Gazeta do Povo
Poder e controle
Martim Vasques da Cunha, especial para a Gazeta do Povo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cercado pelos ministros do STF Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, cruza a Praça dos Três Poderes para visitar as instalações da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) um dia após as invasões que depredaram a sede do tribunal, o Congresso e o Palácio do Planalto.| Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
O problema crucial do nosso tempo, em termos jurídicos, é o que fazer com a preservação da liberdade e a permanência da ordem pública — especialmente se considerarmos as democracias recentes, como é o caso da brasileira (comparada com as dos EUA e a da Inglaterra), que sobreviveu a uma ditadura violenta e implacável.
É nessa perspectiva que se deve observar o crescimento exponencial do poder do Supremo Tribunal Federal (STF), desde o surgimento da Nova República até o presente, com o ocaso do bolsonarismo e a ressurreição do projeto petista.
Assim, é necessário dizer que os mitos fundadores da restauração democrática no Brasil são dois: a Anistia de 1979 e o debate que deu origem à Carta Constitucional divulgada em 1988.
Entre esses dois eventos, o STF foi obrigado a ter um papel completamente diferente do que tinha no passado. Afinal, o país nunca teve a estabilidade jurídica ou política necessária para ser classificado como uma democracia realmente sólida. Conforme observou Tom Gerald Day em seu livro 'The Alchemists' [Os Alquimistas] (cujo assunto é o impacto das Supremas Cortes em nações que sofreram processos de redemocratização), o Brasil nunca fez uma ruptura completa entre a velha e a nova ordem estabelecidas em cada constituição promulgada. O nosso Estado sempre teve uma relação complexa entre as exigências morais da democracia e a exatidão da letra constitucional e, por isso, frequentemente oscilou entre leis autoritárias e leis republicanas durante o século XX.
Essa instabilidade se aprofunda com a oligarquia da Primeira República (1889-1930), que depois é desarticulada pela revolução da Segunda República (1930-1937), justificada pela nova Constituição de 1934; contudo, essa mesma magna carta seria descartada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, o qual foi legitimado na Constituição de 1937. Quando Vargas foi deposto em 1945, e assim veio que o que se chamou de interregno democrático que durou até o golpe militar de 1964, surgiu outra constituição, a de 1946.
Depois de 1964, foram promulgadas mais duas constituições, a de 1967 e 1969, que legitimaram o excessivo poder do Executivo (leia-se: a junta militar comandada por generais) para supostamente combater instituições subversivas de esquerda, mas que também levou à expulsão de 10.000 brasileiros e ao assassinato e ao desaparecimento de mais de 500 pessoas como parte de uma deliberada política de Estado.
Com a abertura política iniciada em 1974, houve uma lenta transição para o poder civil, graças a uma lei promulgada com o espírito de reconciliação — a Anistia de 1979.
A partir daí, via a eleição de um novo presidente que não fosse militar (Tancredo Neves, precocemente falecido e depois substituído por José Sarney), o advento da Constituição de 1989 e as primeiras eleições livres de 1989, a redemocratização brasileira dava os seus passos rumo à maturidade.
"Supremocracia"
Contudo, para que isso ocorresse de fato, era importante existir um Supremo que ajudasse nesse processo, já que a Constituição de 1988 é um arcabouço de leis que, com sua abrangência maximalista, deseja abraçar o mundo todo e acaba por não resolver nenhum dos problemas realmente graves que o Brasil sofre desde sempre (entre eles, uma verdadeira reforma tributária; garantia de direitos equânimes; e uma confusão quase proposital entre os papéis da União e as federações). Tal atitude abriu margem para um “aperfeiçoamento constitucional” que, na prática, obrigou o STF a ter um papel ativo na hora de criar uma nova ordem democrática.
Foi neste aspecto que a Corte passou por uma transformação institucional. Antes, a sua jurisdição se dava apenas principalmente em assuntos amplamente constitucionais — e ela se submetia à apelação feita por outros órgãos jurídicos, como a Procuradoria Geral do Estado, o próprio Presidente da República, o Congresso, governadores, partidos políticos e até mesmo a Ordem dos Advogados. Seu estilo de organização era muito mais próximo a de uma Suprema Corte Americana, com uma função reativa; na redemocratização, a hierarquia passou a ser semelhante a uma Corte europeia, com toques claramente inspirados pela visão positivista de Hans Kelsen.
