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quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Os dois patéticos dias 8 de janeiro - Percival Puggina

         O 8 de janeiro de 2023 foi patético. 
Aqueles poucos milhares de pessoas que chegaram à desguarnecida Praça dos Três Poderes não levavam armas nem megafones e não obedeciam a liderança alguma.  
Pessoas incautas, ingênuas, desorientadas, somavam-se a manés inconformados e a alguns arruaceiros, infiltrados ou não. 
Sobre estes últimos, não cabe a mim, mas às investigações, esclarecer quem eram e por que faziam o que fizeram. 
Transcorrido um ano inteiro, porém, a quem interessa deixar a sociedade sem essa informação? 
Por que o PT tanto quis pôr os arreios e freios que pôs na CPMI? 
 
Repetidamente exibidas, as cenas mostram brutamontes dedicados à tarefa de rebentar, com frieza de robôs, o que encontravam pela frente, a torto e a direito, sem sequer olhar o que quebravam. 
Se me coubesse interpretar aquelas ações, eu diria que elas refletiam a seguinte mensagem: missão dada, missão cumprida. 
Os vândalos preparavam o cenário para as imagens que ilustrariam as narrativas daqueles dias. 
Digo narrativas e não história porque até agora, que se saiba, num palco bem abastecido de câmeras de vídeo, não houve a individualização dos agentes que se dedicaram à ignóbil tarefa. 
A partir daí, o assunto é tratado pelo STF como conta de restaurante: 100% pagam em anos de cadeia o vinho que 10% beberam. Muito conveniente! 
No entanto, os atores daquele estrupício têm nome e sobrenome.
 
Enquanto os fatos ainda estavam em curso, escrevi no artigo “Um erro descomunal!”, que, instigados pelo vandalismo ignóbil, os donos do poder iriam intensificar e ampliar suas ações! Outras garantias individuais iriam para o saco e muita gente de bem pagaria a conta. Subestimei, claro, as consequências que estavam por vir.
 
Um ano inteiro passou e ontem, 8 de janeiro de 2024, foi outro dia patético.  
Como um comandante que discursasse a seus homens antes do desembarque na Normandia, Alexandre de Moraes usou da palavra no evento que marcou o dia da “Democracia inabalada”. 
Parecia um implacável lança-chamas ou um canhão de bordo cuspindo fogo sobre o “populismo extremista” ao qual prometeu todos os suplícios que o destino pode reservar a quem ouse ver as coisas sob outro ponto de vista. Existem discursos que abalam democracias inabaladas.  
O público do evento incluía a nata da oligarquia governante. 
Todos eram adoradores de uma deusa Têmis que pairava sobre o ambiente. 
Na minha imaginação, ela era exótica. 
Não inspirava confiança com seus braços musculosos fartamente tatuados com corpulentos dragões e vampiros...
 
O público, que se via como representativo dos democratas brasileiros numa sociedade de indivíduos livres, não demonstrava grande abertura às diversidades inerentes à política. 
Aplaudia o indiscriminado furor punitivo, prestava culto à moldagem da Lei à forma das "excepcionalidades" do momento histórico, posava fazendo o L e deixava suas digitais ideológicas nos punhos que se erguiam ao ar nos momentos de maior vibração.

Que coisa mais patética pretender que aquele evento sem povo e aquelas falas pudessem ser representativos dos democratas brasileiros!

Percival Puggina (79) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Supremocracia: como o “abraço” entre STF e PT submeteu o Brasil ao totalitarismo cultural - Ideias

Gazeta do Povo

Poder e controle

Martim Vasques da Cunha, especial para a Gazeta do Povo


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cercado pelos ministros do STF Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, cruza a Praça dos Três Poderes para visitar as instalações da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) um dia após as invasões que depredaram a sede do tribunal, o Congresso e o Palácio do Planalto.| Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O problema crucial do nosso tempo, em termos jurídicos, é o que fazer com a preservação da liberdade e a permanência da ordem pública — especialmente se considerarmos as democracias recentes, como é o caso da brasileira (comparada com as dos EUA e a da Inglaterra), que sobreviveu a uma ditadura violenta e implacável.

