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sábado, 30 de maio de 2020

A guarda pretoriana e a milícia policial - Editorial - IstoÉ


Nos tempos dos conquistadores romanos, a guarda pretoriana — muito bem armada e formada por legionários absolutamente fiéis — era usada pelos imperadores como instrumento de validação de suas leis pela força e, no extremo, encarregada de matar inimigos e opositores, à revelia do devido ordenamento jurídico. Ao lado dela, uma espécie de serviço de inteligência pessoal constituía-se para abastecer os césares de informações estratégicas sobre eventuais sabotadores de seu poder absoluto. Eis que nos dias atuais o caudilho bananeiro Jair Messias Bolsonaro expôs abertamente aos comandados um modelo muito semelhante de atuação. Tendo, de um lado, o que deseja ser o povo armado — “todo mundo armado”, como berrou na fatídica reunião de 22 de abril diante de ministros e generais impassíveis —, e, do outro, um aparelho pessoal de investigação para bisbilhotar clandestinamente supostos adversários do comando central. O “césar” Messias admitiu publicamente que conta com um grupo paramilitar “meu”, particular, que “funciona muito bem”, [o presidente não fez menção a grupo paramilitar e nem a ser armado. Apenas comentou que tem amigos de diversas procedências que lhe fornecem informações.] em gritante confronto constitucional. A Carta Magna desautoriza o chefe de Estado a dispor de aparato policialesco privado para qualquer fim.

Mas no léxico bolsonarista, desobediência à Lei é pleonasmo. Com a exigência de contar com o “povo” armado o mandatário pretende, por sua vez, lutar contra a imaginária ditadura que habita seus piores pesadelos. Vale a lembrança: a “ditadura” referida está sentada no STF, no Congresso, nas cadeiras de governadores e prefeitos — nos demais poderes em geral — que resistem aos intentos totalitários do capitão. Ditadura para Bolsonaro são os freios e contrapesos que frustram seus planos anárquicos, investigam filhos e amigos diletos, não lhe passam informações estratégicas e controlam os notórios excessos do inquilino do Planalto. Os “camisas pardas” de Bolsonaro funcionariam, assim, dentro de uma lógica miliciana, intimidando autoridades de Estado, a imprensa, juízes e parlamentares, “comunistas”, os supostos inimigos, como de hábito já o fazem. O “mito” deseja estar acima e à margem da lei, talkey? Por intermédio da guarda pretoriana e do esquema de inteligência secreto, ninguém pode lhe segurar, acredita. 

E daqui para frente estará tudo dominado. Na Polícia Federal, que ele jurava não interferir — mas cujas evidências deixaram provada e comprovada a sua influência —, a troca na direção, afastando desafetos (sem nenhum demérito técnico), foi seguida de um aparelhamento inédito da estrutura inteira. O novo chefe da PF, poucos dias após assumir, publicou 99 portarias de uma só vez no “Diário Oficial”, cada uma delas dispondo sobre a troca de um a cinquenta ocupantes de cargos, modificando por completo a composição da polícia, de alto a baixo, nos diversos escalões. Um rearranjo vergonhoso, feito à plena luz do dia, para acomodar os interesses do capitão. Ato seguinte, uma operação foi disparada contra o maior alvo e eventual adversário político de Messias: o governador do Rio, Wilson Witzel. Para além do mandado em si – de resto bem fundamentado por suspeitas de desvio —, o que salta aos olhos é a flagrante informação privilegiada dada de véspera às hostes bolsonaristas, que já se vangloriavam publicamente, por meio de entrevistas e posts nas redes, da revanche da investigação, antes mesmo de ela ocorrer. Como é possível tamanho vazamento “devidamente oficializado”, para a felicidade do mandatário, que dava gargalhadas ao lado de apoiadores apreciando o sabor da vingança? 

Não é de hoje, Bolsonaro avilta a presidência e está disposto, num anseio stalinista, a conspirar contra a República, ao lado de seus grumetes ideológicos que lhe dão guarida. “Por mim botava esses vagabundos na cadeia, a começar pelo STF”, grunhiu o pseudo ministro da Cultura, Abraham Weintraub, na reunião da esbórnia, enquanto a colega, Damares Alves, paradoxalmente responsável pelos Direitos Humanos, sugeria pedir a prisão de governadores e prefeitos. [pedir ou sugerir a prisão de alguém não é crime;
crime é ofender os alvos da sugestão ou pedido, que deve ser unido na forma da lei.] O presidente em pessoa tem clamado por “intervenção militar”. Desafia sobranceiramente as deliberações da Suprema Corte e tenta destruir o pináculo da estrutura democrática nacional que é a harmonia dos poderes. A conduta do chefe da Nação evidencia delitos em série, cometidos por alguém que se sente protegido por sua guarda pretoriana de delinquentes.