Dessa maneira, como bem explicam Felipe Recondo e Luiz Weber no livro 'Os Onze', com a Carta de 1988 foram abertas “as portas do tribunal para que [...] as organizações da sociedade civil questionassem, por meio das ‘ações diretas de inconstitucionalidade’, a própria validade das leis, o que antes era prerrogativa do procurador-geral da República — demissível pelo presidente”. Enquanto isso, “o Congresso aprovou leis que, ao reformarem o controle da constitucionalidade, aumentaram o poder de fogo do tribunal. Foram também os parlamentares que começaram a levar ao Supremo demandas pendentes no Congresso, ou a usar o STF como campo de disputa política. Tudo isso em meio à corrosão progressiva da imagem do Executivo e do Legislativo”. Logo, a expectativa era a de que o STF protegesse a nova ordem democrática “contra qualquer retorno de autoritarismo que prejudicasse a Constituição e seus princípios”.
Porém, o Supremo nunca teve essa importância na ordem constitucional do passado. O apelido dele entre os próprios integrantes era “esse grande desconhecido”. Seus membros — uma verdadeira casta judiciária, com um dos maiores salários do país — tiveram alguma proeminência política na Primeira República e uma minoria de juízes exibiu alguma coragem moral durante a ditadura militar, antes de serem intimidados, com aposentadorias forçadas e sendo vítimas de manipulação política na hora de trocar cargos. Em suma: a Corte era um órgão periférico do Estado na década de 1980, até o surgimento da Constituição de 1988; e por causa dela e dos problemas já relatados, foi levado ao centro do poder quando o próprio Supremo se autointitulou como o “guardião” da Magna Carta.
Esta importância exagerada implicou não só em um aumento do ativismo jurídico, mas sobretudo, segundo as palavras de Gerald Daly, em uma ativação jurídica da Corte a respeito das filigranas políticas que estruturam o Estado brasileiro. Pouco a pouco, a supremocracia (termo cunhado por Oscar Vilhena Vieira) se imiscuiu em outros braços do governo, especialmente o Legislativo, indo desde decisões que impactavam a regulação econômica do país (como a manutenção dos direitos previdenciários de funcionários públicos, o que dificultou, por exemplo, a negociação da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional [FMI]), até a própria escolha eleitoral da sociedade (com a defesa da pluralidade de partidos políticos no sistema representativo, o que na prática ocasionou em uma pulverização de legendas e, no fim, em um aumento dos fundos financeiros para agremiações completamente irrelevantes, facilitando assim os notórios escândalos de corrupção que seriam manchetes no futuro).
"Colcha de retalhos"
Entretanto, dois tópicos de caráter constitucional que foram mal resolvidos pela supremocracia e que ainda têm impacto nos nossos dias são os da Lei de Imprensa e o da Anistia de 1979.
A abordagem do STF a respeito desses assuntos indica com precisão como é o método de “colcha de retalhos” no qual a Corte se baseia na hora de fazer suas decisões, sempre em função de interesses circunstanciais.
O caso da Lei de Imprensa é paradigmático. O Ministério Público Federal (MPF) exigia ao Supremo a manutenção de uma lei que exigia a jornalistas um decreto, aprovado pelo governo, para exercer a profissão.
O argumento principal era que a função da imprensa seria igual a de um médico e que a imagem de uma pessoa poderia ser manchada por uma matéria feita com o intuito de prejudicá-la de forma irreparável, assim como uma cirurgia poderia ferir o corpo do paciente de maneira mortal. Contudo, a Constituição de 1988 não permitia restrições excessivas e irrazoáveis em qualquer tipo de atividade profissional, além da própria tarefa jornalística ser garantida pelo artigo 13 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, ratificada pela nossa legislação em 1992.
A manifestação do MPF foi aprovada pelas cortes inferiores, mas entidades jornalísticas apelaram e ela teve de ser reconsiderada pelo STF; numa decisão de oito juízes contra um, afirmou-se que a atual Lei de Imprensa, um restolho da época autoritária da ditadura, era inválida diante da Carta de 1988 e que era uma direta violação da garantia da liberdade profissional.
Um dos maiores protetores dessa afirmação foi Gilmar Mendes, que observou o caráter antiquado da norma e disse, sem hesitação, que há um vínculo umbilical entre o jornalismo e o direito de expressão e de informação, suspendendo por completo qualquer obstáculo que exista para quem for praticar a função de jornalista. Na prática, qualquer cidadão podia exercer, sem impedimentos, o seu próprio “jornalismo profissional” (algo que seria levado às vias de fato com a ascensão da internet e das redes sociais).