É nessa perspectiva que se deve observar o crescimento exponencial do poder do Supremo Tribunal Federal (STF), desde o surgimento da Nova República até o presente, com o ocaso do bolsonarismo e a ressurreição do projeto petista.

Assim, é necessário dizer que os mitos fundadores da restauração democrática no Brasil são dois: a Anistia de 1979 e o debate que deu origem à Carta Constitucional divulgada em 1988.

Entre esses dois eventos, o STF foi obrigado a ter um papel completamente diferente do que tinha no passado
. Afinal, o país nunca teve a estabilidade jurídica ou política necessária para ser classificado como uma democracia realmente sólida. Conforme observou Tom Gerald Day em seu livro 'The Alchemists' [Os Alquimistas] (cujo assunto é o impacto das Supremas Cortes em nações que sofreram processos de redemocratização), o Brasil nunca fez uma ruptura completa entre a velha e a nova ordem estabelecidas em cada constituição promulgada. O nosso Estado sempre teve uma relação complexa entre as exigências morais da democracia e a exatidão da letra constitucional e, por isso, frequentemente oscilou entre leis autoritárias e leis republicanas durante o século XX.

Essa instabilidade se aprofunda com a oligarquia da Primeira República (1889-1930), que depois é desarticulada pela revolução da Segunda República (1930-1937), justificada pela nova Constituição de 1934; contudo, essa mesma magna carta seria descartada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, o qual foi legitimado na Constituição de 1937. Quando Vargas foi deposto em 1945, e assim veio que o que se chamou de interregno democrático que durou até o golpe militar de 1964, surgiu outra constituição, a de 1946. 
Depois de 1964, foram promulgadas mais duas constituições, a de 1967 e 1969, que legitimaram o excessivo poder do Executivo (leia-se: a junta militar comandada por generais) para supostamente combater instituições subversivas de esquerda, mas que também levou à expulsão de 10.000 brasileiros e ao assassinato e ao desaparecimento de mais de 500 pessoas como parte de uma deliberada política de Estado.
 
Com a abertura política iniciada em 1974, houve uma lenta transição para o poder civil, graças a uma lei promulgada com o espírito de reconciliação — a Anistia de 1979.  
A partir daí, via a eleição de um novo presidente que não fosse militar (Tancredo Neves, precocemente falecido e depois substituído por José Sarney), o advento da Constituição de 1989 e as primeiras eleições livres de 1989, a redemocratização brasileira dava os seus passos rumo à maturidade.

"Supremocracia"
Contudo, para que isso ocorresse de fato, era importante existir um Supremo que ajudasse nesse processo, já que a Constituição de 1988 é um arcabouço de leis que, com sua abrangência maximalista, deseja abraçar o mundo todo e acaba por não resolver nenhum dos problemas realmente graves que o Brasil sofre desde sempre (entre eles, uma verdadeira reforma tributária; garantia de direitos equânimes; e uma confusão quase proposital entre os papéis da União e as federações). Tal atitude abriu margem para um “aperfeiçoamento constitucional” que, na prática, obrigou o STF a ter um papel ativo na hora de criar uma nova ordem democrática.

Foi neste aspecto que a Corte passou por uma transformação institucional. Antes, a sua jurisdição se dava apenas principalmente em assuntos amplamente constitucionais — e ela se submetia à apelação feita por outros órgãos jurídicos, como a Procuradoria Geral do Estado, o próprio Presidente da República, o Congresso, governadores, partidos políticos e até mesmo a Ordem dos Advogados. Seu estilo de organização era muito mais próximo a de uma Suprema Corte Americana, com uma função reativa; na redemocratização, a hierarquia passou a ser semelhante a uma Corte europeia, com toques claramente inspirados pela visão positivista de Hans Kelsen.

