked

A vergonha branca de Marta Hoffmann é muito mais ofensiva do que o elenco branco de Friends

Personagens da série de TV norte-americana <i> Friends </i> | Foto: Divulgação
Personagens da série de TV norte-americana Friends | Foto: Divulgação 
 
Vejo que os brancos estão novamente se desculpando por serem brancos. Agora é a vez de Marta Kauffman, cocriadora de Friends. 
Ela está muito, muito triste por Friends ter um elenco predominantemente branco. 
Está devorada pelo remorso por ter sido “parte do racismo sistêmico”.    Ela está tão consumida pelo arrependimento por sua participação no crime cultural de criar uma comédia sobre seis nova-iorquinos brancos que decidiu investir algum dinheiro em uma causa não branca.                     Ela está doando US$ 4 milhões para a Brandeis University, em Boston, para criar uma cátedra em seu departamento de estudos afro-americanos. “Isso vai lavar meu pecado de brancura?”, ela poderia muito bem dizer, enquanto entrega o dinheiro do penitente.

Se eu estivesse fazendo um brilhante episódio de série de 23 minutos sobre essa merda, eu o chamaria de “Aquele com a nauseante culpa branca”. Tudo sobre a autoflagelação de Kauffman é absurdo. Ela está “envergonhada”, ela diz, que os seis personagens principais de Friends eram brancos. “Admitir e aceitar a culpa não é fácil”, disse ela, ao Los Angeles Times. “É doloroso se olhar no espelho”, disse ela.

O que é essa loucura? Vamos nos lembrar de que a razão pela qual Kauffman sente vergonha — tanta vergonha que ela mal consegue se olhar no espelho — não porque ela assassinou alguém, é porque ela deu os papéis de Joey, Chandler, Ross, Monica, Rachel e Phoebe para pessoas brancas. “O que posso dizer? Eu gostaria que Lisa [Kudrow] fosse negra?”, disse outro produtor de Friends, recentemente. Este pode ser apenas o ponto de discussão mais louco de 2022 até agora.

É vingativo, rancoroso e invejoso tentar derrubar um dos grandes programas de TV da década de 1990 só porque não aderiu às excentricidades identitárias dos anos 2020

Kauffman se flagelou publicamente algumas vezes por causa da brancura de Friends. Em um festival de TV em 2020, ela disse que “tudo o que consigo pensar” é por que não fizemos mais para diversificar Friends. No ano passado, antes de Friends: The Reunion ser exibido na HBO Max, ela disse que tinha “sentimentos muito fortes sobre minha participação em um sistema”. Esse será o sistema de privilégio branco e preconceito inconsciente, sem dúvida. Agora ela se atirou, coberta de vergonha, no altar da culpa branca. “Fiz parte do racismo sistêmico. Assumo total responsabilidade por isso… Eu era tão ignorante.” Lembrete, caro leitor: ela fez uma comédia.

Precisamos falar sobre os sentimentos de Marta Kauffman. Gostaria que não tivéssemos, mas nós fazemos. Porque há algo genuinamente perturbador em uma produtora de TV hiperbem-sucedida, cocriadora de uma das comédias de maior sucesso da história, sentindo tanta angústia com a cor da pele de seus atores. Este não é um comportamento normal. Kauffman deve sentir orgulho oceânico pelo papel que desempenhou em fazer milhões de pessoas em toda a Terra rirem das palhaçadas de seis solteiros de Nova Iorque. Mas, em vez disso, ela aparentemente tem de evitar espelhos para não ter um vislumbre de seu próprio rosto vergonhoso e racista. Se eu ficasse loucamente rico produzindo uma alegre instituição televisiva, estaria me gabando disso até o fim dos meus dias. E, no entanto, aqui está a pobre Marta, prostrando-se diante dos anciãos do despertar, enterrando o rosto na terra, declarando: “Peço desculpas pela minha ignorância” (Ela literalmente disse isso.)

