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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O que é um judeu? O caso Herzl - Gazeta do Povo

Bruna Frascolla - VOZES

Sionismo

 

 Theodor Herzl com sua família perfeitamente europeia. O menino não é circuncidado.| Foto: Domínio público

A escalada do conflito em Israel voltou os holofotes para o sionismo. De um lado, diz-se que o sionismo é uma coisa essencialmente maléfica; de outro, diz-se que ser contra o sionismo é o mesmo que tatuar uma suástica na testa
Arrisco dizer, porém, que a imensa maioria dos que falam sobre sionismo não fez mais que seguir as exortações e invectivas dos seus influencers prediletos, sem se dar ao trabalho de averiguar nada. 
Ninguém tem obrigação de saber sobre tudo, claro. 
Mas o mínimo que se espera é que, quando não temos a pretensão de conhecer um assunto, não subamos em palanques virtuais para pedir cabeças e dar chiliques.

Como faz parte da minha profissão escrever sobre as coisas – e como, ainda por cima, tenho interesse em história do pensamento racial por causa das semelhanças entre o neorracismo negro e o nazismo –, fiz o elementar: li O Estado Judeu (1895), de Theodor Herzl, a fim de comentá-lo aqui. Esse opúsculo é a fundação do sionismo (ou do “sionismo moderno”, como dizem os sionistas mais ousados que alegam que o sionismo está na Torá).

Theodor Herzl (1860 – 1904) nasce em Peste (metade de Budapeste), no Império Austro-Húngaro, numa família de judeus assimilados. O que é um judeu assimilado?

Bom, o judaísmo é pelo menos duas coisas ao mesmo tempo: uma religião e uma etnia
Ao contrário das demais religiões abraâmicas, o judaísmo não faz proselitismo e não está de portas abertas para a entrada de qualquer um. Nem sempre foi assim. 
Na Antiguidade tardia, os judeus converteram pelo menos dois grupos populacionais relevantes: algumas tribos nômades dos cazares, que ficavam rodando pela atual Ucrânia, Rússia e Cazaquistão, e algumas vilas etíopes. 
Os etíopes ficaram em relativo isolamento na maior parte da História, mas hoje judeus negros têm direito à cidadania israelense e, de fato, a esmagadora maioria vive lá hoje. 
Já os cazares, que deixaram de existir enquanto povo ou tribo, deixaram descendentes entre os judeus asquenazitas. Isso não quer dizer que os judeus asquenazitas não têm origem hebraica; quer dizer somente que são mestiços que têm o sangue dessa tribo extinta de língua túrquica.
De meados do século XIX a meados do século XX, floresceu o racismo científico. Por isso, o judaísmo era facilmente identificado com uma raça. À epoca de Herzl, portanto, um “judeu assimilado” era um indivíduo de raça judaica que aderiu à cultura do seu meio. 
Isso poderia incluir a conversão à cristandade, ou a adoção de um cientificismo ateu.
 
Theodor Herzl, então, era um judeu assimilado no Império Austro-Húngaro. Sua primeira língua era o alemão e ele era um fervoroso germanófilo em sua juventude: achava que a germanização progressiva faria os indivíduos de origem judaica, como ele, a evoluírem. No âmbito pessoal, tinha planos de ser um grande engenheiro. 
O motivo era o Canal de Suez, um grande um projeto utópico dos sansimonianos que acabou dando certo. 
Os sansimonianos eram engenheiros utópicos e predecessores tanto do positivismo como do marxismo. 
 Fizeram parte do movimento, inclusive, judeus sefarditas franceses, os Irmãos Pereire (um afrancesamento de Pereira), que eram banqueiros rivais dos Rothschild, também banqueiros judeus, porém asquenazitas.
 
Herzl não deu certo na engenharia e foi para as humanas. Virou jornalista, poeta e folhetinista (profissão hoje extinta, a do escritor de romances que saíam em capítulos nos jornais, como novela de TV, só que por escrito: Machado de Assis e Victor Hugo eram folhetinistas). 
Um episódio, porém, o converteu num ativista político: o Caso Dreyfus (1894 - 1906). 
Em resumo, um militar francês de origem judaica, Alfred Dreyfus, perdeu as patentes e foi condenado pela França à prisão perpétua por traição, mesmo sendo inocente.  
No fim, após grande comoção pública, Dreyfus foi inocentado e recuperou as patentes. A França é um país bem antissemita (basta comparar a boa vontade dos franceses para delatar aos nazistas gente de sangue judaico); assim, restou claro que o preconceito contra a origem racial de Dreyfus foi o motivo da condenação.
 