Dessa maneira, como bem explicam Felipe Recondo e Luiz Weber no livro 'Os Onze', com a Carta de 1988 foram abertas “as portas do tribunal para que [...] as organizações da sociedade civil questionassem, por meio das ‘ações diretas de inconstitucionalidade’, a própria validade das leis, o que antes era prerrogativa do procurador-geral da República — demissível pelo presidente”. Enquanto isso, “o Congresso aprovou leis que, ao reformarem o controle da constitucionalidade, aumentaram o poder de fogo do tribunal. Foram também os parlamentares que começaram a levar ao Supremo demandas pendentes no Congresso, ou a usar o STF como campo de disputa política. Tudo isso em meio à corrosão progressiva da imagem do Executivo e do Legislativo”. Logo, a expectativa era a de que o STF protegesse a nova ordem democrática “contra qualquer retorno de autoritarismo que prejudicasse a Constituição e seus princípios”.

Porém, o Supremo nunca teve essa importância na ordem constitucional do passado. O apelido dele entre os próprios integrantes era “esse grande desconhecido”. Seus membrosuma verdadeira casta judiciária, com um dos maiores salários do país — tiveram alguma proeminência política na Primeira República e uma minoria de juízes exibiu alguma coragem moral durante a ditadura militar, antes de serem intimidados, com aposentadorias forçadas e sendo vítimas de manipulação política na hora de trocar cargos. Em suma: a Corte era um órgão periférico do Estado na década de 1980, até o surgimento da Constituição de 1988; e por causa dela e dos problemas já relatados, foi levado ao centro do poder quando o próprio Supremo se autointitulou como o “guardião” da Magna Carta.

Esta importância exagerada implicou não só em um aumento do ativismo jurídico, mas sobretudo, segundo as palavras de Gerald Daly, em uma ativação jurídica da Corte a respeito das filigranas políticas que estruturam o Estado brasileiro. Pouco a pouco, a supremocracia (termo cunhado por Oscar Vilhena Vieira) se imiscuiu em outros braços do governo, especialmente o Legislativo, indo desde decisões que impactavam a regulação econômica do país (como a manutenção dos direitos previdenciários de funcionários públicos, o que dificultou, por exemplo, a negociação da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional [FMI]), até a própria escolha eleitoral da sociedade (com a defesa da pluralidade de partidos políticos no sistema representativo, o que na prática ocasionou em uma pulverização de legendas e, no fim, em um aumento dos fundos financeiros para agremiações completamente irrelevantes, facilitando assim os notórios escândalos de corrupção que seriam manchetes no futuro).

"Colcha de retalhos"

Entretanto, dois tópicos de caráter constitucional que foram mal resolvidos pela supremocracia e que ainda têm impacto nos nossos dias são os da Lei de Imprensa e o da Anistia de 1979.  
A abordagem do STF a respeito desses assuntos indica com precisão como é o método de “colcha de retalhos” no qual a Corte se baseia na hora de fazer suas decisões, sempre em função de interesses circunstanciais.
 
O caso da Lei de Imprensa é paradigmático. O Ministério Público Federal (MPF) exigia ao Supremo a manutenção de uma lei que exigia a jornalistas um decreto, aprovado pelo governo, para exercer a profissão. 
O argumento principal era que a função da imprensa seria igual a de um médico e que a imagem de uma pessoa poderia ser manchada por uma matéria feita com o intuito de prejudicá-la de forma irreparável, assim como uma cirurgia poderia ferir o corpo do paciente de maneira mortal. Contudo, a Constituição de 1988 não permitia restrições excessivas e irrazoáveis em qualquer tipo de atividade profissional, além da própria tarefa jornalística ser garantida pelo artigo 13 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, ratificada pela nossa legislação em 1992.