Carlos José Marques, diretor-editorial



domingo, 24 de maio de 2020

Armamentismo de Bolsonaro tem aroma venezuelano - Blog do Josias

Em política, nada do que se diz voluntariamente é tão importante quanto o que se ouve sem querer. Ao liberar o vídeo do strip-tease [mudou o significado?] que Jair Bolsonaro chama de reunião do conselho do governo, o ministro Celso de Mello, do Supremo, permitiu que o país escutasse barbaridades que o presidente preferia esconder. Entre elas a teoria de que é preciso armar o povo para evitar um golpe. Essa pregação cheira mal. Tem um aroma venezuelano.

Hugo Chávez, o coronel autocrata da Venezuela morto em 2013, fundou em 2007 a Milícia Nacional Bolivariana. Hoje, esse grupo é a maior força armada do país. Reúne mais de 2 milhões de civis voluntários. Juram defender a Venezuela. Na verdade, compõem uma força paramilitar que ajuda a prolongar o regime ditatorial de Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez.

Bolsonaro tem o hábito de criar assombrações para depois se assustar com elas. Na reunião com seus ministros, em 22 de abril, o capitão enxergou o fantasma de um golpe escondido atrás da política de isolamento social. E insinuou que deseja armar o brasileiro para que ele se desafie a autoridade de governadores e prefeitos. "Como é fácil impor uma ditadura no Brasil! Como é fácil!", disse Bolsonaro. "O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua."

Se a coisa ficasse só no gogó seria apenas absurdo. Mas a pregação evoluiu para uma portaria, assinada pelo general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e por Sergio Moro, então titular da pasta da Justiça. Elevou-se a quantidade de munição que um civil com porte de armas pode comprar. Antes, permitia-se a aquisição de 20 cartuchos por ano. Agora, pode-se adquirir até 300 unidades por mês, dependendo do calibre da arma.
"Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine (sic) essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! (sic) Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais!"

O fantasma que politiza o vírus, convertendo estratégia sanitária em golpismo, só existe nos delírios de Bolsonaro. Mas o desejo de criar uma legião de adoradores armados é tão real quanto inconstitucional. A Constituição brasileira concede ao Estado o monopólio da força. Ministros do Supremo ficaram de cabelo em pé e olhos abertos. Um dos magistrados da Suprema Corte disse à coluna: "O presidente Bolsonaro tem pouco apreço pela imprensa livre e adora participar de manifestações em que proliferam as faixas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo. Alguém que coleciona derrotas judiciais já deveria ter compreendido que o Brasil não é a Venezuela."

Por uma trapaça da sorte, Nicolás Maduro também passou a tratar a cloroquina como uma poção mágica de grande utilidade na pandemia. Dias atrás, o ditador anotou no Twitter: "Felicito ao pessoal científico da Saúde de nosso país, que trabalha com boa fé e amor para proteger a saúde do povo. Com eles avançamos na produção do difosfato de cloroquina, fármaco eficiente para o tratamento contra o covid-19".
No Brasil de Bolsonaro, como se sabe, a paixão do presidente pela cloroquina ultrapassa todos os limites, inclusive os da ciência. O remédio fez com que dois médicos se dessem alta do Ministério da Saúde em plena pandemia: o ortopedista Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich. Os governantes costumam se diferenciar pelo que mostram e se assemelhar pelo que escondem. Na vitrine, Bolsonaro acha que é o avesso de Maduro. Entre quatro paredes, reunido com seus ministros, o capitão esgrime uma bula que o aproxima do seu contrário.