Para piorar, o demagogo Karl Lueger, na Áustria-Hungria natal de Herzl, arrastava multidões com sua pauta antissemita. Foi um modelo para o jovem austríaco Adolf Hitler. 
Assim, Theodor Herzl viu frustrada a sua ideia de viver reconhecido como um germânico pleno, cultor da língua. Daí resultou a sua ideia do Estado Judeu. O Caso Dreyfus começa em 1894; em 1895 sai Der Judenstaat, ou O Estado Judeu.

Mas o que é um judeu? Essa é uma questão com a qual Herzl se bate no seu opúsculo. Herzl decididamente não era um religioso: não se deu nem mesmo ao trabalho de circuncidar o filho. No entanto, a “fé” é apenas a segunda das duas coisas apontadas que unem o povo judeu, e aparece como fator de união só do meio para o fim do escrito. A primeira dela é o antissemitismo. Diz ele: “Nós somos um povo: nossos inimigos nos fizeram um só sem o nosso consentimento, como sempre acontece na História. Nós nos unimos no sofrimento, e no sofrimento descobrimos, de repente, a nossa força. Sim, nós temos a força para construir um Estado; na verdade, um Estado Modelo.” (Eis o alemão para quem quiser comparar: “Wir sind ein Volk – der Feind macht uns ohne unseren Willen dazu, wie das immer in der Geschichte so war. In der Bedrängniss stehen wir zusammen und da entdecken wir plötzlich unsere Kraft. Ja, wir haben die Kraft, einen Staat, und zwar einen Musterstaat zu bilden.” Basta ir no Wikisource, pois o texto original está em domínio público. Os direitos das traduções são outra história.)

Abstraída a questão religiosa, o que é um judeu? Para Herzl, um judeu é aquele que é perseguido por ser judeu. Assim, uma consequência óbvia tirada pelos contemporâneos de Herzl é que ele fomentaria o antissemitismo para fazer prosperar o seu projeto político. Do mesmo jeito que os líderes do movimento negro precisam aumentar o racismo para provar que o seu próprio trabalho é fundamental. A pretensão de falar em nome da coletividade dos judeus também lembra o identitarismo. Mas o que me salta às vistas nesse trecho é a possibilidade de criar uma identidade baseada na opressão social, em vez de numa realidade concreta. Transfira isso para a definição de “mulher” e pense no que pode dar.

Herzl se defende das acusações de que ele precisa criar antissemitismo onde não há, ou aumentar onde já há. A sua defesa consiste em atacar a “assimilação”, dizendo ser ela impossível, exceto por meio dos casamentos mistos. Só por meio da miscigenação os judeus poderiam ser assimilados: “A assimilação, pela qual compreendo não só a mera aparência exterior das roupas, dos estilos de vida, dos costumes e da língua, mas, em vez disso, uma identificação em um sentido e um tipo... A assimilação generalizada dos judeus só poderia ser feita por meio dos casamentos mistos.” (Em alemão, procurar pelo parágrafo que começa com “Die Assimilirung, worunter…)

Resta perguntar, então, o porquê. Será o judaísmo considerado uma raça também por Herzl? Uma raça associada a um modo interno de sentir? A biologia molda o nosso sentido interno, de modo que acabar com o judaísmo só seria possível por meio de uma mudança biológica? Outra vez, isso lembra o cartaz dos racialistas na Avenida Paulista: “Miscigenação é genocídio.” E os tribunais de heteroidentificação racial também exigem uma conformação psicológica (que nada mais é que a adesão ao movimento) para reconhecer alguém como negro.

Seja como for, uma coisa relevante que transparece em Herzl é que as comunidades de origem judaica àquela altura mantinham o hábito de casar entre si, de modo que a “raça” permaneceria sem muita mestiçagem. (O exemplo que ele dá é o de um "casamento misto" reconhecido pela Hungria no qual uma judia se casava com um "judeu batizado".) A relevância do caráter racial para o debate sionista não pode ser diminuída, e o melhor exemplo disso é a politização que a questão da remotíssima miscigenação com os cazares (lá na antiguidade…) causou entre judeus e não-judeus no século XX, com a publicação do livro de Arthur Koestler, um judeu asquenazita que queria provar que não tinha nada a ver com semitas.