O envergonhamento da gordura
Kauffman parece ter sido sugada para o culto da vergonha branca. Há realmente uma grande sensação de culpa em alguns de seus comentários recentes. Assim como os novos recrutas da cientologia devem passar por uma “auditoria” para limpar suas almas das influências negativas do passado, parece que os membros da elite cultural devem ser auditados por seus preconceitos antigos, inconscientes e supostamente raciais. Devem submeter-se à análise dos guardiões do pensamento racial correto e confessar quaisquer máculas morais neles encontradas. Kauffman realmente soa como alguém cujos olhos foram abertos por algum ancião religioso. “Eu só… eu perdi, eu perdi”, ela diz, sobre sua brancura pecaminosa anterior. “E agora olho para trás e penso que não posso mais viver assim. Não posso mais fazer isso.” Auditoria: bem-sucedida. Candidato pronto para o próximo nível de autoconsciência.

Friends tem sido alvo de ataques há anos. Há frequentes tempestades na mídia sobre como esse show dos anos 1990 foi não woke. “Por que o programa favorito dos anos 1990 é extremamente transfóbico”, diz uma manchete (aparentemente é porque o pai gay e travesti de Chandler foi interpretado pelo ícone de Hollywood Kathleen Turner, que, me desculpe, foi absolutamente brilhante). “Friends: dez vezes em que a série clássica foi problemática”, diz uma manchete do Independent, um jornal transformado em complexo industrial de caça-cliques. A Cosmopolitan criticou Friends por seusexismo, homofobia e envergonhamento da gordura”. Se eles esperam seriamente que não riamos de Monica dizendo de um vídeo de seu eu mais jovem e gordo que “a câmera adiciona 10 libras”, e Chandler respondendo “Putz, então quantas câmeras estão realmente em você?”, então tenho novidades para eles.

Mas o lance de Kauffman é mais sério. Esta é uma real criadora de Friends cedendo a essas acusações ridículas. Isso é o próprio Friends efetivamente dizendo: “Sim, nós éramos racistas, éramos fóbicos, estávamos errados”. O que Kauffman e outros poderiam estar dizendo — este é um conselho grátis, pessoal — é que é perverso e totalmente por fora julgar o entretenimento e a arte do passado pelos padrões implacáveis do presente. Que é repugnante ao ideal de liberdade artística monitorar a cultura por sua correção racial em vez de apreciá-la por sua qualidade, seu valor, seu impacto. Que é abominável acusar as pessoas de serem racistas simplesmente por fazerem uma série de TV cujos personagens principais eram brancos. E que é vingativo, rancoroso e invejoso tentar derrubar um dos grandes programas de TV da década de 1990 só porque não aderiu às excentricidades identitárias dos anos 2020. Quero dizer, o que vem a seguir? — Happy Days? (Nem pense nisso.)

A única pergunta que importa
Kauffman deveria ter mandado seus injustos perseguidores para o inferno. Em vez disso, ela cedeu a eles. De fato, ela participava do movimento “woke”, o equivalente moderno das indulgências reais — aquela prática católica medieval em que os ricos procuravam compensar seus pecados dando dinheiro à Igreja. O que são os US$ 4 milhões de Kauffman para Brandeis se não uma indulgência, um ato de penitência racial destinado a absolver-se de pelo menos parte de seu pecado original de ser branca? A brancura realmente passou a ser vista como uma mancha moral, uma abominação do nascimento. Se você nasceu branco, você é aparentemente privilegiado. Você é um beneficiário do colonialismo e da escravidão. Você é uma pessoa má. E assim você deve checar seu privilégio, autoflagelar-se e ajoelhar-se ao Black Lives Matter, e oferecer uma indulgência calorosa às causas negras. Só então você pode ser perdoado pela maldade do seu tom de pele.

Estou farto de toda essa vergonha branca. Não é, como seus praticantes querem que acreditemos, o oposto do orgulho branco. Pelo contrário, é o companheiro de viagem do orgulho branco. Os membros brancos da elite cultural, controladores de privilégios, autoflageladores e odiadores de cor de pele parecem, à primeira vista, consumidos pela vergonha. Quando eles expiam sua brancura, ou se curvam aos negros em uma demonstração do BLM, ou confessam transgressões raciais passadas, eles parecem estar mortificados. Mas na verdade estão se gabando. Eles estão dizendo: “Sou uma pessoa branca consciente. Sou uma boa pessoa branca. Não sou como aquelas hordas de lixo branco que nunca se conscientizam de seus privilégios”. Essa é a complexidade moral que revela a história de Kauffman — ela está envergonhada, mas também orgulhosa, porque está dizendo ao mundo que reconheceu sua brancura, visto que é errada, e agora está fazendo correções auditadas. Dane-se isso. Friends era engraçado ou não? Essa é a única pergunta que importa. Minha resposta é: sim, foi engraçado. Obrigado, Marta.