A manifestação do MPF foi aprovada pelas cortes inferiores, mas entidades jornalísticas apelaram e ela teve de ser reconsiderada pelo STF; numa decisão de oito juízes contra um, afirmou-se que a atual Lei de Imprensa, um restolho da época autoritária da ditadura, era inválida diante da Carta de 1988 e que era uma direta violação da garantia da liberdade profissional.

Um dos maiores protetores dessa afirmação foi Gilmar Mendes, que observou o caráter antiquado da norma e disse, sem hesitação, que há um vínculo umbilical entre o jornalismo e o direito de expressão e de informação, suspendendo por completo qualquer obstáculo que exista para quem for praticar a função de jornalista. Na prática, qualquer cidadão podia exercer, sem impedimentos, o seu próprio “jornalismo profissional” (algo que seria levado às vias de fato com a ascensão da internet e das redes sociais).

O outro exemplo é o debate que ocorreu sobre se a Anistia de 1979 deveria ser ou não mantida — e se deveria haver alguma reparação do Estado contra os torturadores que praticaram seus crimes bárbaros durante a ditadura militar. O julgamento foi desafiado pela Ordem dos Advogados do Brasil, junto com outras associações de nítido caráter esquerdista, interessadas em praticar aqui o que tinha sido feito em países com situação semelhante, como o Chile e a Argentina. A letra da lei era claríssima: o Supremo libertou “de forma ampla, geral e irrestrita” quaisquer indivíduos, tanto os que participaram do regime militar como os que foram da oposição, envolvidos em crimes com motivação política cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Para a Ordem, isso provocou um clima de “esquecimento e impunidade”. Logo, a lei precisaria ser revista com urgência. Não foi o que pensaram tanto a PGR como o STF. No plenário, numa maioria de sete votos contra dois, o Tribunal optou pela continuidade da Anistia. O relator do caso, o juiz Eros Grau — que foi torturado pelo regime nos anos 1970 — argumentou com veemência sobre a constitucionalidade da lei e sobre a sua função de ser um catalisador numa transição democrática saudável. O que estava em jogo, segundo ele, não era o direito de resistência e sim a dignidade humana, que qualquer constituição precisa defender de ambos os lados.

Além disso, devia ser observado que a lei precisa ser “interpretada à luz da realidade em que ela foi concebida e aplicada”. Na verdade, se não fosse a Anistia, provavelmente o Brasil ainda estaria em um eterno ciclo de ressentimento e vingança, o que acontece atualmente tanto no Chile como na Argentina, países dominados por uma elite de esquerda que usa das atrocidades das suas respectivas ditaduras apenas para manter o poder.
Totalitarismo cultural

O prestígio recente do Supremo Tribunal Federal se origina desses dois mitos fundadores — uma Carta Magna que faz a “ponte de ouro” entre a velha ordem autoritária e a nova ordem democrática (mesmo que o ouro tenha um pouco de prata em sua liga), além do perdão jurídico ilimitado que, na prática, impede uma onda de ódio e fúria sempre alimentada pelas organizações de esquerda, em especial o Partido dos Trabalhadores (PT).

Aí surge a pergunta: como o STF permitiu se unir com uma associação política de clara intenção maliciosa? É aqui que precisamos fazer a distinção conceitual entre o que significa autoritarismo e o que é totalitarismo.

O primeiro termo significa apenas a característica de uma entidade
(governo, instituição) que usa da sua autoridade instituída para impor alguma ordem em uma situação que está fora (ou pode sair) do controle. Para isso, decide utilizar certa violência, que pode ser física, psicológica e, frequentemente, jurídica, por meio de leis excepcionais que visam conferir legalidade a um evento que rompe com aquilo que conhecemos como o Estado de Direito — isto é, o devido processo da lei, em que a hierarquia da sociedade deve ser preservada para que continue a igualdade entre os cidadãos perante o âmbito da justiça.