Mas bom, a maior diferença entre os negros e os judeus, no que concerne a essa questão, é que podemos sem pestanejar dizer o que é um negro: um negro é alguém de pele negra. 
Não há nada de cultural envolvido nessa questão; negros podem ser judeus, muçulmanos, ateus, brasileiros, congoleses, etíopes... 
Não faz sentido perguntar se um negro é assimilado; faz menos sentido ainda um negro dizer que “se descobriu” negro. Por outro lado, as discussões sobre assimilação eram habituais na Europa de Herzl; e é possível alguém se descobrir judeu após analisar o próprio histórico familiar. 
Afinal, o que é um judeu? Herzl não dá uma definição, nem toca nos critérios pelos quais alguém é reconhecido ou se reconhece como judeu.

Respondamos, então. Considerando a biologia algo apenas acidental, podemos com facilidade apontar o critério primário segundo o qual alguém é apontado como judeu: ter nascido de um ventre judaico. Ou seja, o judeu é o filho da judia (e não necessariamente do judeu). Judeu nasce judeu, não se torna. E como a própria judia pode ser ateia ou convertida a outra religião, resulta que esse critério cultural acaba redundando na matrilinearidade pura e simples. Assim, das três religiões abraâmicas, só uma tem porta de saída: se no islamismo podem te matar caso você queira sair, no judaísmo você continua sendo considerado judeu mesmo que nunca tenha sido nem sequer circuncidado.

O leitor deve saber da “conversão” ao judaísmo de figuras ilustres, tais como a filha de Trump, que se casou com um judeu e hoje é considerada judia. A mãe da israelense Shani Louk é uma alemã de origem católica que fez o mesmo trajeto da Ivanka Trump: casou com um judeu e foi aceita como judia. Não posso apontar fontes, porque meu conhecimento do assunto é oral e o judaísmo não tem Papa, de modo que não é fácil apontar uma doutrina oficial. De todo modo, explico o que eu aprendi oralmente: não é possível se tornar judeu; o que é possível é a autoridade religiosa reconhecer que você é uma alma judaica que foi, digamos assim, extraviada para um útero não-judaico.

Sei disso porque um familiar mestiço, judeu segundo critérios étnicos, resolveu virar judeu religioso e quis que o lado gentio da família aderisse à religião judaica junto com ele. De minha parte, achei a religião mais parecida com um transtorno obsessivo compulsivo generalizado, e não poderia haver proposta menos tentadora. E por aí eu entendi também por que tem tanto judeu ateu: dá trabalho demais ser religioso e é muito aflitivo, pois envolve passar o dia inteiro pensando nisso. A religião inclui até agradecimento a Hashem quando se vai ao banheiro. E Hashem é o modo de se referir a Deus, cujo nome não deve ser pronunciado ou escrito à toa.

Em seu opúsculo, Herzl menciona a acusação de que ele fortaleceria o antissemitismo justamente quando o processo de assimilação estaria quase concluído. 
 De fato, muitos europeus de origem judaica (como se costumava dizer então) haviam se convertido a diversas religiões cristas, ou haviam até nascido num lar cristão novo. 
Karl Popper, austro-húngaro, nasceu num lar cristão novo luterano; 
Edith Stein se converteu ao catolicismo, virou freira e foi canonizada; Jacques Maritain, filósofo católico francês, casou-se com uma judia que se converteu ao catolicismo junto com a irmã; 
Karl Polanyi, austro-húngaro, nasceu num lar cristão novo calvinista; 
Aurel Kolnai, austro-húngaro, converteu-se ao catolicismo… 
Que eu saiba, não existia isso de ser reconhecida como alma judaica para se casar com um judeu; ou, se havia, não havia interesse. A tendência parecia ser a de o grosso da tribo judaica se dissolver na cristandade (como as tribos europeias fizeram antes), sobrando só os ortodoxos, cuja identidade estaria fundada na observância à religião judaica… Até aparecer o sionismo. Aí ficamos fazendo cálculos de matrilinearidade, ou recorrendo a tribunais de heteroidentificação de alma, para decidir quem é judeu.