Leia também “A guerra linguística contra as mulheres”

 Brendan O'Neill, da Spiked - Revista Oeste 

 

domingo, 7 de novembro de 2021

A comédia do treinamento militar bolivariano

Revista Oeste

Em um vídeo que circula nas redes sociais a estatal venezuelana é palco de um treinamento militar 

Um vídeo que circula nas redes sociais mostra o tamanho da crise política que a Venezuela enfrenta, econômica e socialmente, com uma população empobrecida. A imagem ajuda a explicar o fracasso bolivariano.


O treinamento militar na ditadura de Nicolás Maduro  - Reprodução/Mídias Sociais 

O vídeo mostra sete pessoas — entre elas três mulheres — empunhando rifles, em um aparente treinamento militar, ao som de uma trilha digna de filme.

O que chama a atenção é que todos estão vestindo uniformes da estatal Petróleos da Venezuela S.A. (PDVSA). A comédia, ou melhor, a cena, foi gravada em um prédio em ruínas da própria estatal.


Pilar da economia venezuelana, a PDVSA chegou a ser uma das cinco maiores petroleiras do mundo. Depois de 20 anos de governos chavistas, está em colapso com a queda da produção, dívidas bilionárias e sanções dos Estados Unidos.

Quando Chávez chegou ao poder (1999-2013), o país colocava 3,1 milhões de barris ao dia no mercado. A cifra caiu a 1,1 milhão, segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo.

Revista Oeste


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Selo de mau pagador – O Estado de S. Paulo

Opinião

No total, dívidas do Brasil com organismos internacionais somam mais de R$ 4 bilhões

É estonteante a capacidade de Brasília de implodir pontes que ligam o País à comunidade internacional. O presidente da República e alguns de seus principais ministros, a começar pelo das Relações Exteriores, insultam rotineiramente líderes internacionais; escarnecem de preocupações literalmente vitais à sociedade global, como o meio ambiente ou a pandemia; ameaçam conquistas históricas, como o acordo Mercosul-União Europeia; insistem na vassalagem a um demagogo já rejeitado pelo seu povo; provocam arbitrariamente parceiros comerciais seminais, como a China ou a Argentina; ameaçam países vizinhos, como a Venezuela; sabotam recursos internacionais, como os do Fundo Amazônia; e reduzem o Itamaraty a uma trincheira de suas guerrilhas ideológicas contra conspiradores imaginários. [acordo Mercosul - União Europeia, outro ajuste ditatorial, basta um único país da UE não assinar e o acordo vai para o beleléu - só quem não tem direito nem a piar, exceto para concordar, é o Brasil; o tal do Fundo Amazônia foi sonegado por o Brasil não concordar com os decretos absolutistas da Noruega - país que prega a preservação das florestas brasileiras e causa danos ao meio ambiente do Brasil.] 

Mas não se pode limitar o conjunto da obra de destruição ao desvario de Jair Bolsonaro. O Congresso acaba de negar ao Ministério da Economia as verbas necessárias para quitar os compromissos em atraso do País com organismos internacionais como a e suas agências.

Em 2019, o Brasil quase perdeu o direito a voto na Assembleia-geral, pagando às pressas sua dívida com a ONU. Na análise das contas federais do ano passado, o Tribunal de Contas da União alertou o governo sobre a grande diferença entre os compromissos internacionais pendentes e a dotação orçamentária para quitá-los, com risco de infração ao artigo 167 da Constituição, que proíbe a realização de despesas sem previsão no Orçamento.

 [vale a pena gastar bilhões de reais pagando taxas para integrar organismos internacionais que não são de grande valia?
- para que serve a OMS? quais as decisões realmente úteis tomadas por aquela Organização no combate à covid-19?
- já perceberam que as decisões realmente importantes da democrática ONU são adotadas pelos membros permanentes do Conselho de Segurança daquela Organização?
E as mais importantes são adotadas por um membro permanente do CS/ONU?
Se todos decidirem uma medida e um membro permanente, apenas um, vetar a decisão, o decidido deixa de valer. 
Assim, um membro apenas pode decidir contra a vontade de todos. 
Situação parecida ocorre no Brasil, com o Supremo Tribunal Federal em que um único ministro pode suspender uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República. E que o ministro autor da decisão suspensiva, pode retardar a apreciação da matéria pelo colegiado e com isso tornar a suspensão uma revogação.]