É claro que, muitas vezes, quem abusa da sua autoridade pode descambar para o totalitarismo, mas o inverso não é verdadeiro; afinal, quem começa com intenções totalitárias, jamais quer estabelecer qualquer ordem legal, pois, como a própria palavra diz, sua ambição é ter a totalidade do processo político e social, concentrando-o num grupo específico de sujeitos que acreditam piamente que estão fazendo o Bem e, por isso, são detentores de uma visão muito peculiar do que seria a natureza humana a ser imposta por todos os meios. Ora, o Partido dos Trabalhadores preenche exatamente todas as características listadas acima.

Nesta perspectiva, o abraço entre o STF, com sua propensão para defender um estado autoritário (mesmo com aparência democrática), e o PT, cuja ideologia assassina está em seu germe desde a fundação, é a consequência de um novo monstro, chamado totalitarismo cultural. Ele não é um governo ditatorial, mas trata-se de algo muito pior; é uma forma muito precisa, quase mecânica, de querer alterar o que reconhecemos como o ser humano, modificando o que sempre soubemos por meio de relatos históricos e literários, em um discurso aparentemente político que resolveria todos os nossos problemas. E aqui começam as contradições desta engrenagem: para dominarem este mesmo discurso, os sujeitos que vivem esta atitude precisam também dominar a nossa imaginação, ou pelo menos os fatos exteriores que são filtrados por ela e depois reproduzidos pela língua e pela linguagem.

É neste paradoxo do imaginário que o totalitarismo cultural tenta impregnar-se nos mais variados estratos da sociedade — e do qual também se alimenta. Apesar de parecer um sistema fechado, na verdade ele também tem uma ideologia extremamente flexível, que permeia não só as nuances sociais como também as nuances mais íntimas do ser, a ponto de responder às incertezas e às angústias da existência. Repleta de falhas e lacunas que jamais conseguiremos responder a nós mesmos e a quem amamos, constituindo assim uma espécie de “religião secularizada”, esta ideologia, graças a seu charme hipnótico, faz o indivíduo amortalhar a sua própria consciência em um manto que lhe dão quando se confronta com um mundo onde só o coletivismo tem vez.

A atitude destes “fanáticos” — mesmo que eles desconheçam que o são, como é o caso dos magistrados da nossa Corte — será como um imperativo categórico
Bloquearão qualquer manifestação de cultura que vá contra a ordem geral, prejudicando a informação e a transmissão de conhecimento próprias de qualquer interação intelectual e chegam ao ponto extremo de que, ainda descontentes com o fato de que impõem o “cone do silêncio” sobre uma obra ou uma denúncia que ajudaria os rumos do país, também fazem o possível e o impossível para prejudicar até mesmo a sobrevivência financeira de quem decide opor-se a este status quo.
 
Esta é a nova psicologia do brasileiro dos nossos dias e o Supremo Tribunal Federal, justamente por ser a elite das elites, não seria uma exceção neste tipo de comportamento.  
Essa elite acredita, com a devoção peculiar de quem acabou de receber uma iluminação celestial, que, finalmente, como observou Václav Havel, “o centro do poder é igual ao centro da verdade”. Logo, se detém o poder, de alguma forma também deterá o que é a verdade, aquela palavrinha que Pôncio Pilatos não soube responder a si mesmo.

O que é uma ironia, pois tal mentalidade impede, por exemplo, que exista qualquer chance na própria alternância de poder político, em especial do sujeito que acredita ter alguma espécie de verdade, já que, no discurso ideológico impregnado de automatismos verbais, a mudança que haveria entre uma suposta esquerda moderada (que nunca existiu) e uma direita equilibrada (que se autodestruiu) jamais acontecerá.