Blog do Josias - Josias de Souza, jornalista - UOL


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Até papagaio bate continência - O Globo

Ascânio Seleme 


Os milhares de cargos federais entregues a militares, suas famílias e seus amigos se transformam em motivadores do apoio a Bolsonaro

Nunca, desde abril de 1985, as Forças Armadas foram usadas de maneira tão escancarada em favor de um projeto político. E nunca, em toda a história do Brasil, cederam tão docilmente. A ocupação das estruturas do Executivo por militares já depõe sobre a subserviência [sic]  das forças ao presidente Bolsonaro. Não se trata de disciplina, de obediência ao comandante em chefe, que podem ser até a desculpa oficial, mas é porque há uma compensação. Com esse loteamento de cargos, Jair Bolsonaro interfere à vontade em todas as instâncias de poder militar, sobretudo no Exército. Não fosse assim, sua ordem para a revogação de três portarias do Comando Logístico do Exército que estabelecem controle, identificação e rastreabilidade de armas e munições jamais passaria. Passou e foi mais um dos muitos ataques de Bolsonaro ao Estatuto do Desarmamento, que o Ministério Público Federal denunciou por inconstitucional. O presidente já baixou diversos decretos autorizando porte, aumentando volume de compra de munições, reduzindo idade e ampliando áreas para uso de armas de fogo. Quase todos foram revogados depois de reconhecidas suas inconstitucionalidades. [o argumento de 'inconstitucionalidade' dos decretos só prosperou, não pela revogação das portarias e sim por ao revogá-las o Executivo fazia mudanças em normas estabelecidas por lei - o 'estatuto do desarmamento' que já agoniza.
Ocorreu uma falha na utilização de um Decreto para revogar disposições que apesar de constarem de portarias, tinham amparo em lei.] 

Um desses decretos aumentava de 50 para 5.000 o número de munições que poderiam ser compradas anualmente por qualquer pessoa que tivesse arma registrada. Ela autorizava a compra de pouco mais de 2 bilhões de balas por ano, permitindo que se dessem quase 6 milhões de tiros a cada dia no Brasil. Caiu, claro. Em outro, Bolsonaro flexibilizava de tal forma a lei de compra de armas que um cidadão como você e eu poderia ir ao mercado e comprar um fuzil para defesa pessoal. Há quem veja nisso apenas o atendimento de uma pauta da turma da bala. Ma há os que veem mais do que isso. Haveria um projeto em curso para armar e municiar pessoas e grupos que apoiam o presidente? O fato é que as pessoas estão cada vez mais à vontade para portar armas. No acampamento paramilitar da Esplanada dos Ministérios há gente armada, como revelou a líder do grupo, Sara Winter. Ela disse que as armas servem para o grupo se defender. Se defender de quê? Todos os acampados de Brasília são radicais antidemocráticos e atacam sistematicamente o Congresso, o Supremo e a imprensa, e muitos são membros efetivos ou reformados de forças militares.

Nesse sentido, os milhares de cargos federais entregues a militares, suas famílias e seus amigos se transformam em motivadores do apoio a Bolsonaro. Além de membros das três Forças Armadas, há cargos ocupados por oficiais e praças da ativa ou da reserva das forças auxiliares estaduais, como PMs e Bombeiros, e por delegados e agentes das polícias Civil, Federal e Rodoviária. A aposta é consolidar de tal maneira a presença militar e policial nas estruturas do poder que qualquer solavanco que ameace esses empregos se transforme num gatilho de defesa do governo.

Eles estão por todos os lados, nos ministérios, nas autarquias, nas estatais, nos bancos oficiais. Mas o caso do Ministério da Saúde é exemplar. Lá há tantos militares em cargos de chefia, 18 segundo contabilidade do GLOBO, que até papagaio bate continência. A expressão é do falecido escritor Joel Rufino, se referia à antiga CBD, Confederação Brasileira de Desportos e dava conta da militarização da seleção brasileira sob o comando do almirante Heleno Nunes. [irônico é que nos tempos da chamada militarização da seleção,  na qual "até papagaio bate continência", a seleção ganhava títulos;
já agora, que  não bate continência, os títulos escassearam - de SELEÇÃO BRASILEIA em maiúscula, passou a timinho.
Oportuno enfatizar que papagaio bate continência, os militares prestam continência.]  Na Saúde do general Pazuello ocorre o mesmo.

A explicação de que são bons porque são disciplinados é mais esfarrapada que pano de chão velho. Ninguém é melhor em qualquer coisa apenas porque foi ou é militar. Com certeza, pode-se garantir apenas que os militares são melhores em ordem unida. Fora isso, podem ser melhores ou piores, de acordo com a formação acadêmica de cada um. O que está ocorrendo sob o manto da eficiência militar é a distribuição de cargos com salários que variam de R$ 10 mil a R$ 39 mil. E, nas ruas, colegas de farda, amigos e parentes armados e municiados servem de apoio. Assim Bolsonaro se protege, dando boquinhas aos militares e bocarras ao centrão.

Ascânio Seleme, jornalista - O Globo