Saber mais, clique aqui.]

Neste ano, o governo federal reincidiu na barbeiragem, e deixou para a última hora o provimento de recursos para quitação dos compromissos nacionais com organismos como a OMS, Unesco, OEA, OIT, além de 13 missões de paz, 8 bancos multilaterais, fundos internacionais e outras 106 organizações internacionais. No total, as dívidas somam mais de R$ 4 bilhões.

Para cumprir parte desses compromissos e garantir prerrogativas mínimas, como o direito a voto na Assembleia-Geral da ONU, o Ministério da Economia solicitou ao Congresso um crédito de R$ 1,235 bilhão. Mas a menos de dois meses do vencimento das dívidas, o Parlamento rejeitou o pedido. Todo o episódio é uma verdadeira comédia de erros. Primeiro, há a irresponsabilidade dos parlamentares, ávidos por granjear recursos para as suas praças em época de eleições, mesmo que em flagrante prejuízo dos interesses nacionais. Depois, há a inépcia do Ministério da Economia, que incluiu na mesma solicitação de crédito as contribuições que beneficiavam o MDR, abrindo uma brecha para a manobra do Congresso. Por fim, há a crônica desarticulação do governo com as bases parlamentares.

Agora, conforme apurou o Estadão/Broadcast, a equipe econômica trabalha no afogadilho para utilizar algum projeto de lei de crédito suplementar ainda em tramitação para efetuar novo remanejamento, cortando despesas orçamentárias que não serão executadas, para dar lugar à liquidação de parte daqueles compromissos internacionais.

Se malograr, será uma desmoralização sem precedentes para a política externa. Mas mesmo que consiga, a imagem do País já está arranhada. No mínimo é mais um sinal às autoridades e investidores internacionais da incúria do País em honrar seus compromissos. O quiproquó é injustificável, mesmo pelo choque da pandemia, já que essas dívidas estão contratadas há anos.

Enquanto se multiplicam por todo o planeta os apelos à cooperação multilateral para combater o vírus e a catástrofe econômica precipitada por ele, o Brasil caminha a passos largos rumo ao isolamento. Não é esta a vocação do Brasil e dos brasileiros.

Opinião - O Estado de S. Paulo

 

sábado, 17 de outubro de 2020

O caso André do Rap: como as prisões viraram fábricas de criminosos

Os erros em torno da libertação do traficante jogam luz sobre a transformação, pelo PCC, de uma das maiores populações carcerárias do planeta em mão-de-obra

Aconteceu quase de tudo na lamentável comédia de erros que culminou na saída pela porta da frente da cadeia de um dos chefões do Primeiro Comando da Capital (PCC), a facção criminosa mais poderosa do país. Entre uma série de falhas e brechas da Justiça na análise do caso, a cereja do bolo no episódio ficou por conta de Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, que assinou a liminar de soltura para marcar uma inoportuna posição legalista, levando a lei ao pé da letra — nem que para isso tivesse de fazer vistas grossas ao alto nível de periculosidade do criminoso em questão, André Oliveira Macedo, responsável nos últimos anos pelo braço internacional de comércio de drogas do PCC. Resultado: André do Rap, como o traficante é mais conhecido, deixou calmamente no sábado 10 o presídio de segurança máxima de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, entrou em um BMW e, até a tarde da última quinta, 15, nunca mais foi visto. Ele havia sido capturado em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, em setembro de 2019, após um cerco que envolveu trinta policiais. Agora, cerca de 600 deles se encontram em seu encalço.