Portanto, o STF e o PT se alimentam da mesma raiz perversa a qual, por sua vez, é uma característica própria dos nossos tempos modernos: o desejo ilimitado de poder (ou, como Blaise Pascal gostava de chamar, a libido dominandi). E este mesmo desejo provoca uma dose alucinante de amnésia coletiva. A prova disso é a incoerência atual que o próprio Supremo vive, ao ir contra as suas decisões já estabelecidas e que formam o seu prestígio moral na sociedade civil — no caso, a revogação da Lei de Imprensa e a continuidade da Anistia de 1979 —, para conter, sob quaisquer meios, a revolta bolsonarista que põe constantemente em dúvida a nova ordem democrática formada pela Constituição de 1988.

Nas palavras desses magistrados, a liberdade irrestrita da profissão jornalística, defendida há menos de vinte anos, deve ser vista a partir de agora, em função das “novas circunstâncias históricas” (leia-se: uma pandemia devastadora), como um obstáculo para a “saúde da democracia” — e o questionamento sobre a validade da Anistia deve ser retomado porque, afinal de contas, a aliança entre Jair Bolsonaro e os militares seria uma continuação da impunidade que existe desde o golpe de 1964 (na visão da esquerda).

Para o STF dos nossos dias, infelizmente, não há preocupação alguma com o Bem Comum do povo brasileiro, com a justiça como forma de prudência na hora de escolher corretamente uma ação harmoniosa ou com o entendimento do seu próprio passado.  
Há apenas o desejo pelo controle, de manter um mundo que já está em ruínas. 
E, graças a esta amnésia voluntária, a liberdade fica destruída e a ordem pública é um simulacro do que seria a virtude. 
Na crença de que são os alquimistas do futuro, a Corte brasileira mal consegue compreender que a única pedra filosofal que produziu foi a da barbárie indiscriminada, mas cheia de boas intenções, como qualquer caminho que leva um país ao inferno.

Martim Vasques da Cunha é autor de Um Democrata do Direito (Metalivros, 2021). - Ideias - Gazeta do Povo

 

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

TSE deu a si próprio uma missão impossível: estabelecer o que é a verdade - O Estado de S. Paulo

J. R. Guzzo

Discurso de posse do novo presidente do ‘tribunal eleitoral’ é um dos grandes momentos dessa corrida para a escuridão

Não poderia haver retrato mais fiel do Brasil desfigurado que o Poder Judiciário construiu durante esses últimos anos do que a cerimônia de posse no novo presidente do TSE essa aberração que faz das eleições brasileiras um problema de justiça, ou um caso de polícia. 
As eleições para presidente, numa República, deveriam ser um momento de celebração da democracia. 
No Brasil de hoje, é ocasião para o TSE, autoridade que se apresenta como a dona do processo eleitoral, fazer um pacote de ameaças o mais importante, nas eleições do Brasil de hoje, não é o exercício do direito de voto pelo eleitor, e sim o que está proibido de se fazer na campanha, e as punições para quem desagradar os juízes do jogo. É pura e simples inversão de valores, direto na veia.

O discurso de posse do novo presidente do “tribunal eleitoral” é um dos grandes momentos dessa corrida para a escuridão.. Fala em “liberdade” durante um segundo – a partir dali, começa a denunciar o “mau uso” da liberdade, dizer quando ela não pode ser utilizada e ameaçar quem exercer os seus direitos de alguma forma que o TSE não admita

O presidente, no ponto que mais chamou atenção em sua fala, informou ao público que vai ser “implacável” na repressão aos que, em seu julgamento, não obedecerem às ordens do tribunal para a campanha.  
É isso: o que importa não é o direito de escolher o novo presidente da República, mas o que está proibido para os candidatos e os eleitores fazerem. Nada parece obcecar mais os juízes da eleição, nesse particular, do que a sua ideia fixa com as fake news, assim mesmo em inglês, ou notícias falsas.