Porém, uma fé que concorria com as confissões cristãs era a fé laica na ciência, o cientificismo que tanto atraíra o jovem Herzl à engenharia. E o que vemos no seu esboço de como deveria ser o Estado Judeu é a manifestação da fé na Ciência. Que fica para o próximo texto.

domingo, 1 de maio de 2022

A culpa pela escalada da crise entre Executivo e Judiciário, na visão de Moraes - Lauro Jardim

Lauro Jardim

Judiciário

Em pelo menos uma das conversas que teve com senadores na semana passada, Alexandre de Moraes disse que a culpa pelo agravamento da crise entre Executivo e Supremo foi da fala de Luís Roberto Barroso sobre a ameaça dos militares ao processo eleitoral ("As Forças Armadas estão sendo orientadas a atacar e a desacreditar o processo eleitoral"). [ao nosso entendimento o ministro Moraes acertou parcialmente.
Praticou um acerto e errou duas vezes:
- a culpa não é exclusiva do ministro Barroso, tem no mínimo além do ministro Barroso o próprio ministro Moraes e   mais dois ou três supremos ministros que, sempre que há oportunidade, jogam um pouco de gasolina; 
- o fato do teor da fala do ministro Barroso não ser verdadeiro = fake news = obriga, ao que pensamos, a inclusão imediata do divulgador da fake news no 'inquérito do fim do mundo' que Moraes  preside
Por óbvio, se fake news divulgada por um bolsonarista é crime, quando a divulgação é efetuada por um integrante do STF se torna crime maior, mais grave, dada a credibilidade do difusor os efeitos da mentira são maiores.]

Lauro Jardim, colunista - O Globo 

 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Escalada de ataques de Bolsonaro ao STF provoca reação inédita na Corte

A relação beligerante gera uma perigosa insegurança institucional ao país

A relação de desconfiança entre Jair Bolsonaro e o STF é pródiga em exemplos de tensão. Ainda na campanha, ele falava em aumentar o número de integrantes da Corte para que pudesse indicar nomes comprometidos com o seu projeto político. O seu filho Zero Três, Eduardo Bolsonaro (PSL-­SP), disse à época que bastariam “um soldado e um cabo” para fechar a principal instância judiciária do país. Já no cargo, o capitão publicou um vídeo em que se comparava a um leão acossado por hienas — uma delas, o STF. A relação beligerante atingiu um patamar sem precedentes no sábado 10, quando os magistrados iniciaram um levante para que o presidente do tribunal, Luiz Fux, tomasse providências acerca do comportamento  do chefe do Executivo, que acabara de associar o ministro Luís Roberto Barroso à defesa da pedofilia. [a insistência, o empenho, do ministro Barroso na defesa de evitar que sistema eleitoral brasileiro seja privado das urnas eletrônicas é extremamente irritante e mesmo inadequado, por partir de uma autoridade que tem o DEVER da neutralidade.
É pacífico, e o ministro Barroso sabe perfeitamente, que não há o menor interesse do presidente Bolsonaro e dos seus milhões  de apoiadores em acabar com as urnas eletrônicas.  
O que existe é o empenho do presidente em dotar o sistema eletrônico utilizado no Brasil de meios que impeçam que votos sejam desviados do candidato ao qual eram destinados e não seja possível detectar tais desvios = o sistema impresso garantirá que o voto confirmado pelo eleitor na urna eletrônica para o candidato A, irá realmente para o candidato A. 
Só o voto impresso permitirá a detecção de eventual desvio de votos destinados a um candidato, no exemplo o  A, para um outro candidato, digamos o B, desvio este que poderá ocorrer  no trajeto teclado da urna para sistema de armazenamento digital. Desvio este que o voto impresso permitirá que seja detectado = a soma dos votos de um determinado candidato apresentada pelo sistema digital - BU - tem que bater exatamente com a soma obtida com a contagem dos votos impressos na urna eletrônica auditada. A diferença de um voto, ou dez, 100 votos, indicará que naquela urna ocorreu fraude. 
Sem o voto impresso não será possível confirmar. Não havendo fraude, ótimo - afinal de contas milhões são gastos com segurança para evitar furtos e todos ficam felizes quando os furtos não ocorrem e  caso ocorram sejam percebidos a tempo de serem frustrados.
Óbvio que o presidente Bolsonaro se excedeu quando tentou combater a posição do ministro com ataques pessoais, cabendo  ao ministro Barroso o direito, praticamente o dever, de buscar junto ao Poder Judiciário as medidas adequadas.] Devido ao grau repugnante do ataque, pela primeira vez, a indignação mobilizou até magistrados que sempre tiveram comportamento discreto. Como já aconteceu em outras ocasiões, houve posteriormente um ensaio de recuo no embate, mas ficou a sensação de que um novo capítulo na escalada de provocações é questão de tempo.