O outro exemplo é o debate que ocorreu sobre se a Anistia de 1979 deveria ser ou não mantida — e se deveria haver alguma reparação do Estado contra os torturadores que praticaram seus crimes bárbaros durante a ditadura militar. O julgamento foi desafiado pela Ordem dos Advogados do Brasil, junto com outras associações de nítido caráter esquerdista, interessadas em praticar aqui o que tinha sido feito em países com situação semelhante, como o Chile e a Argentina. A letra da lei era claríssima: o Supremo libertou “de forma ampla, geral e irrestrita” quaisquer indivíduos, tanto os que participaram do regime militar como os que foram da oposição, envolvidos em crimes com motivação política cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Para a Ordem, isso provocou um clima de “esquecimento e impunidade”. Logo, a lei precisaria ser revista com urgência. Não foi o que pensaram tanto a PGR como o STF. No plenário, numa maioria de sete votos contra dois, o Tribunal optou pela continuidade da Anistia. O relator do caso, o juiz Eros Grau — que foi torturado pelo regime nos anos 1970 — argumentou com veemência sobre a constitucionalidade da lei e sobre a sua função de ser um catalisador numa transição democrática saudável. O que estava em jogo, segundo ele, não era o direito de resistência e sim a dignidade humana, que qualquer constituição precisa defender de ambos os lados.
Além disso, devia ser observado que a lei precisa ser “interpretada à luz da realidade em que ela foi concebida e aplicada”. Na verdade, se não fosse a Anistia, provavelmente o Brasil ainda estaria em um eterno ciclo de ressentimento e vingança, o que acontece atualmente tanto no Chile como na Argentina, países dominados por uma elite de esquerda que usa das atrocidades das suas respectivas ditaduras apenas para manter o poder.
Totalitarismo cultural
O prestígio recente do Supremo Tribunal Federal se origina desses dois mitos fundadores — uma Carta Magna que faz a “ponte de ouro” entre a velha ordem autoritária e a nova ordem democrática (mesmo que o ouro tenha um pouco de prata em sua liga), além do perdão jurídico ilimitado que, na prática, impede uma onda de ódio e fúria sempre alimentada pelas organizações de esquerda, em especial o Partido dos Trabalhadores (PT).
Aí surge a pergunta: como o STF permitiu se unir com uma associação política de clara intenção maliciosa? É aqui que precisamos fazer a distinção conceitual entre o que significa autoritarismo e o que é totalitarismo.
O primeiro termo significa apenas a característica de uma entidade (governo, instituição) que usa da sua autoridade instituída para impor alguma ordem em uma situação que está fora (ou pode sair) do controle. Para isso, decide utilizar certa violência, que pode ser física, psicológica e, frequentemente, jurídica, por meio de leis excepcionais que visam conferir legalidade a um evento que rompe com aquilo que conhecemos como o Estado de Direito — isto é, o devido processo da lei, em que a hierarquia da sociedade deve ser preservada para que continue a igualdade entre os cidadãos perante o âmbito da justiça.
É claro que, muitas vezes, quem abusa da sua autoridade pode descambar para o totalitarismo, mas o inverso não é verdadeiro; afinal, quem começa com intenções totalitárias, jamais quer estabelecer qualquer ordem legal, pois, como a própria palavra diz, sua ambição é ter a totalidade do processo político e social, concentrando-o num grupo específico de sujeitos que acreditam piamente que estão fazendo o Bem e, por isso, são detentores de uma visão muito peculiar do que seria a natureza humana a ser imposta por todos os meios. Ora, o Partido dos Trabalhadores preenche exatamente todas as características listadas acima.
Nesta perspectiva, o abraço entre o STF, com sua propensão para defender um estado autoritário (mesmo com aparência democrática), e o PT, cuja ideologia assassina está em seu germe desde a fundação, é a consequência de um novo monstro, chamado totalitarismo cultural. Ele não é um governo ditatorial, mas trata-se de algo muito pior; é uma forma muito precisa, quase mecânica, de querer alterar o que reconhecemos como o ser humano, modificando o que sempre soubemos por meio de relatos históricos e literários, em um discurso aparentemente político que resolveria todos os nossos problemas. E aqui começam as contradições desta engrenagem: para dominarem este mesmo discurso, os sujeitos que vivem esta atitude precisam também dominar a nossa imaginação, ou pelo menos os fatos exteriores que são filtrados por ela e depois reproduzidos pela língua e pela linguagem.
