São quase quatro horas da tarde na região central de São Paulo quando
uma mulher de cabelos vermelhos começa a gritar: “Tá liberado, gente!
Pode vir!”. Foi a senha para que centenas de usuários de crack que se
aglomeravam no primeiro quarteirão da rua Helvétia começassem a se
espalhar por um pequeno trecho da alameda Cleveland e montassem
novamente suas barracas de lona na calçada. A movimentação era
acompanhada de perto por quase uma dezena de guardas municipais e pelo
capitão Renato Gomes da Silva, homem de confiança do prefeito Fernando Haddad.
A mudança dos usuários na região conhecida como Cracolândia se repete
todos os dias, pela manhã e pela tarde, quando um caminhão da
Prefeitura encosta no local para lavar o chão com jatos de água de alta
pressão. Ela é resultado de um acordo feito entre o poder municipal e os
usuários, que se organizam sozinhos para dar passagem à limpeza.
Minutos antes, o capitão Renato, uma espécie de coordenador da massa,
conversava com as lideranças do fluxo, como é chamado o local
onde ocorre o consumo intensivo do crack, para acertar detalhes de uma
reunião que teriam com representantes de uma empresa que revitalizará
uma parte da área. Tudo amistosamente, num cenário que nem de longe
lembrava a intervenção violenta da polícia ocorrida anos antes.
A diferença de postura do poder público, que há décadas tenta
encontrar a fórmula para atuar de forma eficaz na área, ocorreu com a chegada do Programa De Braços Abertos,
da Prefeitura. Uma ação focada na redução de danos, que há um ano
passou a oferecer três refeições diárias, trabalho acompanhado de um
salário de 15 reais ao dia, tratamento e uma vaga em um quarto de hotel
para cerca de 400 moradores fixos da cracolândia, que viviam em 178 barracos de madeira montados na rua. O resultado, segundo dados da prefeitura, foi uma diminuição do fluxo
-dos 1.500 usuários registrados por dia para 300, um dado influenciado
também pelo alto índice de prisões por tráfico (um aumento de 83%); a
realização de 54.000 atendimentos de saúde e um número mais tímido de
pessoas “emancipadas”- 21 deixaram o programa para trabalhar em outras
atividades. Também houve percalços: um dos oito hotéis credenciados foi
retirado do programa por más condições. Nos outros, há registros de
falta de camas, de água e infestação de insetos.
O projeto parecia correr bem até que, nesta semana, a Prefeitura deu
um passo que preocupa as entidades que atuam na área. Haddad se
encontrou com o secretário de Segurança Pública do Estado, Alexandre de
Moraes, com quem estabeleceu um acordo. A gestão municipal passará todas
as imagens gravadas na região durante o último ano para que a polícia
civil possa investigar a existência do tráfico na região e prender os
traficantes. Luciana Temer, secretária de Assistência Social da
Prefeitura, diz que a decisão foi tomada porque as equipes de saúde e de
assistência estavam sendo proibidas de trabalhar pelos traficantes.
“Temos notado uma mudança no comportamento do fluxo. O pequeno comércio de droga estava se tornando um grande comércio e havia um impedimento de que as equipes entrassem no local.”
Moraes garante que agora a operação policial será diferente das
feitas anteriormente, quando policiais militares atiraram bombas de gás
lacrimogêneo e balas de borracha contra a massa de usuários, alguns sem
força alguma para fugir, para dispersá-los da área e prender os
traficantes -a chamada Operação Sufoco, feita em janeiro de 2012,
resultou na criação de mini-cracolândias pela região central. “Queremos
asfixiar a chegada da droga no local. Quando ela deixar de chegar, as
pessoas que querem o tratamento vão procurar”.
Será uma ação de
inteligência, não de força, disse. “O problema é que o que eles chamam de traficantes também são os
usuários, que vendem a droga para poder consumir. As mesmas pessoas que
recebem o cuidado são as que recebem a repressão e isso prejudica o
vínculo criado com o trabalho”, diz Bruno Ramos Gomes, coordenador da ONG É de Lei,
que há 12 anos atua no local. “Criar o vínculo de confiança demora
porque essas pessoas já sofreram muito. O De Braços Abertos parecia ser
uma quebra de paradigma, mas no momento em que a prefeitura insiste na
abordagem com a polícia, ela se contradiz com a prática da redução de
danos, onde a droga não é o foco do problema”, diz Raul Nin Ferreira,
defensor público do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos
Humanos, que acompanha a atuação do poder público na região.
A relação é de fato complicada. No último dia 26 de janeiro, a prisão
de uma mulher apontada como uma das maiores traficantes da área acabou
em um confronto, entre policiais e usuários que a defendiam. Para os
críticos da parceria, a atuação da polícia poderá espalhar os usuários
mais uma vez, colocando fim ao trabalho do programa. Enquanto enfrenta
dúvidas sobre seu futuro na cracolândia, o De Braços Abertos deve se
expandir. Mais quatro regiões da cidade receberão unidades móveis que
também atuarão dentro dos fluxos. As áreas ainda estão sendo definidas.
Fonte: El País
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