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domingo, 8 de fevereiro de 2015

Cracolândia pode, mais uma vez, ficar na mira da polícia. Tráfico de drogas tem que ser tratado da mesma forma que na Indonésia

São quase quatro horas da tarde na região central de São Paulo quando uma mulher de cabelos vermelhos começa a gritar:Tá liberado, gente! Pode vir!”. Foi a senha para que centenas de usuários de crack que se aglomeravam no primeiro quarteirão da rua Helvétia começassem a se espalhar por um pequeno trecho da alameda Cleveland e montassem novamente suas barracas de lona na calçada. A movimentação era acompanhada de perto por quase uma dezena de guardas municipais e pelo capitão Renato Gomes da Silva, homem de confiança do prefeito Fernando Haddad.

A mudança dos usuários na região conhecida como Cracolândia se repete todos os dias, pela manhã e pela tarde, quando um caminhão da Prefeitura encosta no local para lavar o chão com jatos de água de alta pressão. Ela é resultado de um acordo feito entre o poder municipal e os usuários, que se organizam sozinhos para dar passagem à limpeza. Minutos antes, o capitão Renato, uma espécie de coordenador da massa, conversava com as lideranças do fluxo, como é chamado o local onde ocorre o consumo intensivo do crack, para acertar detalhes de uma reunião que teriam com representantes de uma empresa que revitalizará uma parte da área. Tudo amistosamente, num cenário que nem de longe lembrava a intervenção violenta da polícia ocorrida anos antes.

A diferença de postura do poder público, que há décadas tenta encontrar a fórmula para atuar de forma eficaz na área, ocorreu com a chegada do Programa De Braços Abertos, da Prefeitura. Uma ação focada na redução de danos, que há um ano passou a oferecer três refeições diárias, trabalho acompanhado de um salário de 15 reais ao dia, tratamento e uma vaga em um quarto de hotel para cerca de 400 moradores fixos da cracolândia, que viviam em 178 barracos de madeira montados na rua. O resultado, segundo dados da prefeitura, foi uma diminuição do fluxo -dos 1.500 usuários registrados por dia para 300, um dado influenciado também pelo alto índice de prisões por tráfico (um aumento de 83%); a realização de 54.000 atendimentos de saúde e um número mais tímido de pessoas “emancipadas”- 21 deixaram o programa para trabalhar em outras atividades. Também houve percalços: um dos oito hotéis credenciados foi retirado do programa por más condições. Nos outros, há registros de falta de camas, de água e infestação de insetos.

O projeto parecia correr bem até que, nesta semana, a Prefeitura deu um passo que preocupa as entidades que atuam na área. Haddad se encontrou com o secretário de Segurança Pública do Estado, Alexandre de Moraes, com quem estabeleceu um acordo. A gestão municipal passará todas as imagens gravadas na região durante o último ano para que a polícia civil possa investigar a existência do tráfico na região e prender os traficantes. Luciana Temer, secretária de Assistência Social da Prefeitura, diz que a decisão foi tomada porque as equipes de saúde e de assistência  estavam sendo proibidas de trabalhar pelos traficantes. “Temos notado uma mudança no comportamento do fluxo. O pequeno comércio de droga estava se tornando um grande comércio e havia um impedimento de que as equipes entrassem no local.”

Moraes garante que agora a operação policial será diferente das feitas anteriormente, quando policiais militares atiraram bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra a massa de usuários, alguns sem força alguma para fugir, para dispersá-los da área e prender os traficantes -a chamada Operação Sufoco, feita em janeiro de 2012, resultou na criação de mini-cracolândias pela região central. “Queremos asfixiar a chegada da droga no local. Quando ela deixar de chegar, as pessoas que querem o tratamento vão procurar”. 

Será uma ação de inteligência, não de força, disse. “O problema é que o que eles chamam de traficantes também são os usuários, que vendem a droga para poder consumir. As mesmas pessoas que recebem o cuidado são as que recebem a repressão e isso prejudica o vínculo criado com o trabalho”, diz Bruno Ramos Gomes, coordenador da ONG É de Lei, que há 12 anos atua no local. “Criar o vínculo de confiança demora porque essas pessoas já sofreram muito. O De Braços Abertos parecia ser uma quebra de paradigma, mas no momento em que a prefeitura insiste na abordagem com a polícia, ela se contradiz com a prática da redução de danos, onde a droga não é o foco do problema”, diz Raul Nin Ferreira, defensor público do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, que acompanha a atuação do poder público na região.

A relação é de fato complicada. No último dia 26 de janeiro, a prisão de uma mulher apontada como uma das maiores traficantes da área acabou em um confronto, entre policiais e usuários que a defendiam. Para os críticos da parceria, a atuação da polícia poderá espalhar os usuários mais uma vez, colocando fim ao trabalho do programa. Enquanto enfrenta dúvidas sobre seu futuro na cracolândia, o De Braços Abertos deve se expandir. Mais quatro regiões da cidade receberão unidades móveis que também atuarão dentro dos fluxos. As áreas ainda estão sendo definidas.

Fonte: El País

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