Anos atrás, repórteres não se atreveriam a perguntar a um ministro do STF quem estava pagando a viagem dele ao exterior
Para Gilmar Mendes, a imprensa é opressiva. Para Lula, trata-se de
uma mídia golpista. Para Temer, muitos jornalistas só querem atrapalhar
seu governo. E assim por diante, todo mundo tem uma bronca da imprensa. Não é novidade, nem uma questão nacional.
Décadas atrás, Adlai Stevenson, político americano do
pós-guerra, saiu com uma frase que se tornou clássica: "Sim, eu sei o
que fazem os editores, eles separam o joio do trigo e publicam o joio". Esse é o lado daqueles que são, digamos, alvos da notícia.
Do lado dos jornalistas, do nosso lado, o clássico vem de um lema do
Times londrino, de mais de 200 anos: "Notícia é tudo aquilo que alguém
não quer ver publicado; o resto é propaganda". Ou seja, aquilo que Stevenson chamava de trigo - e que ele
gostaria de ver publicado - é o que os jornalistas consideravam
propaganda do governo ou de algum político.
Ainda é assim.
Mas é preciso reconhecer que a análise é difícil. É que
não se pode falar "a" imprensa. Há muita diversificação entre os
veículos, sendo a principal divisão entre os independentes e os
chapa-branca. Estes são aqueles que só existem para fazer propaganda
e/ou defender os interesses do governo, de políticos, de igrejas e de
negócios setoriais. Vivem de verbas públicas ou de dinheiro colocado
pelo patrocinador. A imprensa independente é aquela que vive da notícia e, no
caso da tevê, do entretenimento. Vive no duplo sentido: tem que ser
reconhecida como tal pelo público (credibilidade) e tem de ganhar
dinheiro com venda em bancas, de assinaturas e de publicidade. A
independência é editorial e econômica ao mesmo tempo.
Aqui, essa imprensa independente amadureceu ao longo da vida democrática pós-1985.
Tem várias características, algumas boas, outras ruins,
mas há um ponto essencial. A imprensa brasileira não é bem agressiva, é
atrevida. Nem sempre foi. Tornou-se atrevida, especialmente a política,
em tempos relativamente recentes. Por exemplo: alguns anos atrás, repórteres políticos não
se atreveriam a perguntar a um ministro do STF quem estava pagando a
viagem dele ao exterior - como foi a pergunta que tanto irritou Gilmar
Mendes.
Na verdade, não é que não se atreveriam, nem lhes ocorria
perguntar esse tipo de coisa. Parecia normal que autoridades tivessem
privilégios, incluindo as famosas mordomias. Também não era um vício apenas nacional. Na Washington de
John Kennedy, todo mundo sabia que o presidente gostava muito de
mulheres e que as recebia na piscina da Casa Branca quando Jacqueline
não estava por perto. Jornalistas sabiam, alguns até participavam das
farras - e não publicavam nada. Ao contrário, publicava-se que se
tratava de um feliz casal presidencial.
Em Brasília dos anos 80 e 90, os jornalistas também sabiam
das mazelas pessoais (amantes, rolos) e, digamos, profissionais dos
políticos, tais como negócios paralelos. Não lhes ocorria publicar,
mesmo porque muitos jornalistas desfrutavam de vantagens indevidas, como
empregos no Congresso, em autarquias e estatais. Além de financiamentos
especiais em bancos públicos. A mudança forte começou a aparecer na passagem dos anos 80
para os 90. Repórteres mais novos começaram a publicar os privilégios,
os bastidores, inclusive dos casernas - ou seja, as informações não
oficiais, não autorizadas, mas obtidas por apuração e investigação
independente.
Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o jornalismo opinativo -
outro que tanto incomoda as autoridades. Estas consideram uma
impertinência quando jornalistas as criticam. Gilmar Mendes se irrita
quando perguntam quem paga suas viagens e mais ainda quando jornalistas o
criticam por mudar de posição ao sabor da política. Diz que são
"jornaleiros" - ofendendo uma categoria do andar de baixo - de uma
"imprensa opressiva". Mas na democracia, quem decide se uma imprensa é boa ou não é o público, com sua audiência, sua leitura, seu respeito.
Não precisam me lembrar que a imprensa erra. Nós,
jornalistas, sabemos disso melhor que os outros. Também sabemos
reconhecer e corrigir.
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