A “fuga legal” provocou justa indignação em todas as esferas da sociedade, mas não houve ainda uma discussão aprofundada sobre outra gigantesca mazela nacional revelada pelo mesmo caso: a de como as cadeias brasileiras produzem hoje em ritmo acelerado soldados para as facções, em especial, o PCC, a exemplo do que ocorreu com André do Rap. Sem nenhuma passagem pela polícia, em 1996, aos 19 anos, ele acabou sendo preso em flagrante em casa, com trinta papelotes de cocaína. Um menor de idade revelou que o ajudava a vender a droga, o que rendeu a André a agravante de corrupção de menores. Ele cumpriu a primeira parte da pena na Cadeia Pública do Guarujá, no Litoral Sul paulista. Logo em seguida foi transferido para a Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, presídio desativado em 2002. Dono de bom comportamento e considerado inteligente pelos colegas de cadeia, principalmente pela capacidade de fazer e decorar rimas de rap, ele tinha o perfil que se encaixava perfeitamente em uma vaga no PCC. Seu batismo na facção ocorreu no Pavilhão 9 durante a primeira de suas quatro prisões.

(........)

Com um time de advogados credenciados, que incluía até uma sócia de um ex-assessor de Marco Aurélio Mello, o traficante entrou com nove habeas-corpus para conseguir a soltura — um deles, por exemplo, fazia referência ao risco de contrair Covid-19. Mas a argumentação que colou junto ao ministro da Suprema Corte foi a do artigo do pacote anticrime, que transforma em constrangimento ilegal a prisão preventiva que não é reanalisada em noventa dias. Com base nesse trecho, Marco Aurélio mandou soltar mais de setenta presos nos últimos dias. Antes mesmo de o pacote anticrime entrar em vigor, o mesmo ministro já havia determinado a liberdade de Moacir Levi Correa, o Bi da Baixada, companheiro de André do Rap no tráfico em Santos, em outubro de 2019. Apesar de Correa ter sido preso em flagrante por tentativa de homicídio, o argumento era semelhante ao utilizado por André do Rap. “Privar de liberdade por tempo desproporcional a pessoa cuja responsabilidade penal não veio a ser declarada em definitivo viola o princípio da não culpabilidade”, escreveu Marco Aurélio. Alvo de outros mandados de prisão preventiva, Correa sumiu do mapa, assim como André do Rap. Felizmente, a interpretação literal de Marco Aurélio Mello para a questão das preventivas envolvendo bandidos perigosos não encontrou eco no STF. Na última quinta, 15, o plenário manteve a prisão de André do Rap. Tarde demais, é claro. Suspeita-se que ele tenha fugido para o Paraguai, onde o PCC tem uma base forte de operações.

Se o paradeiro evidente de André do Rap deveria ser a cadeia hoje, lá atrás, quando cometeu o primeiro delito, a solução poderia ter sido outra. Existe uma questão de fundo no país sobre segurança pública que é pouco debatida, apesar de sua importância. A exemplo do que aconteceu com esse traficante, a superpopulação carcerária brasileira, terceira maior do planeta, com mais de 750 000 detentos vivendo em condições medievais, tornou-se um terreno fértil à cooptação de soldados para o crime organizado. 

Interromper esse processo é fundamental para combater essas facções. Em 2019, ano mais recente do levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o país registrou 350 pessoas encarceradas para cada grupo de 100 000 habitantes — mais que o triplo do que havia em 1997. E os índices de violência não melhoraram por causa disso. “A superlotação provoca as piores consequências para o preso e praticamente inviabiliza sua recuperação e reinserção à sociedade”, afirma José Vicente da Silva, coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional de segurança.

Em VEJA, LEIA MATÉRIA COMPLETA 

 

segunda-feira, 10 de junho de 2019

“Jogando fora o gol feito” e outras notas de Carlos Brickmann

Por uma série de circunstâncias, Bolsonaro não parece ter percebido que navega a favor do vento



Por uma série de circunstâncias, o presidente Jair Bolsonaro tem a chance de implantar reformas que mudarão as estruturas e a fisionomia do país. Até partidos reconhecidamente adeptos do “é dando que se recebe” decidiram colaborar, talvez por perceber que é impossível ordenhar uma vaca que está ficando sem leite. A inflação de maio, 0,13% (não esqueça: inflação é um dia, não quer dizer que todos os preços tenham subido só isso), é a menor deste mês nos últimos 13 anos e se acredita que a inflação anual ficará em 4,03%, abaixo da meta de 4,25%. A reforma da Previdência, sem a qual não haverá recursos para governar, deve sair e quase tão ampla quanto a que foi proposta. Há uma reforma tributária em andamento, para que o produtor não seja punido por produzir; um pacote anticrime, a ser analisado, proposto por Sergio Moro, o mais popular ministro do Governo; e um pente fino nos benefícios do INSS, que podem pegar muita gente que recebe sem motivo.