Pior crise entre Executivo e Judiciário no período pós-redemocratização, o conflito mais recente começou com o ataque a Barroso, em meio a mais uma pregação do presidente em defesa do voto impresso, [direito que assiste ao presidente] medida que o ministro, que é também presidente do Tribunal Superior Eleitoral, rejeita com razão. Na quarta 7, Bolsonaro disse a uma rádio gaúcha que as eleições de 2014 foram fraudadas e fez críticas pessoais a Barroso. Ficou acertado entre os membros do STF que a resposta viria por meio de uma nota do presidente da Corte. “O Supremo Tribunal Federal ressalta que a liberdade de expressão, assegurada pela Constituição a qualquer brasileiro, deve conviver com o respeito às instituições e à honra de seus integrantes”, escreveu Luiz Fux.

O recado, genérico, não foi suficiente para conter os arroubos presidenciais. No dia seguinte, Bolsonaro esticou um pouco mais a corda. “Ou fazemos eleições limpas no Brasil (em 2022) ou não temos eleições”, disse a apoiadores. Não satisfeito em pregar abertamente um golpe, na sexta 9, o capitão voltou ao tema, elevando ainda mais os decibéis. Depois de chamar Barroso de “imbecil” e “idiota”, declarou: “A fraude está no TSE, para não ter dúvida. Isso foi feito em 2014”, afirmou, repetindo a tese infundada de que Aécio Neves (PSDB) vencera Dilma Rousseff (PT). O novo ataque deu início a uma movimentação intensa entre os integrantes do STF. Após uma rodada de conversas entre Fux, Barroso, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, entre outros, houve consenso de que era hora de dar a Bolsonaro uma resposta dura por meio de uma nota da presidência do TSE.

No dia seguinte, no entanto, Bolsonaro voltou à carga ao acusar Barroso de defender a redução da maioridade para estupro de vulnerável“Beira a pedofilia o que ele defende”, disse a apoiadores durante uma motociata em Porto Alegre. Foi a gota de água para que os ministros cobrassem de Fux uma atitude mais radical. Mesmo magistrados que não costumam se envolver nessas costuras se manifestaram, como Rosa Weber, que comandou o TSE em 2018, quando Bolsonaro foi eleito. Após o ataque a Barroso, pela primeira vez o STF publicou em sua página destinada a esclarecer fake news uma matéria desmentindo uma fala do presidente.

Mas a reação não ficou só nisso. Ainda no sábado, perto da meia-noite, Fux tentou telefonar para Bolsonaro, mas só conseguiram conversar no domingo. Bolsonaro aceitou um convite para encontrar o ministro no STF, ainda mais após ter constatado que suas declarações haviam desagradado até aos aliados. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), afirmou que quem pretende gerar retrocessos na democracia é inimigo da nação. Na tarde de segunda 12, o mandatário chegou ao Supremo pela garagem, sem passar pelos jornalistas. Na conversa, Fux lembrou a ele que o tribunal não atua somente para contrariar o governo, mas também para avalizar medidas de seu interesse, principalmente na área econômica. Em seguida, advertiu Bolsonaro de que, se continuasse a exceder os limites, a relação com os membros da Corte iria se deteriorar de vez e que ele, Fux, não teria mais como apaziguar um novo conflito. Ao final, a pedido do ministro, Bolsonaro concordou em falar com os jornalistas. “Reconhecemos que nós dois temos limites, e esses limites são definidos pelas quatro linhas da Constituição”, declarou o presidente, para em seguida voltar a dizer que tem problemas com Barroso. A “operação panos quentes” deveria continuar na quarta 14, em uma reunião dos presidentes dos três poderes. Mas veio o inesperado: Bolsonaro adiou o encontro para fazer exames. Foi diagnosticada uma obstrução intestinal e ele acabou sendo levado a um hospital em São Paulo. Até a tarde da última quinta, 15, a necessidade de uma cirurgia estava descartada.