É neste paradoxo do imaginário que o totalitarismo cultural tenta impregnar-se nos mais variados estratos da sociedade — e do qual também se alimenta. Apesar de parecer um sistema fechado, na verdade ele também tem uma ideologia extremamente flexível, que permeia não só as nuances sociais como também as nuances mais íntimas do ser, a ponto de responder às incertezas e às angústias da existência. Repleta de falhas e lacunas que jamais conseguiremos responder a nós mesmos e a quem amamos, constituindo assim uma espécie de “religião secularizada”, esta ideologia, graças a seu charme hipnótico, faz o indivíduo amortalhar a sua própria consciência em um manto que lhe dão quando se confronta com um mundo onde só o coletivismo tem vez.
A atitude destes “fanáticos” — mesmo que eles desconheçam que o são, como é o caso dos magistrados da nossa Corte — será como um imperativo categórico.
Bloquearão qualquer manifestação de cultura que vá contra a ordem geral, prejudicando a informação e a transmissão de conhecimento próprias de qualquer interação intelectual e chegam ao ponto extremo de que, ainda descontentes com o fato de que impõem o “cone do silêncio” sobre uma obra ou uma denúncia que ajudaria os rumos do país, também fazem o possível e o impossível para prejudicar até mesmo a sobrevivência financeira de quem decide opor-se a este status quo.
Esta é a nova psicologia do brasileiro dos nossos dias — e o Supremo Tribunal Federal, justamente por ser a elite das elites, não seria uma exceção neste tipo de comportamento.
Essa elite acredita, com a devoção peculiar de quem acabou de receber uma iluminação celestial, que, finalmente, como observou Václav Havel, “o centro do poder é igual ao centro da verdade”. Logo, se detém o poder, de alguma forma também deterá o que é a verdade, aquela palavrinha que Pôncio Pilatos não soube responder a si mesmo.
O que é uma ironia, pois tal mentalidade impede, por exemplo, que exista qualquer chance na própria alternância de poder político, em especial do sujeito que acredita ter alguma espécie de verdade, já que, no discurso ideológico impregnado de automatismos verbais, a mudança que haveria entre uma suposta esquerda moderada (que nunca existiu) e uma direita equilibrada (que se autodestruiu) jamais acontecerá.
Portanto, o STF e o PT se alimentam da mesma raiz perversa a qual, por sua vez, é uma característica própria dos nossos tempos modernos: o desejo ilimitado de poder (ou, como Blaise Pascal gostava de chamar, a libido dominandi). E este mesmo desejo provoca uma dose alucinante de amnésia coletiva. A prova disso é a incoerência atual que o próprio Supremo vive, ao ir contra as suas decisões já estabelecidas e que formam o seu prestígio moral na sociedade civil — no caso, a revogação da Lei de Imprensa e a continuidade da Anistia de 1979 —, para conter, sob quaisquer meios, a revolta bolsonarista que põe constantemente em dúvida a nova ordem democrática formada pela Constituição de 1988.
Nas palavras desses magistrados, a liberdade irrestrita da profissão jornalística, defendida há menos de vinte anos, deve ser vista a partir de agora, em função das “novas circunstâncias históricas” (leia-se: uma pandemia devastadora), como um obstáculo para a “saúde da democracia” — e o questionamento sobre a validade da Anistia deve ser retomado porque, afinal de contas, a aliança entre Jair Bolsonaro e os militares seria uma continuação da impunidade que existe desde o golpe de 1964 (na visão da esquerda).
Para o STF dos nossos dias, infelizmente, não há preocupação alguma com o Bem Comum do povo brasileiro, com a justiça como forma de prudência na hora de escolher corretamente uma ação harmoniosa ou com o entendimento do seu próprio passado.
Há apenas o desejo pelo controle, de manter um mundo que já está em ruínas.
E, graças a esta amnésia voluntária, a liberdade fica destruída e a ordem pública é um simulacro do que seria a virtude.
Na crença de que são os alquimistas do futuro, a Corte brasileira mal consegue compreender que a única pedra filosofal que produziu foi a da barbárie indiscriminada, mas cheia de boas intenções, como qualquer caminho que leva um país ao inferno.
Martim Vasques da Cunha é autor de Um Democrata do Direito (Metalivros, 2021). - Ideias - Gazeta do Povo