Os ex-presidentes Lula e Dilma estiveram na posse do ministro Alexandre de Moraes no TSE
Os ex-presidentes Lula e Dilma estiveram na posse do ministro Alexandre de Moraes no TSE Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

O TSE deu a si próprio uma missão impossível estabelecer o que é a verdade, nada menos que a verdade, de hoje até o dia 2 de outubro. Como alguém pode imaginar que será capaz de conseguir uma coisa dessas? Fica a dúvida. É apenas mais um surto psicótico de mania de grandeza, arrogante, pretensioso e inútil?  
Ou será que estão pensando em usar a autoridade de proibir, tão festejada no discurso de posse, para interferir na campanha, contra um lado e a favor do outro? 
Os fatos vão mostrar se será assim, ou não. O que dá para dizer, logo de cara, é que o plano supremo do TSE começa com problemas. 
O ex-presidente Lula, o candidato que a mídia apresenta como vencedor, e de lavada, disse que o governo Bolsonaro bateu “o recorde” em queimadas na Amazônia. É mentira; no tempo em que passou na presidência, as queimadas foram cinco vezes maiores. Eis aí algo que cabe exatamente na definição básica de fake news – é uma notícia falsa. Como fica?
 
Lula apagou a notícia, depois de publicada. Tudo bem, então? É assim que vão ser as coisas? O sujeito publica uma notícia falsa, e depois apaga – e o TSE se dá por satisfeito?  
O presidente do TSE disse que vai ser “implacável”. 
 Será que vai ser “implacável” desde já, com esse caso das queimadas, ou ainda vai esperar mais um pouco? 
Lula também disse que Bolsonaro é “possuído pelo demônio”
Levando-se em conta que não será possível provar essa acusação cientificamente, ou de qualquer outra forma, o TSE vai classificar a coisa como fake news? Também poderia achar que é um insulto crime previsto no artigo 140 do Código Penal Brasileiro sob o título de “injúria”. Qual das duas coisas será feita pelo tribunal? Ou não se fará nenhuma? 
Vamos ver, a cada caso como esses, de que forma o TSE aplicará as ameaças que fez.

J. R. Guzzo, colunista - O Estado de S. Paulo

 

sábado, 9 de novembro de 2019

Festa e fúria no solo do Brasil - Míriam Leitão



O bonito da democracia é que ela nunca está terminada, como a vida, na linda definição de Guimarães Rosa. Os petistas que choraram de tristeza no dia 7 de abril de 2018 ontem choravam de alegria com a saída de Lula da prisão, depois de longos 580 dias. Os antipetistas que gritaram “mito” para o atual presidente tiveram ontem um dia de fúria. Mas não há só dois lados na política. E o correr da vida é que vai definir a dimensão dos acontecimentos intensos desta semana.

[o BRASIL das PESSOAS DE BEM, deseja um Lula radical, com sangue nos olhos, acusador, implacável,  jararaca,  venenoso - em conduta típica de um CONDENADO, temporariamente, em liberdade e deve sempre ser lembrado que a liberdade, temporária, do petista NÃO ANULOU OS CRIMES QUE ELE COMETEU.

comentário decorrente da falta do notório saber jurídico:  
A suprema decisão se aplicou à esfera penal, a Lei de Ficha Limpa não foi modificada e Lula teve sua condenação confirmada por órgão colegiado]

A expectativa é exatamente qual será o caminho que Lula vai escolher. A parte enraivecida da militância quer que ele continue naquele tom da fala inicial, atacando “o lado podre da Justiça, o lado podre do Ministério Público, o lado podre da Polícia Federal e o lado podre da Receita Federal” que, segundo ele, “trabalharam para tentar criminalizar a esquerda, criminalizar o PT, criminalizar o Lula.” O desabafo era previsível. Mas, em uma conversa longa que tive com um dos políticos petistas esta semana ouvi frequentemente a expressão “frente ampla”. Haverá, como sempre, os raivosos e os que vão sugerir que ele amplie o diálogo para além do partido. Hoje parece preponderante a ala radical, que é representada pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Ao mesmo tempo, Lula, que já se definiu como “uma metamorfose ambulante”, pode ir pelo caminho que indicou ao afirmar:
— Eu saio daqui sem ódio. Aos 74 anos meu coração só tem espaço para amor porque é o amor que vai vencer neste país — afirmou, depois de dizer que correrá o Brasil.

