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sábado, 9 de março de 2019

Carnaval indecoroso

Bolsonaro responde a protestos com a publicação de um vídeo obsceno — uma reação despropositada que fere a compostura do cargo e joga o governo no ridículo

Aprovar a reforma da Previdência em um país com a economia ainda claudicante e mais de 12 milhões de desempregados é um processo político custoso. O governo tem de formar uma base de apoio coesa no Congresso e, ainda por cima, convencer a população da necessidade de certas medidas amargas. E a reforma é só um dos temas que deveriam ser prioritários na comunicação do presidente com a população brasileira. No entanto, em seu canal de preferência, o Twitter, Jair Bolsonaro fez só seis publicações sobre a Previdência. Suas obsessões ideológicas há muito ganham relevo desproporcional, acima dos temas cruciais da economia, da saúde, da educação e até da segurança. Na Terça-Feira de Carnaval, essa fixação na irrelevância militante chegou ao escândalo. No esforço de denunciar os excessos da maior festa popular brasileira, o presidente postou, no Twitter, um vídeo escatológico e obsceno: em um bloco de rua de São Paulo, um folião mexe no próprio ânus e depois outro urina na cabeça dele. [cenas deste tipo e piores são vistas em várias cidades brasileiras, no 'inocente' carnaval de rua; 
o abuso é tamanho que muitos pais já não saem com as crianças para ver os blocos de rua - que foram inocentes no século passado.
Hoje disfarçam, tentando esconder práticas que não são toleradas nos pontos de desfile das 'escolas de samba'.
É nos blocos de rua que a turma do amor LGBTQIA+ se solta.]
 

Ainda que, no dia seguinte, uma nota da Secretaria de Comunicação afirmasse que a postagem na “conta pessoal” de Bolsonaro não era um ataque genérico ao Carnaval, mas apenas a distorções do “espírito momesco”, a intenção clara era apresentar aquele episódio particular como representativo fiel da festa — uma evidente retaliação contra as críticas ao governo que tomaram as ruas em mais um Carnaval politizado. O saldo da ressaca veio na Quarta-Feira de Cinzas: no Brasil e no mundo, repercutiu mal o episódio do chefe do Executivo que enxovalhou a dignidade do cargo ao divulgar um vídeo pornô na conta que, na verdade, não é pessoal — é do presidente da República Federativa do Brasil.

A intolerável quebra do decoro resultou da longa fermentação dos rancores do presidente ao longo do fim de semana carnavalesco. Bolsonaro passou o feriado no Palácio da Alvorada, onde recebeu, de assessores, informes sobre as manifestações críticas — e xingamentos — que vários blocos país afora vinham fazendo contra seu governo. Decidiu revidar. Na terça-feira 5, depois de falar com auxiliares — e, por telefone, com o filho Carlos, desde sempre seu orientador nas redes sociais —, tuitou, às 9h19, o vídeo de uma marchinha defendendo restrições na Lei Rouanet, entre as quais o fim da renúncia fiscal para financiar o Carnaval. O cantor do vídeo, ao dedicar sua singela composição a Caetano Veloso e Daniela Mercury, diz aos artistas baianos: “chupa”. Em face do que viria adiante, o insulto aos dois músicos parece trivial. Pouco mais de duas horas depois, o presidente escreveu que “tão importante quanto a economia é o resgate de nossa cultura, que foi destruída após décadas de governos com viés socialista”. Àquela altura, Bolsonaro já recebera de amigos imagens que demonstrariam, segundo sua visão, a imoralidade que predomina no Carnaval. Na tarde do mesmo dia, chegou a seu WhatsApp o vídeo com a performance escatológica de São Paulo. O presidente hesitou em postá-­lo. Mas um auxiliar em seguida repassou a Bolsonaro outro vídeo desaforado, embora sem atividades excretórias explícitas: em coro, foliões do bloco carioca Boi Tolo entoavam.