A raiz do permanente cabo de guerra entre Bolsonaro e o STF encontra-se na crença por parte do presidente, compartilhada entre os seus seguidores mais radicais, de que a Corte usurpa os seus poderes e dificulta que ele leve a cabo a sua agenda, seja em questões práticas, como o combate à pandemia, ou ideológicas, como a imposição da agenda conservadora de costumes (até hoje Bolsonaro não entendeu que foi eleito presidente, não imperador do Brasil). Uma decisão que ele não digeriu, por exemplo, foi quando o tribunal, em março de 2020, decidiu que prefeitos e governadores tinham autonomia para adotar medidas de exceção para conter o coronavírus. Em uma imagem que se tornou exemplar da queda de braço, Bolsonaro liderou em maio daquele ano uma marcha de empresários do Palácio do Planalto ao Supremo, onde forçou um encontro com o então presidente, Dias Toffoli, para reclamar das restrições impostas ao setor produtivo.  [Marcha oportuna e necessária, serviu para documentar naquela ocasião que o STF havia decidido que o Poder Executivo da União poderia coordenar medidas de combate à pandemia, desde que não contrariasse as decisões dos prefeitos e governadores. No popular:  o presidente poderia decidir sobre como combater a pandemia, desde que não contrariasse o que os governadores e prefeitos haviam decidido. A 'passeata' mostrou, documentou, algo que a depender da vontade atual dos prefeitos e governadores e de alguns ministros do STF seria esquecido.]

Outro ponto que incomoda o capitão é o cerco que o tribunal impõe aos seguidores radicais, inclusive seus filhos, com investigações sobre fake news e atos antidemocráticos. Também está na conta do Supremo a decisão de mandar o Senado abrir a CPI da Pandemia, que virou a maior dor de cabeça para o governo.

(..................)

A própria saída de cena do decano abre um novo foco de turbulência. Além da preocupação com uma possível relação de subserviência ao presidente por parte de André Mendonça, indicado por Bolsonaro para a vaga que Marco Aurélio quer colocar uma trava inédita a um sucessor na história do STF: pediu a Fux que seus votos em dezesseis ações em tramitação não sejam alterados, como um em que decidiu contra a proibição da discussão de questões de gênero em escolas — tema com potencial de ser revisto por um ministro “terrivelmente evangélico” como Mendonça. A manobra tem potencial de causar mais polêmicas — e todo cuidado é pouco neste momento.[do alto de nossa notável ignorância jurídica, ousamos sugerir que seja seguido o modelo atual = ministros podem mudar os votos proferidos - essa faculdade é que permitiu que a cada semestre o STF adotasse uma posição diferente sobre prisão antes ou após manifestação da segunda instância. 
A regra tem que valer para todos os processos, incluindo as dezesseis ações que o ex-ministro Marco Aurélio     quer transformar em propriedade sua.] A  Embora a temperatura da crise mais recente tenha baixado nos últimos dias, até pela internação do presidente, um novo conflito pode trazer desdobramentos imprevisíveis a partir do atual grau de tensão estabelecido entre os poderes da República. É fundamental que os envolvidos, em especial o Executivo, deem um passo atrás e a normalidade institucional prevaleça. O país, afinal, tem outras crises para administrar.
 
Em VEJA, leia MATÉRIA COMPLETA

Publicado em VEJA, edição nº 2747, de 21 de julho de 2021


quinta-feira, 23 de julho de 2020

TCU provou omissão de Bolsonaro na pandemia - Bernardo M. Franco

O Globo

BRAÇOS CRUZADOS

O governo de Jair Bolsonaro cruzou os braços diante da pandemia que já matou quase 83 mil brasileiros. O presidente fez piada com o vírus, desprezou a dor das famílias, sabotou as medidas de isolamento e forçou a saída de dois ministros da Saúde. Depois entregou a pasta um general que aceitou o papel de fantoche e cumpre suas ordens sem reclamar.


Ontem o Tribunal de Contas da União revelou um novo pedaço dessa história. O governo segurou mais de dois terços da verba emergencial liberada para combater a doença. Dos R$ 38,9 bilhões previstos, o ministério só gastou R$ 11,4 bilhões até 25 de junho. Isso significa que 71% dos recursos ficaram retidos nos cofres da União. Além de não gastar o que precisa, o governo sonegou dinheiro que deveria ser destinado a estados e municípios. Segundo o ministro Benjamin Zymler, a auditoria concluiu que os repasses federais “não seguem nenhuma lógica identificável”. Difícil saber se isso se deve a uma administração caótica ou a uma retaliação a adversários políticos.