A operação Lava-Jato produziu tantos eventos concretos, tanto dinheiro de volta para os cofres públicos, tantas confissões, que seria preciso fechar os olhos completamente para achar que não houve uma epidemia de corrupção nos governos petistas.
Por outro lado, a partir do momento em que o juiz Sergio Moro, que o condenou, foi para o governo Bolsonaro, ele derrubou o muro que deveria separar o judiciário da política, ainda mais quando decisões judiciais interferem tão diretamente no xadrez da política. Lula responde a vários processos, mas o que o levou à prisão foi por ser supostamente dono de um apartamento no qual nunca morou. Este fato e tudo o que veio depois enfraquecem a confiança na sentença, até porque ela parece excessiva: nove anos, na primeira instância, que foi elevada para 12 anos na segunda. [(sic)]

O fato de ele ter saído após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dá a ele uma força maior. Se ele tivesse sido libertado após o pedido do MP para que se observasse a progressão da pena, o quadro seria outro. Pareceria concessão dos mesmos que o acusaram. Isso sem falar no risco do constrangimento de uma tornozeleira. Ele saiu mais forte. Mas a história não está terminada. [não pode ser olvidado que o condenado petista saiu por força de uma decisão do plenário do Supremo, integrado por onze ministros, proferida por seis ministros - cinco ministros confirmaram a constitucionalidade do entendimento de que criminoso condenado em segunda instância deve ser preso imediatamente após a confirmação da sentença em segundo grau.] 

Lula falou algumas vezes ontem que Fernando Haddad foi roubado na eleição. Não há qualquer evidência disso. Mas, quando ele compara o ministro da educação que Haddad foi e o atual, fica difícil não concordar com ele. O problema do governo Bolsonaro é que algumas pessoas são mais do que ruins para os cargos que exercem, chegam a ser bizarras. É o caso do atual ocupante do Ministério da Educação. [fosse o Poder Judiciário do Brasil cioso de sua preservação, Lula teria sido preso ontem mesmo, visto que ao dizer que Haddad foi roubado, acusou toda a Justiça Eleitoral.
Percebam que Lula tem acusado o Poder Judiciário várias vezes e sempre procurando manchar a imagem de um dos Poderes da República = Lula já chamou o Supremo Tribunal Federal de corte acovardada e agora insinua claramente que a Justiça Eleitoral foi conivente com uma eleição 'roubada'.]
Lula escolheu definir Bolsonaro como “mentiroso”. E diante das muitas fake news, uma delas esta semana sobre três empresas saindo da Argentina, fica difícil discordar dele.

Um Lula radical facilitará a polarização que ajudará Bolsonaro. Ele ganhou a eleição em parte encarnando o antiLula. Um Lula que tente construir pontes terá mais força. O ex-presidente saiu da prisão depois de ter mostrado uma resiliência impressionante. Nestes 580 dias perdeu irmão, amigos e um neto. Viu seu partido perder a eleição seguindo a estratégia que ele definiu, que eclipsou o próprio candidato. Foi acompanhado por uma militância fiel, mas aprisionou o partido em seu destino. O PT não conseguiu ter uma cara, um projeto que não fosse esperar pela saída de seu líder.

A longa discussão no STF mostra que a questão de quando começar o cumprimento da pena divide o país e o próprio Supremo. Os votos sustentaram argumentos opostos diante da mesma lei. O presidente Dias Toffoli deu um voto de minerva jogando o assunto para o Congresso.  Uma das mais belas frases de “Grande Sertão Veredas” é que “o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas estão sempre mudando. Afinam e desafinam”. Democracia é assim.

Blog da Míriam Leitão, jornalista  - Coluna no GLOBO  - com Alvaro Gribel, de São Paulo