Por uma série de circunstâncias, Bolsonaro não parece ter percebido que navega a favor do vento. Trabalha mais para piorar a segurança do trânsito, já precária (brigando contra os radares, aumentando o número de pontos com que a carteira de habilitação é suspensa), acirrando a movimentação de estudantes e professores contra seu Governo (com um ministro que se arvora em imitar Gene Kelly), brigando com os aliados (seu filho Carluxo, o 02, voltou a atacar o vice Mourão). O que poderia ser um triunfo vira comédia.

A inflação
Nunca pergunte a quem faz compras como está a inflação: a resposta será de que subiu muito mais do que o Governo admite. Claro: quem compra se irrita com o que aumenta (cenoura, 15,74%, leite longa vida, 2,37%), e acha normal o que abaixa, e cujo peso no bolso é bem maior: feijão carioca, -13,04%, tomate, -15,08%. O fato é que a inflação vem sendo contida. Isso teria impacto favorável na imagem de Bolsonaro se o Governo não estivesse ocupado em identificar aliados que possam ser transformados em inimigos.

Imagem forte
Mesmo com metade de seu time jogando contra a outra metade, o presidente continua muito influente, diz pesquisa do Ibope. Exemplo: teste das opiniões sobre a privatização da Petrobras. Os participantes foram divididos em dois grupos. Para um, disseram que Bolsonaro apoiava a privatização, para o outro nada disseram. Entre os que acham o Governo bom ou ótimo, mas não sabiam da posição do presidente, 45% apoiaram a privatização. Entre os que sabiam de seu apoio, o número subiu para 57%.

Entre os que consideram o Governo ruim ou péssimo, mas não sabiam da opinião de Bolsonaro, 33% apoiaram a privatização. Entre os informados da posição do presidente, o apoio caiu para 23%. O coordenador da pesquisa, George Avelino, da Fundação Getúlio Vargas, disse ao jornal Valor“A opinião de Bolsonaro polariza o eleitorado. O que Bolsonaro diz mexe com determinados grupos, seja favoravelmente, seja desfavoravelmente”.

Os alvos da guerra familiar
VEJA online informou nesta sexta que Abdul Fares, descendente do fundador do Grupo Marabraz (e que luta na Justiça contra três tios, hoje no comando da empresa) representou ao Tribunal de Ética da OAB de São Paulo contra um dos maiores escritórios de advocacia do país, o Sérgio Bermudes Advogados. Fares alega que procurou o escritório para entrar com ação contra os tios. Diz que entregou documentos sigilosos aos advogados e discutiu a estratégia jurídica a seguir. Mas, diante dos honorários pedidos, que segundo ele seriam de R$ 1,2 milhão, desistiu.

Representa agora contra o escritório porque, após ter desistido de contratá-lo, o escritório aceitou defender o outro lado, de seus tios. Pede providências à OAB e exige a devolução dos documentos que, diz, deixou com o escritório. Um desses documentos, afirma, é um extrato de banco chinês, US$ 1 bilhão. Se um extrato como esse é real e aparece, é uma bomba. Fares promete processar o escritório de Bermudes, tendo como advogada Lilia Frankenthal.

Outro alvo: este colunista
A Marabraz abriu processo também contra este colunista, por uma notícia seca, puramente factual. Está no exercício de seu direito, claro. Mas, embora este colunista não acredite em coisas desse tipo, quem o processa tem sofrido com a falta de sorte. Um ex-secretário de Estado que se candidatou a deputado, e esperava 400 mil votos, teve algo como 20 mil. Desistiu da política. Marconi Perillo, irritado com a notícia do casamento luxuoso de sua filha, também optou pelo processo. Disputou o Senado, com duas vagas, ficou fora. Kajuru se elegeu. Seu candidato ao Governo perdeu. Enfrenta mais de 15 investigações, até por relações com a Odebrecht. Foi preso pela Polícia Federal (e logo libertado). Até seu advogado tem problemas: foi condenado a seis anos de prisão, em primeira instância (recorre em liberdade) por formação de quadrilha, peculato e lavagem de dinheiro.

Publicado na Coluna de Carlos Brickmann

Blog do Augusto Nunes - Veja