[O que a auditoria do TCU aponta é que o governo do presidente Bolsonaro,não gastou recursos destinados ao  combate à pandemia.
Parte por não ter repassado aos governadores - que na condição de entes protagonistas na tomada de decisões sobre formas de combate à covid-19 teriam que requerer os recursos.
Requerimento que devido a urgência das ações estaria dispensado parte da fundamentação - alguns pontos porém teriam que ser apontados, inclusive informando em que e onde os recursos seriam utilizados.
Não há provas irrefutáveis de que tais pedidos, os apresentados e eventualmente negados, atendiam requisitos mínimos - é sabido que uma pandemia da ordem da atual é alegria para políticos inescrupulosos se locupletarem com recursos públicos = a Polícia Federal e a Polícia Civil de alguns estados estão trabalhando mais agora, no combate a ilícitos cometidos no combate à pandemia, do que nos tempos áureos da Lava Jato.
Iniciativas de distribuir recursos aos prefeitos e governadores por  decisão própria, foram proibidas ao Poder Executivo da União.
Para completar o ciclo de economia forçada imposta ao Poder Executivo, a maior parte da mortandade ocorrida no Brasil, foi consequência de falta crônica de UTIs, respiradores e até medicamentos = que com a demanda aumentado se torno de aquisição difícil em todo o Planeta.
A análise isenta de todos os fatos, torna fácil concluir que após eliminar as causas de força maior que impediram ocasiões de gastos dos recursos públicos e se estabelecer eventuais culpados - se houver -  o Poder Executivo da União será o inocente, ou  o menos culpado, de todos - até mesmo do que prefeitos e governadores e tais acusações serão por atos praticados pelas leis brasileiras e sujeitos à jurisdição  das cortes do Brasil. 
Quanto à eventuais acusações que venham a ser apresentadas ao Tribunal Penal Internacional,  estarão fadadas ao fracasso. 
O ministro Gilmar Mendes se confundiu com o uso do termo 'genocídio', falha que também inquinará qualquer ação intentada junto àquele Tribunal - que cuida de crimes de genocídio ou assemelhados e que não ocorreram no Brasil.]

Um dado do relatório sugere a segunda hipótese. Rio de Janeiro e Pará, que estão entre os três estados com maior taxa de mortalidade, figuram entre os três que receberam menos verbas per capita. Coincidentemente, seus governadores são desafetos do capitão. O TCU também apontou problemas na comunicação oficial. Na gestão militarizada de Pazuello, o ministério suspendeu as entrevistas que orientavam a população e prestavam contas da ação do governo. O general ainda se notabilizou por maquiar estatísticas, numa tentativa de esconder a escalada de mortes no país.

O fracasso brasileiro na pandemia é uma obra coletiva. Envolve políticos inescrupulosos, empresários oportunistas e cidadãos indiferentes ao sofrimento alheio. Bolsonaro teve a chance de liderar um esforço nacional contra o vírus, mas preferiu fazer guerra política e iludir os doentes com remédio milagroso. No futuro, a auditoria do TCU ajudará a provar sua omissão deliberada diante da tragédia. Seja no Brasil ou no Tribunal Penal Internacional.