Foi a gota d’água: Bolsonaro decidiu denunciar a indecência do Carnaval.

Às 20h08, foi publicado em seu perfil no Twitter um vídeo em que dois homens em roupas exíguas dançam em cima de um ponto de táxi no centro de São Paulo, no meio de um bloco carnavalesco. Um deles se vira para a multidão e introduz o dedo no próprio ânus. Em seguida, o outro rapaz entra em ação, regando a cabeleira do primeiro folião com urina. O texto que acompanhava o vídeo foi escrito pelo próprio presidente e aprovado, com entusiasmo, pelo filho Carlos. Diz o seguinte: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões”.

Bolsonaro divulgou atos sexuais explícitos em seu canal oficial, que até crianças podem acessar. A repercussão negativa foi imediata, mas o presidente estava disposto a reiterar a quebra de compostura, em um post no qual simula ingenuidade sobre práticas sexuais mais extravagantes. Às 9h26 da quarta-feira 6, seu perfil fazia a seguinte pergunta: “O que é golden shower?”. A expressão em inglês designa um fetiche que envolve urina.

Aliados próximos, sobretudo da ala militar, ficaram pasmos com a desfaçatez com que o presidente sambou sobre o decoro. A maioria optou pelo silêncio. O vice-presidente Hamilton Mourão, acostumado a dar pitacos sobre tudo, recolheu-se durante o dia. “Sem comentários” foi a resposta que deu aos jornalistas. Como a insistência foi grande, ele resolveu invocar a efemeridade das notícias que viralizam em redes sociais: “Morre amanhã. Isso aí passa. Tudo passa”. Nos corredores do Planalto, porém, o clima era de incredulidade. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, era um dos mais revoltados com a situação, segundo assessores ouvidos por VEJA e que pediram para manter-se no anonimato. O general encontrou-se com o presidente para relatar o mal-estar que o vídeo criara. Entre deputados governistas, houve o mesmo espanto. “Como o presidente se presta a isso?”, perguntou um parlamentar do PSL a outro. Kim Kataguiri, do DEM, apoiador do governo, observou que isso não era atitude própria de um presidente de direita. Líder do PSL, o senador Major Olimpio disse a VEJA que o tuíte com golden shower é típico do estilo pessoal de Bolsonaro, embora “não seja a comunicação protocolar de um presidente da República”. “Ele usou, como em outras vezes, da ironia e da contundência que lhe são características”, avalia o senador.

(...)


Na história brasileira, há registro de dois presidentes que tentaram, sem sucesso, interferir no Carnaval. O marechal Hermes da Fonseca, em 1912, resolveu adiar as festividades de rua para impor luto ao país pela morte do Barão do Rio Branco. A população caiu na folia nas duas datas — os dias originais do Carnaval e aqueles para os quais ele havia sido remarcado. Fez sucesso uma marchinha atacando o presidente militar: “Com a morte do Barão, tivemos dois carnavá. Ai! Que bom! Ai! Que gostoso! Se morresse o marechá!”. Em 1939, na ditadura de Getúlio Vargas, um decreto-lei instituiu a censura para controlar apresentações de grupos musicais e de teatro, o que incluía os cordões carnavalescos. Estavam proibidas quaisquer improvisações em espetáculos públicos, mas a determinação não foi cumprida com rigor. No único Carnaval em que foi presidente, em 1961, o folclórico Jânio Quadros baniu apenas um item então popular nos bailes: o lança-perfume. Já Itamar Franco, bem ao contrário, caiu na folia e envolveu-­se inadvertidamente em um escândalo no Carnaval de 1994: foi fotografado em um camarote da Sapucaí ao lado da modelo Lilian Ramos, que estava sem calcinha — o que só ficou evidente na foto tirada de baixo para cima — e por quem se disse apaixonado.

Publicado em VEJA de 13 de março de 2019, edição nº 2625

MATÉRIA COMPLETA, na VEJA OnLine
 

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