Bernardo M. Franco, colunista - O Globo


sexta-feira, 5 de junho de 2020

Desigualdade de armas - Eliane Cantanhêde

O Estado de S.Paulo

Resistir e unir é preciso, mas sem criar pretextos e ambiente favorável a golpistas
A ida às ruas de torcidas organizadas e de grupos pela democracia no Rio, São Paulo e Curitiba serviu como aperitivo. [grupos pela democracia? baderneiros, ladrões, já representam os favoráveis à democracia? se afirmativo, qual democracia?] E não foi aprovada. A intenção é boa, o temor com a audácia dos atos golpistas existe e resistir à escalada contra as instituições é preciso. Mas há que se considerar a questão da oportunidade e da forma: quem, como, quando, onde e por que, tal como no jornalismo.
Há que se investigar a possibilidade de infiltrados, de “black blocs”, no movimento pela democracia para promover vandalismos e confrontos com as polícias. [a maldita esquerda, os malditos 'black blocs', os malditos infiltrados estão presentes até nas manifestações pacíficas pró Bolsonaro realizadas em Brasília; imagine nas cidades em que sempre encontraram terreno fértil, admiradores e até patrocinadores.] Se você dá um espirro hoje, tem sempre uma câmera ou um celular por perto, mas não há um só registro do momento em que o ato pacífico descambou na Avenida Paulista. Com pedrada de manifestante? Ou com bombas de efeito moral da polícia? A única imagem de infiltração é daquela bolsonarista com um taco de beisebol (beisebol?!)... 
Assim, a união de corintianos e palmeirenses pela democracia, que merece aplausos, produziu comparações incômodas com atos bolsonaristas. De um lado, as torcidas com gente parruda e agressiva, vestida de preto e em ritmo de guerra. [um amontoado de covardes, entendimento convalidado pelo fato de integrarem torcidas organizadas e pela covardia de usarem a força contra famílias.]  Do outro, famílias até com crianças usando os símbolos e cores nacionais (da maioria...), como se estivessem passeando. Imagem é tudo e, nesse confronto, inverteram-se objetivos e percepções. Afinal, os parrudos de preto defendem a democracia, os princípios, as boas causas, enquanto as aparentemente inocentes famílias usam a bandeira nacional contra a democracia, o Supremo e o Congresso.
No dia seguinte aos choques dos novos manifestantes com as polícias dos governadores João Doria e Wilson Witzel, de oposição, o presidente Jair Bolsonaro, que confraterniza alegremente e até a cavalo com golpistas em plena pandemia, chamou de “marginais” e “terroristas” os que passaram a dividir as ruas com seus apoiadores. [os dois governadores deveriam em vez de estar preocupado com baderneiros que tentam golpear o governo Bolsonaro, estar cumprimento a missão  que,  a exemplo dos demais alcaides estaduais, receberam do Supremo: combater a pandemia.] Já o vice Hamilton Mourão acusou a novidade paulista de “baderna” e indagou em artigo no Estadão: “Aonde querem chegar? A incendiar as ruas do País, como em 2013?”
Quem defende a democracia é “terrorista” e faz “baderna”. Quem prega golpe contra a democracia é e faz o quê? E, enquanto Bolsonaro e Mourão condenavam os manifestantes pró-democracia, setores bolsonaristas faziam uma leitura enviesada do artigo 142 da Constituição para defender o uso das Forças Armadas contra os Poderes. São movimentos isolados? [voltamos a lembrar que uma hora alguém vai ler o artigo 142 da Constituição em em conjunto com com o artigo 15, 'caput' da LC 97/99 - que foi editada pelo Congresso não para modificar a CF e sim para esclarecer a intenção do legislador ao redigir o atigo 142, da Lei Maior.]  
Líderes da saudável resistência de instituições, partidos, entidades e cidadãos pró-democracia vêm-se declarando contra atos de rua fora por causa da pandemia. Se os bolsonaristas fazem aglomeração, problema deles, os pró-democracia são também pró-ciência, isolamento social, vida. Mas esse não é o argumento principal. O pedido para não disputar as ruas agora tem base mais complexa: a desigualdade, literalmente, de armas. De um lado, juristas, artistas, intelectuais e cidadãos se armam com as palavras e manifestos. De outro, Bolsonaro amplia a munição disponível para a sociedade, enquanto reduz a fiscalização das armas de civis e milícias; atiça o bolsonarismo contra governadores, enquanto adula as polícias estaduais – ou seja, deles.
Convém, assim, avaliar o risco de atos contra Bolsonaro provocarem confrontos desiguais com milícias e polícias e até justificativa para convocação das Forças Armadas. Vira e mexe, militares e o entorno do presidente se referem a um cenário de caos social que não interessa a ninguém, a não ser a golpistas. Líderes responsáveis e do bem têm de desprezar o egocentrismo do ex-presidente Lula e mobilizar o centro, unir as esquerdas, buscar alianças com a direita democrática e resistir. [denominem da forma como quiser, podem chamar até de líderes responsáveis, mas o significado é um só: "COVARDIA".
Covardia por faltar motivação justa, legal e moral à causa que poderiam tentar defender - defender pontos de vista que não se sustentam é tarefa difícil - incluindo a tarefa tentar impedir de que um presidente eleito com mais de 57.000.000 de votos, governe. 
Por reconhecimento aos dos limites dos que defendem causas absurdas, vazias é que grafamos covardia entre aspas.] Mas sem criar pretextos e ambiente favorável para golpes defendidos à luz do dia, com estímulo e empurrão de... vocês sabem de quem.

Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo